Meio-termo.

O texto de hoje tende a ser chato: já aviso que não vai ter nenhuma opinião forte aqui. Nem mesmo um assunto que vai dividir multidões. Eu só quero falar sobre o meio-termo. O ponto de encontro entre visões distintas de mundo… e mesmo nunca tendo sido popular, parece estar se transformando em algo negativo.

Que não é algo apaixonante eu nem discuto. Chegar num consenso à partir de concessões de ambos os lados não é algo que povoa nossa imaginação ou mesmo que excite nossas mentes. O que provavelmente explica muita coisa nesse mundo. Se a conciliação amigável e a tolerância pacífica disparassem os mesmos coquetéis químicos que disparam amor e ódio, duvido que tivéssemos sequer uma guerra no currículo da espécie até aqui.

Nem sei se isso seria útil do ponto de vista evolutivo, essa passionalidade toda é parte integrante de uma sociedade que se não é perfeita, pelo menos percorreu um LONGO caminho desde as cavernas. Se a humanidade evoluiu de forma a perpetuar aqueles que aderem com mais ênfase a um ou outro argumento, presume-se que essa característica seja útil para nosso desenvolvimento.

Percebem que já está ficando meio chato? Não seria um texto mais ‘saboroso’ se eu estivesse dizendo que o mundo seria muito melhor se as pessoas achassem mais graça no meio-termo? Você poderia concordar ou discordar nos mais diversos graus de intensidade, daria para buscar exemplos para reforçar seu argumento, lembrar de pessoas sábias que enxergavam as coisas da mesma forma que você… daria até para me desqualificar totalmente e considerar todos os argumentos contrários em provas da minha imbecilidade.

Mas se eu considerei os dois lados… é difícil saber direito o que fazer com isso. Não é como se eu estivesse personificando alguma ideia com a qual você pactua ou mesmo um que você deteste, não dá nem para saber se tem que concordar ou discordar do que estou escrevendo. É só uma ideia, sem nenhuma pressão de fazer parte da sua vida.

E normalmente o meio-termo é assim. Não se intromete em nada. Numa analogia de quem escreve o texto sentindo fome: o meio-termo é uma receita que precisa de ingredientes selecionados e muito cuidado no preparo. A opinião passional tem mais jeitão de fast food: já está quase pronta e tem em cada esquina. E eu não vou mentir, é deliciosa! Não é de se espantar que uma seja mais popular que a outra.

Para chegar no meio-termo, você precisa de trabalho e de renúncias. Não pode ser tudo do jeito que você quer, tem que tomar cuidado para respeitar o outro lado, tem que se manter concentrado durante todo o processo. Pior, muitas vezes você tem que engolir ideias que te reviram o estômago!

Eu, por exemplo, adoraria viver num mundo onde a religião fosse abolida, tivéssemos liberdades pessoais beirando à anarquia, que a evolução da tecnologia para substituir as limitações do corpo humano e do planeta Terra fossem prioridades absolutas, que a indústria da aspiração fosse desintegrada completamente… Mas não dá para esperar que a humanidade em peso aderisse ao meu sonho. Eu acredito que as coisas funcionariam bem na minha utopia racionalista, mas tem muita gente que não suportaria um mundo sem as ferramentas de controle psicológico que estão acostumadas.

E aqui eu já começo a cometer o pecado do parcialismo: perceberam como estou sendo condescendente? “As pessoas não suportariam um mundo melhor”? Oras, isso é um golpe barato, estou condicionando o conceito de melhor com as minhas fantasias totalitárias e dizendo que as pessoas tem o direito de estarem erradas! Fazer o quê? É divertido se imaginar como o bastião de tudo o que é correto e justo.

Se eu quisesse chegar num meio-termo mesmo, teria que aceitar os amigos imaginários da maioria da população mundial como condição de estabilidade. Teria que conceder o ponto que liberdade demais não faria bem para uma população tão pobre e pouco educada… deveria aceitar que muitos se sentem genuinamente felizes seguindo modas e imitando celebridades. E principalmente que ninguém tem obrigação de trabalhar em prol dos avanços científicos que povoam minha imaginação. Tudo bem, não precisa de tudo isso, podemos começar com menos.

Meu meio-termo de um mundo melhor já estaria muito bem com menos preconceito racial, sexual e seja lá o que ‘al’. Pode ficar com a religião, mas os fanáticos estão sobrando. Vai curtir a notícia sobre a última plástica de uma bunda profissional, mas estuda um pouco em quem vai votar. Não precisa dedicar a vida à ciência (até porque nem eu estou fazendo isso), mas pelo menos não perca a curiosidade sobre o mundo assim que entrar na puberdade… e tá bom, pode continuar sendo crime alguém falar mal de você, mas custa só ser quando te acusam de um crime que você não cometeu? Vamos fazer o seguinte? Eu não voto no Gabeira* e você não vota no Feliciano! Tá legal, não tá?

*ha ha, otários, eu não votaria nele mesmo!

Mas é claro, essa discussão não funciona na vida real. Eu sempre achei que fosse pela teimosia das pessoas… que elas só queriam ver o lado delas e deixar os outros se explodirem. Tem disso, é claro, mas… tem mais aí. O meio-termo é complicado, ele exige muito esforço para ser alcançado. Complicado entender o seu lado e ainda tentar entender o outro para encontrar pontos comuns.

Aliás, quase herético considerar o outro lado. As pessoas parecem ter medo das ideias que estão em sua cabeça, como se fossem meras testemunhas de suas sinapses. Parece que pensar que nem o outro é sinônimo de ser o outro! Como se essas ideias subversivas ficassem encubadas na cabeça e fossem eclodir a qualquer minuto.

O meio-termo é chato, trabalhoso e ainda por cima lida com o estigma de fazer uma pessoa ‘trocar de time’. A gente passa muito tempo acreditando que o mundo é o conjunto de visões das pessoas, como se nossas divergências fossem algo muito racionalizado e intencional, mas quanto mais você presta atenção, mais parece ser sobre as leis da física.

E não, não estou atacando de determinismo. É que a física é baseada na lei do menor esforço: o que é mais provável por simplicidade tende a acontecer sempre do mesmo jeito. A bola solta rola ladeira abaixo porque daria muito mais trabalho rolar ladeira acima! Não é como se ela fosse proibida pela natureza de fazer isso, é que o mais fácil VAI acontecer primeiro que o mais difícil.

O meio-termo é a bola rolando ladeira acima. Na conjuntura geral das coisas é tão mais simples que as pessoas fiquem brigando por qualquer assunto do que tentando fazer concessões para chegar num ponto comum que é evidente que vamos passar a maior parte do tempo lidando com discussões infrutíferas entre lados desejosos apenas de uma vitória absoluta.

Por algum motivo, o cérebro parece trabalhar menos quando se está muito seguro de uma posição. O ser humano tem em si a incrível capacidade de subverter o óbvio e colocar mais esforço do que deveria em alguma coisa, mas isso não quer dizer que essa seja sua primeira escolha. Não fomos feitos para sair desperdiçando energia por aí, o organismo toma atalhos quando esses lhe são apresentados.

E mais, ideias mais intensas mexem mais com nosso delicado equilíbrio mental. Algumas delas nos fazem sentir prazer, segurança, ânimo… tudo isso de acordo com algumas regras escritas direto nos nossos códigos genéticos. Opiniões extremas devem ser mais econômicas e mais recompensadoras. Afinal, do ponto de vista do neurônio é tudo mais matemático: estímulo 1 dispara resposta 2, estímulo 3 dispara resposta 4… o sentido se faz no todo.

Talvez um dia tenhamos até uma formula matemática quase perfeita para descobrir quantas pessoas de uma população vão radicalizar e quantas vão contemporizar. Tem todo o jeito de ser menos subjetivo do que normalmente acreditamos. Mas ainda sim influi demais no mundo. O meio-termo parece fora de moda num mundo onde se preza tanto pela velocidade da informação. As pessoas são exigidas em suas opiniões constantemente, e todo mundo tem uma. Qual a tendência ‘física’ disso? Muitos extremos e poucos meios termos. A bola só vai subir a ladeira se alguém estiver disposto a ir até ela e fazer alguma coisa… parece que não temos mais tempo para isso.

A natureza não se importa: ela faz o seu trabalho do jeito mais simples. O resultado estamos vendo, dia após dia. E nós, quando vamos nos esforçar?

E se esse texto pode te servir de algo, que seja a ideia que suas opiniões mais intensas talvez sejam mais culpa da matéria do que da mente. Estou chegando às raias da paranóia com isso, mas eu sou um notório desperdiçador de energia mental. Talvez você consiga encontrar um meio-termo. Boa sorte.

Para dizer que agora já acostumou e nem espera conclusão, para dizer que o meio-termo desse texto seria medíocre, ou mesmo para dizer que nem tanto ao mar, nem tanto à terra: somir@desfavor.com

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Comments (3)

  • Agora vejo que estava equivocado com a minha crença preconceituosa de que quem adota o meio termo, fica em cima do muro, e quem fica em cima do muro, é acomodado e nao quer se comprometer.

    Este exercício que você fez é muito valioso.

    “Nao estou seguro de minhas opinioes, mas de te-las e poder muda- las.” (Nietzche)

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