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Marcha lenta.

Marcha lenta.

| Somir | | 30 comentários em Marcha lenta.

Dia 4 de Junho: Marcha para Jesus, dia 7 de Junho: Parada Gay em SP. Fica meio nebuloso quem está provocando quem com as datas, mas… de qualquer forma, o que importa é que ambos são basicamente demonstrações de poder. O que não me entra na cabeça é o que exatamente essas demonstrações significam.

Concedo que representatividade faça diferença num sistema democrático, tenha em vista como o político médio tupiniquim representa muito bem o tipo de pessoa que se dá bem nesse país. Mas os homens brancos de meia idade com mais ganância que escrúpulos não fazem o tipo que marcha pelas ruas. Na verdade, eles preferem ficar longe dos holofotes.

E isso tem seus motivos: quanto menos gente prestar atenção neles, mais eles podem consolidar suas posições de poder sem grandes preocupações éticas. Aliás, eles podem ser completos inúteis nas funções para as quais foram eleitos, advogar em causa própria o tempo todo e ainda sim se manterem estáveis no controle da máquina de fazer dinheiro e poder que é o sistema atual. Quem quer mostrar força mesmo não se amarra na ideia de ser visto por todo mundo.

E mesmo na hipotética possibilidade de estarem interessados no bem comum, comoção popular ainda não é o caminho mais indicado. Quando as pessoas se sentem livres para ter opiniões, cria-se um fator de aleatoriedade que engessa a maioria das decisões necessárias. É o dilema da criação: você quer que todos recebam suas ideias, mas se deixar muita gente opinar antes, grandes chances de ter que mudá-la completamente. Opiniões são importantes, sim… mas elas tem seu limite de utilidade. Muitas viram ruído.

Vamos considerar os públicos das duas demonstrações públicas exemplificadas no começo do texto: se você é uma pessoa que concorda suficientemente com o conceito de direitos humanos, provavelmente enxerga mais melhorias para o mundo com a agenda da Parada Gay do que com a Marcha para Cristo. Mesmo que a “causa gay” ainda defenda alguns pontos nebulosos (toda causa defende algum), o conceito de mais liberdade e aceitação para um demográfico tão numeroso soa pra lá de razoável. Do outro lado, a pegada caricata-conservadora dos evangélicos não sugere grandes avanços para a humanidade. Em vários casos, muito pelo contrário.

Mas mesmo assim, vamos “esfriar” a análise e tratar ambos os públicos de forma parecida. Se eles querem mesmo mexer nas estruturas desse país, o caminho raramente passa pela visibilidade. O brasileiro médio – como de costume em populações sem acesso decente à educação – tem consideráveis dificuldades de entender o mundo ao seu redor. Todos os conceitos discutidos são muito mais pessoais do que deveriam. Falta a capacidade de digerir a informação recebida e de se colocar no lugar de outras pessoas, principalmente se não forem muito próximas.

Mexer com a cabeça desse povo exige muito trabalho e muito talento. Não se pode assustá-los com conceitos muito complexos, isso gera reações negativas; não se pode também deixar muito para a imaginação, ela não vai conseguir cobrir a distância necessária para gerar uma mudança de opinião. Talvez alguém como o Lula, lutando a vida toda pela causa gay (ou evangélica) conseguisse mexer com o povo o suficiente para conseguir alguns avanços, mas via de regra pouca gente é capaz de mexer com o brasileiro de tal forma.

Você pode estar pensando que os evangélicos levam grande vantagem nisso, mas… pense de novo… se eles fossem bons mesmo em empurrar os preceitos de sua religião, esse país já estaria mais organizado. Se tem algo mais comum que flamenguista e corintiano na cadeia, é evangélico. Os crentes aprontam até não poder mais, na prática essa fé toda não passa de história para boi dormir. Eu sou mais cristão que boa parte dos crentes no final das contas. Aquele povaréu berrando na igreja e enriquecendo pastores está tão perdido quanto qualquer um com as mesmas deficiências de aprendizado e noção de realidade que se considere de outra religião.

Mesmo os políticos religiosos não são tão bons assim em empurrar esse atraso todo goela abaixo da nação. Eles são ótimos para atrapalhar e impedir medidas mais humanitárias, mas suas propostas tendem a ser tão burras e deslocadas da realidade que ninguém consegue fazer valer na vida real. Espero não queimar minha língua no futuro, mas o adversário aqui é muito burro e/ou muito imediatista para causar danos duradouros. O pouco apoio político que os gays tem também não preza pelo resultado: acabaram entrando num embate pirotécnico com os conservadores e não conseguem se articular para passar nada de realmente importante.

O que eu argumento aqui é que ambos os lados seriam mais poderosos se seguissem a fórmula clássica de sair dos holofotes e começar a jogar o jogo político. Bem subornados, nossos legisladores passam qualquer lei. Bem chantageados, também. Empresas vem se dando bem nesse jogo há muito tempo criando facilidades e reduzindo obstáculos legais ao jogar o jogo em silêncio. O público que não se ressente de nenhuma perseguição conquistou essa posição, muitas vezes jogando sujo.

A visibilidade de paradas e marchas chama atenção, cria opiniões. Faz surgirem defensores e detratores. Reforça a ideia de perseguição (razoável para os homossexuais, ridícula para os evangélicos) e cria uma sensação de unidade entre o público. Mas, ao mesmo tempo… cria obstáculos técnicos para a verdadeira resolução das questões que os afligem. É como se manter um inimigo comum fosse melhor para os negócios. Isso é muito claro na estratégia dos crentes, mas começa a me preocupar que pareça o mesmo para os gays. A verdade é que o público médio não entende basicamente nada do que está acontecendo, e se revoltaria por meio minuto se qualquer um dos lados forçasse alguns dos pontos de suas agendas. Aliás, se a mídia estivesse comprada também, nem revolta teria.

Conscientização é útil para ensinar o povão a usar mais camisinha ou a fumar menos. Mas para gerar mudanças consideráveis na legislação? Muito difícil imaginar que o brasileiro ponha a mão no coração (provavelmente do lado errado) e comece a enxergar o mundo de outra forma. E mesmo assim, ele esqueceria antes da próxima eleição e votaria nos mesmos de sempre. Então… o que que são essas paradas e marchas? Masturbação pública? Algo pra fazer? Demonstração de poder? Talvez tudo isso ligado a uma inocente vontade de fazer o mundo melhor, seja lá por que caminho.

O que que se ganha com isso? Democracias são feitas de lobbies e acordos longe dos olhos do povão. O segredo do sistema é não concentrar poder demais na mão de ninguém, não depender de conscientização de analfabetos funcionais. Quer algo do sistema? Entre nele. Quer festa e continuar vítima? Sai pra rua!

Para dizer que eu estou mais chato que o habitual, para dizer que eu consegui ofender os dois públicos, ou mesmo para dizer que uma hora os crentes deixam de brincadeira e todos vamos nos arrepender: somir@desfavor.com


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