Águas repassadas.

O Rio Grande do Sul registrou 57 mortes em decorrência das fortes chuvas que atingem o estado, segundo balanço divulgado pela Defesa Civil hoje. O número é maior do que o registrado na enchente de setembro do ano passado, quando 54 pessoas morreram. LINK


Quando é que vamos atualizar o esperado em “choveu mais do que o esperado”? Tragédias repetidas e o brasileiro preocupado com a Madonna. Desfavor da Semana.

SOMIR

Conversando com a Sally, eu mencionei a informação que tinha recebido: ao contrário da tragédia do ano passado, dessa vez o Estado tinha sido informado sobre o que estava prestes a acontecer e até fez algum movimento para retirar pessoas de áreas perigosas. Ela ficou incrédula, não combinava com as notícias do estrago que estava acontecendo, e olha que ainda não tinha batido o número de mortes da enchente de setembro de 2023…

Pois bem, aconteceu mesmo. Teve algum grau de mitigação inicial por causa dos avisos e de algumas ações da Defesa Civil local. Chegamos no sábado e o número de mortos passou da vez anterior, com alta probabilidade de continuar aumentando. O governador do RS já declarou que é a maior tragédia climática da história do estado.

A explicação técnica é que com o aquecimento do oceano causado pelo El Niño, uma enorme frente fria veio em direção ao Brasil, bateu no “domo de calor” que nos inferniza no Centro-Oeste e Sudeste, e acabou despejando toda sua fúria no Sul. Ainda não temos condição de domar a natureza nesse nível, mas nada do que aconteceu era imprevisível. Não choveu mais do que o esperado, choveu o esperado com essas condições acumuladas.

Considerando quanta gente morreu e as dificuldades de resgatar muita gente que ficou ilhada, fica evidente que falta infraestrutura básica até mesmo numa região mais rica como o Rio Grande do Sul. Até japonês morre quando a natureza joga suas cartas mais pesadas, ninguém está dizendo que existe uma forma de evitar estragos e tragédias de vez, mas um terremoto da mesma intensidade não mata 5 num país e 5.000 em outro à toa.

Quando o lugar tem a infraestrutura necessária para lidar com grandes eventos naturais, avisar com antecedência e colocar equipes do Estado na rua funciona e muito. Sério que precisou dessa chuva para perceberem que helicópteros não funcionam bem se ainda estiver chovendo? É mesmo um choque perceber que a chuva vai alagar vales e destruir casas construídas nas margens de rios sem métodos de contenção?

Impressionante como ainda existe alguma conversa sobre mudanças climáticas aqui: quando estamos falando dessa parte de eventos extremos que matam pessoas, pouco importa se é causado ou não por emissões humanas. Lacrar em qualquer sentido é irrelevante: estamos vendo na prática que uma série de alterações nos padrões climáticos estão causando secas e enchentes em níveis e lugares que não tinham esse problema antes. Discutir sobre o perigo de canudinhos plásticos ou sobre conspirações judaicas não vai mudar quanta chuva cai.

Todos podemos no unir observando a realidade: estamos numa fase da história do planeta que está potencializando chuvas e secas. Isso não se resolve argumentando, apenas melhorando a estrutura que temos para salvar vidas. E essa estrutura só existe se for feita antes da tragédia, justamente quando o povo não se importa com isso, não gera voto e é capaz até de fazer o político se tornar muito impopular.

É por isso que esse tipo de obra e planejamento tem que ser política nacional, vem de cima para baixo, tirando a pressão do governante local de fechar uma avenida, fazer uma obra que dura anos e irrita todo mundo, gastar com equipamentos que o povão raramente vai ver… prevenção de desastres tem que ser parte da cultura do povo. Não é parte da cultura brasileira, aquela que chega atrasada em todo compromisso e passa metade da vida presa em filas.

Tanto não é cultura que o assunto da semana está dividido entre uma tragédia sem paralelos no RS e o show da Madonna em Copacabana! Eu não acho que salvaria nenhuma vida cancelar o show, não acho razoável pensar assim, mas é fato que o povo bota todas as tragédias na “conta de Deus” e segue a vida como se nada. Se tiver uma desgraça e morrerem uns 30 no show é bem possível que o cidadão médio fique mais triste… especialmente porque desses 30, 29 serão LGBTQi++. Empatia seletiva.

O que acontece no Rio Grande do Sul, até pela repetição num prazo muito curto, deveria ser um tapa na cara do brasileiro sobre como o país não está preparado para… nada. Pode colocar um monte de sensores e técnicos numa salinha para avisar dos desastres que não vai mudar nada se as autoridades não tiverem planos e meios de dar conta do problema.

Não resolve se na hora de tentar salvar as pessoas, descubram que os helicópteros não dão conta de viajar até as áreas alagadas. Não adianta colocar gente em abrigo de enchente e ter que esvaziar o abrigo porque ele está prestes a encher de água! Controlar a chuva não vamos. É bem possível que esse tipo de evento comece a ficar mais e mais frequente, a temperatura média dos oceanos não para de subir, e isso impacta muito quanta chuva cai nos continentes.

Reduzindo ou não as emissões de carbono, a Terra se move em longos ciclos, e o que começou agora pode durar séculos, milênios… todo mundo tem que ter planos, obras e equipamentos para lidar com esse tipo de situação. E vai ser o mesmo que nada soltar tudo nas costas de prefeituras, que não conseguem/querem tirar gente de área de risco, que não vão colocar dinheiro em obra invisível como galerias de escoamento, que muitas vezes nem tem o cérebro necessário para planejar qualquer coisa mais que uma semana no futuro. Se você acha que presidentes e deputados são intelectualmente limitados, não queira conhecer prefeitos e vereadores de cidades pequenas. O mais esperto é terraplanista…

E como a Sally fez em seu texto premonitório, eu tenho que dizer também: se for para ficar nesse modo de apenas reagir ao desastre da forma mais superficial possível, a natureza consegue pisar na humanidade com mais e mais força. Estou realmente considerando que as mudanças climáticas serão uma forma de seleção natural de Estados. Só vai sobreviver quem se adaptar.

Para dizer que foi a vontade do seu deus, para dizer que sou homofóbico por criticar o show da Madonna e o governador do RS no mesmo texto, ou mesmo para dizer que o texto da Sally serve para tudo: comente.

SALLY

Hoje o que vocês lerão aqui é um salto de fé. Por motivos de “quero descansar, vou viajar para o fim do mundo, não me importunem”, eu estou escrevendo este texto no dia 26 de abril, ou seja, mais de uma semana antes da data da coluna.

Eu sou louca? Sim, mas isso não vem ao caso. Decidi fazer isso não apenas para não ter que trabalhar no meu sagrado momento de descanso, mas também para provar um ponto que é o que eu julgo o Desfavor da Semana: é tudo muito previsível, estagnamos e estamos andando em círculos.

Mesmo sem ter a mais remota ideia de qual será o tema do Desfavor da Semana eu consigo escrever um texto tocando no assunto, ainda que de forma não específica, mas alcançando o cerne da questão. Quer ver?

Três grandes problemas permeiam o país: a incompetência, a corrupção e a desumanização. A incompetência é a mãe, que gera esses dois filhos feios.

Um Estado incompetente não provê o mínimo para que as pessoas possam nascer, crescer e se desenvolver com dignidade, com condições mínimas de aprendizado, com uma cabeça pensante e empatia.

Isso gera os dois filhos feios: a corrupção e a desumanização. A corrupção vem como consequência de cada um não conseguir fazer a sua parte, desempenhar seu papel, cumprir suas obrigações da forma correta. Se você quer que seja feito ou se você quer que seja bem-feito, tem que pagar um extra.

A desumanização vem do somatório da incompetência com a corrupção. Ou a pessoa entra no modo “sobrevivência” sem tempo para se preocupar com os demais ou não consegue dar conta da sua vida. Ou a pessoa fecha os olhos, nega, esquece, ignora o horror que é a sociedade atual (injusta, desigual, cruel) ou se deprime, vive triste, não aguenta ficar no país. A desumanização, no Brasil, é quase que um mecanismo de sobrevivência e manutenção da saúde mental

E quanto está tudo assim, tão errado, as pessoas são soterradas por uma desesperança, por uma impotência, por um conformismo forçado. Mudar todo um sistema é uma tarefa hercúlea e dá depressão, medo e/ou ansiedade só de pensar.

Então, se cria um pacto social tácito e perverso de que as coisas são assim, com atenuantes como “todo lugar tem problemas”, “mas o Brasil também tem muitas coisas boas”, “tem que tentar ser feliz com as coisas como estão” e similares. As pessoas repetem isso para si mesmas e para os outros e retroalimentam essa crença, em vez de olhar para o problema e resolver. As pessoas parecem dedicar boa parte de seu tempo e sua energia para se convencer e convencer a terceiros que o Brasil não é tão ruim assim.

É. O Brasil é tão ruim assim e dizer isso não é um ato de desamor pelo país. Muito pelo contrário, tapar o sol com a peneira é que é, pois impede que as questões sejam olhadas e resolvidas. As coisas que acontecem no Brasil, se analisadas em quantidade, qualidade e intensidade, não acontecem em nenhum outro país que tenha um patamar de desenvolvimento similar. Não como regra.

Eu coleto notícias para “A Semana Desfavor” há quinze anos, eu te garanto que a quantidade e qualidade das coisas que vemos semanalmente no Brasil não tem comparação. Aí vai a pessoa e pega uma notícia de um evento que aconteceu uma vez em um país europeu e grita “Tá vendo? Lá também acontece!”. É muito triste ver esse grau de cegueira, pois isso significa que, graças a ela, as coisas não vão melhorar, só serão maquiadas pelos políticos, pela mídia e pelo povo.

Mas, mesmo o que negamos, é percebido por nossa mente. Por mais negadora que seja uma pessoa, a verdade está lá dentro, em alguma camada muito profunda do seu inconsciente. E quando não permitimos que ela saia, ela transborda de alguma forma: muita bebida, drogas, vícios sociais como religião ou sexo, uma agressividade excessiva, descontrole emocional, burnout, ansiedade, síndrome do pânico, depressão e muito mais.

Não dá para varrer as coisas para debaixo do tapete da sua mente impunemente, por mais que todo mundo acredite que dá. Em algum momento isso transborda. E quando você vive em uma sociedade na qual quase todo mundo está transbordando isso, sente uma aura de normalidade e o que deveria ser um sinal, um alerta, vira uma forma de funcionar que é normal, afinal, quase todo mundo está assim.

Isso gera um Inception de problemas: o problema do país que ninguém olha se transforma em um problema de saúde mental da pessoa que também não é olhado. E todo mundo fingindo que é normal, que a vida é isso mesmo e que tem que se adaptar a isso. E tudo vai afundando cada vez mais.

E quando esse transbordar calha de ser algo de repercussão pública, algo grande que chama a atenção de todos (pode ser idoso morto levado ao banco ou qualquer que seja a barbaridade que tenha acontecido nessa semana na qual eu estou off), as pessoas ficam sem entender muito bem de onde vem.

E não entender, não ter controle, não ter explicação é algo para poucos. A maioria fica em pânico com qualquer não saber. A maioria não consegue olhar para algo, não ter uma explicação e ficar em paz. Então, vem as explicações prontas, que, quando muito, roçam a superfície do evento, mas não chegam nem perto da causa real que o gerou.

A violência é culpa dos videogames, as doenças são culpa da indústria farmacêutica que te adoece para depois vender remédio, a pessoa só é viciada em drogas pois falta Deus na sua vida, a chuva que alaga, inunda, derruba e mata é “choveu mais do que o esperado”. Dá para ficar até amanhã listando as explicações truncadas, burras e superficiais que se inventam para não mergulhar fundo no problema, pois mergulhar fundo no problema gera desespero.

E a parte mais curiosa é: se todo mundo mergulhasse fundo nos problemas que assolam o país e até o mundo, eles seriam fáceis de resolver. Basta cada um fazer a sua parte, em vez de tentar mudar o mundo, criar ONG, criar campanha, criar iniciativa. É assim de simples: foca 100% em fazer a sua parte e ser uma pessoa melhor, ética, correta, com zelo pela excelência em tudo que faz, empática, amorosa. Mas… todo mundo se acha ótimo e o problema são os outros, é o outro que precisa ser salvo, ser informado, ser corrigido.

Então, o círculo vicioso continua, com as mais diversas alegorias. Não importa qual seja o problema da vez esta semana, com certeza este é seu mecanismo de funcionamento. E enquanto não olhar para isso, nada se resolverá. Será um eterno enxugar gelo, resolvendo cada problema do dia, da semana, do mês, em vez de cortar de uma vez esse mecanismo e gerar uma vida melhor.

Paremos de andar em círculos. Hora de mergulhar fundo no problema.

Para perguntar se eu sou vidente, para dizer que este texto se aplica a todos os desfavores da semana de 2024 ou ainda para se indignar por eu ter um período de folga: comente.

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Comments (14)

  • Sally e Somir, atualmente trabalho na área da ssp, e, também, em uma das cidades mais afetadas pelas enchentes. Logo, vivencio nas duas esferas a tragédia.
    Sinceramente, embora houvesse a previsão, era inimaginável o nível da catástrofe (ao menos para a população em geral).
    Sabíamos que havia riscos, nada como o que estamos vivenciando.
    Os alertas vieram e continuam vindo agora, momento em que a crise está instalada.
    O fato de nunca termos vivido algo assim nos ajuda a permanecermos incrédulos. Muitos demoram a sair do local em razão da incredulidade.
    Há muitos bairros nas cidades em que pensamos “aqui a água jamais vai chegar”, e ela chegou. (Sim, me incluo dentre essas pessoas, porque era realmente inesperado).
    É a mea culpa que a população deve fazer por não ter evacuado a tempo.
    Não quero defender governo ou adentrar em política, e realmente me parece muito difícil que alguém imaginasse o nível a que chegou a catástrofe.
    O número de mortos aumentará MUITO.
    Há bairros em que as pessoas se recusaram a sair e não houve tempo hábil para prestar o resgate. (E a recusa era pela incredulidade que citei anteriormente).
    Há relatos de corpos boiando. Há um áudio já divulgado na mídia em que um bebê foi confundido com uma boneca boiando na água, e uma criança pediu para pegar e era o bebê morto.
    Houve roubo de barcos utilizados no salvamento. Alguns faccionados também exigiam que seus familiares fossem retirados primeiro dos locais atingidos.
    Nos abrigos há furto de mantimentos e roupas para revender à própria população abrigada, roubo, tráfico de drogas, risco e histórico de abuso sexual dentre outros crimes.
    Enfim, poderia ser uma tragédia anunciada, mas essa, de fato, não acreditávamos que teria essa força e alcance. Não foram alcançadas apenas áreas de risco. Foi MUITO além.
    Essa tragédia anunciada nos foi contada pela metade, infelizmente.

    • A questão é: em outros países também está chovendo muito, em alguns casos, até mais do que no Brasil, mas existe infraestrutura para escoar essa água, existem barragens que não rompem, existem medidas que evitam essa proporção de calamidade, chovendo mais ou menos do que o esperado. Não é possível que uma chuva, por mais fora do comum que seja, cause isso que está acontecendo.

    • Entendo o que você diz e os relatos são terríveis mesmo. O ponto sobre ser previsível tem relação a um aviso claro e inequívoco da natureza que o jogo já tinha virado. O Japão também sofre quando o terremoto é absurdamente violento e a tsunami gigante. Mas quando a natureza senta a pata de verdade, a estrutura estava lá, e não vão descobrir na hora que não dá para subir helicóptero na chuva. A partir de um grau de violência natural, claro que ninguém se vira muito bem e eu não estou nem argumentando isso. Continue nos atualizando quando puder, e se estiver em área afetada, se cuide.

  • Não dá pra entender. Já seria a terceira enchente no mandato do Governador Eduardo Leite (Derramado). Só se mexe quando a água bate na bunda? E, pelo jeito, vai bater ainda mais nos próximos dias…

  • que não vão colocar dinheiro em obra invisível como galerias de escoamento

    E que mesmo quando colocam dinheiro nessas obras, as mesmas são mal executadas.

      • Pessoalmente DUVIDO e muito que isso mude. Fazer as coisas por obrigação de modo negligente é o modo de funcionar do Brasileiro Médio.

  • Como sempre, a mesma pregação de uma solução individualista, conformista e covarde, que apenas produz pessoas obcecadas em criticar os que tem a dignidade de não se conformar com a realidade e tentam mudá-la, o mínimo que for. Duvido que mesmo na ausência da Dona da Verdade o outro tenha a hombridade de não censurar esta justa crítica.

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