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Sofridos.

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| Desfavor | | 31 comentários em Sofridos.

+Uma americana cujo filho morreu de leucemia conseguiu incluir uma imagem desbotada do menino em suas fotos de casamento e gerou comoção nas redes sociais. A mulher afirmou que a ideia de excluir o filho, morto aos oito anos, das fotos do casamento era “insuportável”.

Tem mais:

+Inconformados com a morte do único filho, picado por um escorpião, um casal de fazendeiros do interior paulista decidiu tomar veneno. O marido morreu, e a mulher está internada em estado grave.

Longe de nós fazer pouco do sofrimento alheio, mas… o ser humano parece cada vez menos capaz de lidar com ele. As notícias dessa vez são meros exemplos de algo bem maior… desfavor da semana.

SALLY

O ser humano está desaprendendo a sofrer. O que parece bom em um primeiro momento, é assustador ao analisar com mais cuidado.

Várias notícias nesta semana dão indicativos do que vamos discutir hoje, mas, a que mais me chamou a atenção foi uma mãe DEMENTE (não tem outra palavra para definir quem se porta assim) que fez questão de inserir fotos do seu filho morto,via photoshop, em seu álbum de casamento, como se ele ali estivesse.

O ato em si é estranho, mas eu poderia lidar com a excentricidade. O que me embrulhou o estômago foi a justificativa: segundo a mãe, a ideia de excluir o filho das fotos de casamento era “insuportável”. Oi? Ele foi excluído da sua VI-DA e você é obrigada a conviver com isso, mas da foto do casamento não dá para lidar? Foto > vida. Mas, aparentemente, só eu fiquei chocada, o resto das pessoas se comoveu e elogiou a iniciativa.

Outro caso estranho: os pais de um menino que morreu por ter sido picado por um escorpião acharam que a melhor forma de resolver isso era tomando veneno. O pai já morreu, a mãe está internada em estado grave. Longe de mim querer julgar a dor da perda de um filho, é algo que eu, por não tê-lo, jamais saberei mensurar. Mas desde sempre pais perdem filhos e tocam suas vidas para frente, então, convenhamos, deve ser possível.

O que eu vejo desses sucessivos casos (nas semanas anteriores também apareceram alguns) é que, por um conjunto de fatores, as pessoas não conseguem mais lidar com sofrimento.

As redes sociais, que emulam um mundo perfeito criado pelo usuário, cheio bons ângulos, informações felizes e sucessos, contribuem para isso. Todo mundo é feliz em rede social. É perfeitamente possível pintar uma cara de família feliz na mais disfuncional unidade familiar. É possível pintar amor no mais infeliz dos casamentos. É possível escolher a imagem que você quer transparecer. Mas, quando morre um filho, essa possibilidade de mundo falso cor de rosa desaba, não dá para simular que seu filho esteja vivo. Aí surgem demências como a de tentar inseri-lo depois de morto em eventos comemorativos com o recurso do photoshop.

Além de viver mais nesse “mundo de faz de conta” virtual do que no mundo real (rede social como forma de negação chegou para ficar), tem ainda um complemento para suportar as poucas horas de vida real: remédios. Hoje em dia, qualquer ansiedade, qualquer pequeno sofrimento idiota, repito, IDIOTA, como término de relacionamento, é motivo para tomar remedinho controlado. Ninguém se permite ficar triste, vivenciar o sofrimento e superá-lo pelo caminho normal. Não, o brasileiro é esperto, o brasileiro sempre que atalhos. Tome fluoxetina, tome rivotril, tome qualquer merda, mesmo que seja pinga, que aplaque aquele sofrimento e ele não precise ser vivenciado.

Pessoas fracas, covardes e desestruturadas compram uma felicidade química para suportar suas vidas de merda em vez de usar o sofrimento como combustível para melhorar sua realidade. Não. Melhorar não parece uma opção, as pessoas não tem força para dar uma virada na sua vida. Elas cospem uma dezena de justificativas que usam para enganar a si mesmas tentando convencer como uma virada não é possível, sempre por motivos alheios à sua vontade. A pessoa nunca tem culpa, a pessoa nunca é covarde. A pessoa nunca é fraca. São sempre motivos de força maior.

Ao menor desconforto emocional a pessoa simplesmente desaba. Vejam bem, não estou dizendo que a pessoa tome remédio por sentir um pequeno desconforto, o sofrimento é real. O que estou dizendo é que hoje as pessoas parecem sentir sofrimentos monstruosos por pequenas coisas. A falta de estrutura, de capacidade de frustração e de lidar com as adversidades da vida, típicas de adolescentes, acometeu esses adultos infantilizados que hoje são maioria no Brasil.

Ao não conseguir suportar o sofrimento, a pessoa apela para negação, vícios e remédios para aplacar a angústia, a ansiedade e o sofrimento. É remédio para dormir, é remédio para controlar o humor, é remédio para qualquer incômodo. E os médicos prescrevem mesmo, não querem nem saber. Remédio é a solução para transtornos emocionais. Não vamos tratar a fonte, vamos entorpecer o paciente para que ele não sinta, enquanto aquilo continua ali. Fazer terapia? Não, não. Revirar as próprias merdas para resolver ninguém quer. Todo mundo tem um “bom motivo” (geralmente encharcado de ignorância e arrogância) para não fazer terapia e pegar a via fácil, o atalho: o remedinho milagroso.

Pois, adivinha só? De tempos em tempos a vida agracia a todos nós com eventos trágicos. E sofrimento é como musculação: quanto mais você faz, mais preparado está. Quem vivenciou um sofrimento em todas as etapas, de forma saudável, certamente está muito mais fortalecido para passar por novos sofrimentos e elaborar a perda de forma mais serena e centrada, pois aprendeu com as experiências anteriores.

Já esses faniquiteiros, para sempre terão que se entorpecer cada vez que um obstáculo mais doloroso cruzar seu caminho. Desmontam como crianças, não tem a menor estrutura para suportar nada e nem ao menos se dão conta do mal que estão fazendo a si mesmos e à sociedade. E quando o mal estar é permanente, praticamente eterno, como no caso da perda de um filho, se tornam pessoas eternamente disfuncionais movidas a remédio.

Vivenciar o sofrimento em uma experiência ruim faz parte do que nos faz humanos. Não estou pedindo que ninguém viva sofrendo, apenas dizendo que o sofrimento é uma construção do que somos. É necessário passar por períodos de sofrimento e superá-los (ou ao menos tentar superá-los) sozinho, e isso leva tempo. Essa geração imediatista não consegue elaborar uma perda, lidar com uma frustração grande ou se levantar sozinha quando cai. Perdeu o emprego? O casamento acabou? Remédio. E assim estão, sem um pingo de estrutura.

Nada contra quem realmente tenta se reerguer sozinho mas não consegue. Essa é a intenção real desse tipo de medicamento: ajudar quem cai em uma espiral de sofrimento que desencadeia um desequilíbrio bioquímico do qual a pessoa não consegue sair, por independer de força de vontade. Meu máximo respeito a quem toma remédios nessas condições. Mas meu desprezo absoluto pela idiotinha que se enfia em remédios no segundo mês após o fim do casamento, porque se diz “deprimida”. Existe uma imensa diferença entre estar triste e estar deprimido. Tolerem a tristeza, não sejam tão frouxos. Não conseguir passar dois ou três meses triste é muita paumolescência!

Não tem necessidade de sofrer? Se você pensa assim, pense novamente. Tem sim. O sofrimento nos ensina, nos fortalece, nos prepara, nos deixa mais sábios. O que não tem necessidade é de ficar anos afundado em um sofrimento que não passa, pois transcendeu o estado de ânimo e migrou para uma condição bioquímica. Muito diferente de tomar remédio com poucas semanas de sofrimentos, apenas por não querer passar por aquilo.

Muito triste essa geração cuzona que não consegue superar sofrimento de cara limpa! Muito medo do que essa sociedade vai virar. Ainda bem que não deixo herdeiros.

Para distorcer minhas palavras, para se ofender ao perceber que toma remédios por frouxidão ou ainda para dizer que a culpa de tomar remédios é nossa pois A Semana Desfavor te deprime: sally@desfavor.com

SOMIR

Falo com experiência: essa coisa de tentar suprimir ou mesmo ignorar os sentimentos ruins da vida não costuma funcionar. Embora seja muito lógico concentrar-se nas partes boas da vida e tentar eliminar as ruins, é uma lógica capenga… porque ignora o fato de o sofrimento é inevitável. Você pode passar anos e anos mantendo-se resistente às intempéries da vida, mas uma hora ou outra alguma coisa sai do seu controle e você tem de lidar com esse lado ruim da vida. E aí, se você não treinou bem seu plano de ação em emergências, lida especialmente mal com a situação.

O equilíbrio forçado de manter-se “imune” ao sofrimento pelo máximo de tempo possível não compensa o tombo muito maior que se toma quando ele invariavelmente bate à sua porta. Escutem a voz de quem tentou: provavelmente vai dar errado. Lidar com o sofrimento é uma necessidade básica da vida humana que precisa ser exercitada quando a ocasião se apresenta. Ou faz isso, ou lida com uma flacidez nas suas resistências na pior hora possível. Não é uma boa coisa, já adianto.

Pois bem, não é isso que se diz para as pessoas atualmente. O sofrimento é cada vez mais tratado como uma doença antiga prestes a ser erradicada, pelo menos entre quem pertence a um grupo social mais privilegiado. Sofrer é excesso de bagagem! A vida ideal é o melhor dos oitenta selfies que você tirou naquele dia, um momento congelado no tempo manufaturado para expor felicidade e adequação numa sociedade fascinada por aparências. Parecer feliz é o suficiente para se ser feliz.

E é aí que a realidade discorda da fantasia. A vida também é aquela bateria de poses pouco fotogênicas descartadas antes da postagem. Num texto recente, aqui mesmo num Desfavor da Semana, eu falava sobre como a felicidade fabricada estava moldando até mesmo as memórias das pessoas, transformando em fatos os momentos criados estrategicamente para simular uma realidade mais agradável. É muito humano se perder em versões mais aceitáveis da própria existência.

O que eu tentei ativamente suprimindo sentimentos ocorre de forma mais sutil com tantas outras pessoas. Ao invés de tentarem se enganar com a ilusão de controle emocional, começam a acreditar nas próprias mentiras e vagar perdidamente por um mundo idealizado de imagens controladas, distanciando-se da realidade. Mas a realidade pouco se importa com nossos desejos, eventualmente ela encontra seu caminho vida adentro acompanhada por infecções oportunistas, sensações ruins para as quais não se desenvolvem mais anticorpos.

E aí, o desespero toma conta. Gente que perde o controle sobre os próprios rumos pela dificuldade enorme de lidar com o que a incomoda. Aí, qualquer rumo serve. Até mesmo os mais destrutivos, tudo para evitar sentir algo que deveria fazer parte de qualquer vida. O medo de encarar o elefante na sala reduz consideravelmente a habilidade de se mover livremente dentro dela. A pessoa fica restrita a comportamentos destrutivos e sedação, na esperança de que seus problemas simplesmente desapareçam.

O tempo é o melhor dos remédios, mas ele precisa ser administrado. Não existem atalhos para o sofrimento, ele tem seu tempo de inoculação e não vai se dobrar para ninguém. Mesmo a mega indústria das drogas alteradoras de humor acaba não sendo páreo para os problemas mais comuns da vida humana. Acabamos com gente incapaz de lidar com perdas, tentando preencher o vazio com qualquer coisa que caiba ali. Mas não é assim que funciona… o processo precisa ter começo, meio e fim.

Acabamos vivendo numa era onde sofrer é visto como algo curável, um problema pontual para qual existem várias soluções que não passam por “curtir” a dor até ela ser absorvida de volta pela mente. Infelizmente a realidade não aceita esses truques, cobrando sua conta sem nenhum desconto, mais cedo ou mais tarde. Eu adoraria que existisse uma pílula para eliminar um problema de sua vida, mas na verdade o que elas tendem a fazer é te anestesiar. O problema volta assim que puder.

O ser humano acreditou tanto nessa história de vida perfeita que foi empurrada goela abaixo pela indústria da aspiração que considera cada vez menos a possibilidade de simplesmente ficar triste pelo tempo que sua mente julgar necessário. Não, o correto é encontrar atalhos, evadir esse imposto e fazer de conta que tudo está bem.

Mesmo quando não está. E é nessa hora que vemos as consequências dessa negação medrosa: mais pessoas perdendo a habilidade de funcionar no mundo por qualquer tipo de problema. Encarar o que te deixa triste virou sinônimo de não tratar a doença, como se fosse o mesmo grau de irresponsabilidade. A capacidade de reagir às dificuldades da vida é mais do que uma pílula anestésica mágica, é uma capacidade que se exercita até se ter força o suficiente para resistir à dor, independente de seu tamanho.

Sofrimento é um disco antigo que ninguém mais quer escutar, mas que sempre vai ter um disposto a fazer-nos escutar. Você que decide se vai ouvir ou não.

Para dizer que sofrimento é ler este texto, para reclamar que eu não entendo o que você sente (provavelmente entendo), ou mesmo para dizer que essa vida é chata demais sem se estar dopado: somir@desfavor.com


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