Homens vivem sendo chamados de viados. E pelos mais diversos motivos, na verdade, considerando a média das vezes que se escuta essa palavra, “viado” serve até como substituto para “você” ou mesmo “amigo” dependendo da informalidade da conversa. Homens tem esse jeito estranho de demonstrar afeto. Essa conotação, tirando pessoas muito inseguras ou desabituadas à brincadeira, nunca foi motivo para ninguém se incomodar. Mas, de uns tempos pra cá, venho percebendo que nem mesmo os contextos onde realmente se sugere homossexualidade andam incomodando tanto assim os homens. Ou, eu estou de viadagem mesmo…

Claro, sempre vai ter aquele que vai se emputecer ao ouvir, o que não falta nesse mundo é gente que se abala com bobagem, mas tem algo sim acontecendo diante de nossos olhos. É como se a humanidade tivesse gastado tanto a palavra que ela está perdendo o significado. Tem um episódio ótimo do South Park sobre isso, onde os garotos não entendem que chamar alguém de viado pode ser entendido como uma sugestão de orientação sexual pelos adultos… para eles, viado é alguém que enche o saco, nem registrava como algo relativo à sexualidade da pessoa.

E isso eu acredito que aconteceu mesmo, a banalização do vocabulário inflamatório pós internet veio com tanta força que as gerações mais jovens não enxergam mais tantos significados complexos nele. Babaca e viado num mesmo pacote, praticamente indistinguíveis. Quem quer procurar cabelo em ovo vai dizer que continua tudo ruim porque o termo que definia a sexualidade continua sendo pejorativo, mas basta pensar um pouco para perceber que o termo sempre teve a mesma função, mas agora o que a pessoa acha atraente sexualmente nem faz mais diferença no resultado final.

É a linguagem acomodando o incômodo cada vez menor do ser humano com o significado histórico da palavra. Preconceito ainda existe, evidente, mas se passar uma linha de corte numa educação mínima e baixo grau de lavagem cerebral religiosa e/ou vitimista, a média simplesmente não se preocupa mais com essa bobagem. Willys e Bolsonaros latem, mas a caravana passa. Por que, em pleno século XXI, com 7 bilhões de humanos apinhando esse mundo, poucas coisas são menos úteis de se discutir como problema social do que atração pelo mesmo sexo. Humanos tem direitos, ponto final.

O que eu percebo claramente com o passar dos anos é que homens se incomodam cada vez menos até com a presunção alheia de serem gays. Antes eu precisava me travar bastante para que meu senso de humor não criasse uma impressão errada de conforto com a presunção, mas agora minhas piadas costumam correr livremente, muita gente até entrando no clima. Certa vez, numa roda de amigos, fizeram uma piada que eu formava um casal com outro homem… eu achei engraçado definir a dinâmica de quem era o macho da relação, e o argumento durou horas. Consigo lembrar de tempos onde essa minha reação criaria um clima estranho no ar.

Quer dizer que eu poderia brincar assim em qualquer lugar? Evidente que não. Quer dizer que o preconceito acabou? De forma alguma. Depende imensamente das pessoas com as quais se convive e sua abertura para tal, mas a média das pessoas está se movendo no sentido de tratar o assunto como realmente se deve: como algo que não se leva a sério a não ser que seja realmente sério.

E é aqui que eu puxo o argumento do motivo pelo qual a piada do “viado” tornou-se branda o suficiente para até matar o seu significado original: o uso indiscriminado. Tenho sérias dúvidas de um modelo de correção de rumo social baseado em dramatizar tudo o que se diz. Em punir palavras e piadas como se elas fossem a raiz do problema. Vai me ficando claro que o humor age como uma espécie de anticorpo para a doença da intolerância. Que tratar um tema com leveza efetivamente o deixa mais leve.

Essa tática de combater fogo com fogo, rebatendo discurso de ódio com uma fúria equivalente… conseguiríamos diluir o termo “viado” tão bem se todos agíssemos dessa forma? Ou será que foi a banalização que voltou para influenciar o preconceito? Pra mim a resposta é clara: numa sociedade onde palavras e piadas são escrutinizadas por milhares de olhos em busca de um motivo para se ofender, como é que as pessoas vão agregar a novidade em suas vidas? Quem é obrigado a pensar no que comunica por esse motivo tende a internalizar ainda mais a conotação negativa do que pensa em dizer.

Ficando no reino das ofensas animais, se o veado importa cada vez menos como termo ofensivo, o macaco não vai ter essa chance, por exemplo. Ou mesmo a galinha, a piranha… os grupos que deveriam estar defendendo a morte dos termos por irrelevância na verdade estão alçando-os a um grau de importância jamais visto. Cada vez que for usado, vai gerar um alvoroço e explicitar ainda mais os preconceitos que já temos. Acreditando você ou não na conotação pejorativa dele.

Curioso que estamos muito próximos de matar o “viado” de vez como palavra que denota algo obrigatoriamente negativo, e a lição não foi aprendida com isso. Talvez os gays tiveram a sorte de poder experimentar esse método antes da grande era do drama virtual tomar lugar na sociedade. Outros grupos marginalizados perderam esse bonde histórico. O projeto de elevar ao cubo o grau de ofensa das palavras que usamos tem todo o cheiro de fracasso sobre ele.

Como o ser humano vai chegar à conclusão que pode acolher e “esquecer” grupos historicamente perseguidos se até mesmo as palavras pejorativas que recaem sobre eles suscitam um estado de alerta, de exceção? Como é que a segregação vai trazer unidade para nós? A maioria dos termos que se usa são grandes bobagens que estariam muito melhor representadas no humor e no deboche, porque é assim que elas evoluem para significados mais generalistas. Gente engraçada costuma ser muito boa para fazer associações imprevisíveis e reverter nossas expectativas até mesmo sobre os significados das palavras que usam.

Infelizmente, esse poder fica mais e mais reduzido. Não temos nem a chance de ver outro caso como o do “viado” repetindo-se em larga escala. Aqui no desfavor adoramos chamar todos os brasileiros de macacos, por exemplo. Brancos, morenos e negros, todos símios. O que é engraçado até porque somos todos macacos no final das contas. Noruegueses, brasileiros e chineses, todos macacos pelados com mais senso de valor próprio do que juízo. Mas, não dá mais tempo de “enviadar” o macaco, retirar desse termo, passo a passo, a presunção de uma ofensa a quem nasce com mais melanina na pele do que os outros.

Não, o “macaco” vai continuar gerando reações explosivas, não deixando ninguém esquecer que ele apontava para um grupo específico de pessoas, meio que reforçando que ele ainda aponta! Curioso que no final das contas eu posso ser heterossexual e ser chamado de viado, mas não vou poder ser chamado de macaco porque sou branco… não parece que algo saiu errado nesse plano?

Acho que no final das contas, o problema desse mundo é ter muito mais viados do que gays…

Para me chamar de viado, para me chamar de macaco, ou mesmo para dizer que eu não “entendo” o verdadeiro problema por ser diferente de você: somir@desfavor.com

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