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Essa pessoa não existe.

Essa pessoa não existe.

| Somir | | 18 comentários em Essa pessoa não existe.

Se você entrar neste site, vai ver a foto de uma pessoa aleatória com todas as características básicas de um ser humano, que, salvo uma coincidência astronômica, simplesmente não existe. Essas faces são criadas por uma inteligência artificial a cada vez que você carrega a página, e eu tenho certeza que um desavisado jamais notaria qualquer artificialidade na imagem.

Já neste site, você pode escrever uma frase (em inglês) e uma inteligência artificial completa o texto com o que acredita ser o tema da frase. Às vezes o resultado não faz muito sentido, mas sendo realista, está mais ou menos no mesmo nível de coerência de um ser humano médio. E com certeza escreve com menos erros gramaticais.

No site das fotos, é utilizado um sistema chamado Rede Generativa Antagônica (GAN na sigla em inglês), que tenta gerar resultados válidos para os pedidos recebidos gerando uma competição entre algoritmos internos. O sistema é treinado com milhões de fotos de pessoas até começar a reconhecer padrões, e vai sendo recompensado de acordo com o quão próximo chega de uma foto de uma pessoa real.

O segredo é reconhecer nos pixels da imagem os elementos que configuram um rosto humano. Olhos, nariz, boca… o básico tem que estar lá. A partir disso, a inteligência artificial vai analisando as variações e detalhes únicos, como gênero, etnia e até mesmo sardas, marcas faciais e pelagem. Usando fotos reais como treinamento, o sistema entende que mulher careca e negro sardento não são combinações muito válidas, recebendo menos pontos quando monta uma imagem do tipo. Do ponto de vista da máquina, nem existe uma imagem, e sim combinações de códigos de cor a cada pixel e sua relação com o vizinho.

Não é como nosso cérebro que já tem símbolos pré-definidos do que configura um nariz, por exemplo. Para a GAN, só existe a informação que combinar pixels daquela forma mais ou menos no meio do rosto costuma gerar recompensas maiores, e como são redes em competição, não sobra muito espaço para inventar: se não fizer algo realista, perde a disputa. O caminho da inteligência artificial é consideravelmente diferente do nosso, mesmo que com o tempo aprenda o que configura um nariz realista, pra ela é só uma regra arbitrária que ele não esteja no meio da testa.

Só que durante um tempo, pra gente também era… nossos primeiros contatos com o mundo são confusos, borrados e sem muitos significados. Para nossa sorte, já nascemos com uma programação avançada de sobrevivência que já prevê um modelo de realidade básico menos as informações. Bebês sabem que estar perto de outro corpo humano é bom, mesmo que ainda não entendam o conceito de “mãe”. Sabem que reconhecer um rosto e formar uma relação é questão de sobrevivência, mesmo que não saibam ainda o que é vida ou morte. A grande diferença entre máquinas e humanos no momento é que já saímos de fábrica com alguma regras essenciais de funcionamento que passam pelo DNA. Não sabe porque diabos o nariz está no meio do rosto, mas vai chorar bastante se tiver o seu tapado.

Já no dos textos, o sistema é baseado no modelo GPT-2, da Open AI do Google. Com base em gigabytes de texto coletados da internet, a inteligência artificial tenta prever a próxima coisa que seria escrita depois de um conjunto de palavras. Já é mais ou menos assim que seu celular prevê o que você vai digitar em sequência nas mensagens de texto. Como dependemos de padrões de linguagem para nos comunicar, temos um conjunto de regras que pode ser aprendido na base da “força bruta” por um sistema com velocidade de processamento suficiente. Não precisa filosofar para presumir que “vermelha” tem precedência sobre “atômica” depois da palavra bola. Nós aprendemos o significado das palavras desde cedo e vamos as concatenando de acordo com o objetivo de cada sentença. Tecnicamente, o trabalho de entender a relação entre as palavras já fizemos por essa inteligência artificial, para ela basta ler o que já treinamos há milênios, mesmo que não tenha sequer condições de entender o que cada frase significa.

Mas… se pararmos para pensar… um bebê não entende o que está falando também. Aprendemos a falar por imitação, até por isso crianças mais novas soltam frases completamente malucas com alguma frequência até entenderem melhor o que cada coisa significa. E levando em conta muito do que se escreve na internet, o campo da escrita ainda é um admirável mundo novo para muita gente. Conhecem as palavras, mas não sabem como trabalhar com elas num meio diferente da fala, treinada desde a infância. Os significados das nossas palavras raramente têm relação direta com o som real do objeto, um engano que inclusive é comum em crianças, chamando cachorros de “au-au” e coisas do tipo.

Nossa comunicação escrita e falada é baseada em uma base de dados pré-existente, o que outras pessoas já convencionaram usar. Cérebros infantis não fazem um caminho tão diferente assim de inteligências artificiais, tentando prever quais palavras costumam seguir umas às outras. A função de recompensa humana é a aprovação dos adultos e conseguir o que se quer através da comunicação, na máquina é um número maior. Eu lembro que quando era pequeno, escutava uma palavra nova e começava a testar onde ela cabia em uma sequência de frases insanas e outras pessoas bem confusas, claro que com a diferença essencial que eu tinha alguma noção do sentimento relacionado à palavra, coisas que máquinas ainda não são capazes de entender.

O método humano ainda é mais complexo e completo. Até porque temos sistemas de recompensa internalizados para desenvolver habilidades de comunicação e socialização, mas a forma como armazenamos informação não deixa de ser através de química e eletricidade. Quem analisar o funcionamento do cérebro humano sem nenhuma base do que a pessoa está pensando e fazendo vai ver só impulsos elétricos e reações químicas aparentemente sem sentido. No fundo, o que nos diferencia mesmo são bilhões de anos de vantagem na corrida pela inteligência generalista. Somos resultado do aprendizado hardcore da evolução, acumulando os acertos de bactérias, peixes, mamíferos e macacos num “processador” do tamanho de um planeta.

Máquinas nada mais são do que uma continuação do processo evolutivo. Sem o primeiro ser que saiu do mar para viver na terra, sem o rato que sobreviveu a uma era glacial, sem o macaco pelado que aprendeu a domar o fogo, nenhuma inteligência artificial seria possível. Tanto que os avanços recentes são baseados na ideia de redes neurais, pequenas partes que não entendem o todo, mas que em conjunto conseguem os melhores resultados por tentativa e erro. Nenhuma linha de código precisa entender a complexidade do universo, assim como nenhum neurônio seu sabe mais do que receber e enviar sinais de acordo com estímulos específicos.

A ideia de evolução é muito maior que uma Teoria da Biologia, é um olhar para o mecanismo de funcionamento da realidade: as partes que formam o todo não precisam entender o todo. As mitocôndrias que estão nas suas células produzindo energia só estão se mantendo vivas. As bactérias que fazem sua digestão aprenderam que viver em estômagos e intestinos é excelente, por isso não saem de lá. O resultado disso é um ser vivo multicelular, mas não é o objetivo claro de nenhuma das partes. Cada célula só quer seguir sua vida, e a cooperação positiva entre elas (mais células vivas significa maior chance de sobreviver) que torna estruturas complexas possíveis. E é exatamente assim que a inteligência e futuramente corpos artificiais vão surgir: gerando benefícios para todas as pequenas partes do processo até algo maior poder surgir disso.

E como disse, é uma ideia de funcionamento da realidade: você pode aplicar isso para reações químicas (átomos “gostam” de configurações estáveis e vão nos obedecer sempre que facilitarmos isso), para processos de aprendizado (cada neurônio ou parte de uma rede neural artificial tem que estar sendo recompensado pelo seu trabalho) ou mesmo para sociedades humanas. Se as partes não estiverem ganhando nada no processo, o todo simplesmente não funciona.

Para dizer que esse texto tomou um caminho estranho, para dizer que valeu pelos links, ou mesmo para dizer que agora sabe quem escreve os discursos do Trump: somir@desfavor.com


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