Guerra! – OTAN

Semana temática da Guerra no Desfavor. Nós não esquecemos e esperamos que você também não esqueça: a pandemia ainda não acabou.

A Organização do Tratado do Atlântico Norte é uma aliança militar entre diversos países objetivando segurança coletiva. Consiste atualmente de 28 países europeus e 2 norte-americanos. Principal pedra no sapato dos russos, sua expansão é tratada como um dos fatores principais da recente invasão na Ucrânia. Mesmo que o ataque aos ucranianos seja uma covardia, nesse ponto é difícil não conseguir enxergar o lado de Putin…

A Primeira Guerra Mundial demonstrou a força de acordos de defesa coletiva, a Segunda provou sua necessidade no mundo pós-industrial. O mundo ainda lidava com o choque das táticas de guerra alemãs, que em questão de meses dominaram boa parte da Europa. Guerras não podiam mais ser vistas como questões puramente locais, a tecnologia disponível já no começo do século passado permitia projeção de força quase que imediata ao redor do globo.

O que não se fala muito sobre a Segunda Guerra Mundial é o quão perto o Eixo esteve de assegurar o controle sobre o mundo. Os nazistas atropelaram boa parte da Europa; e por alguns meses, parecia que seria impossível segurar os japoneses no oceano Pacífico. Não fosse a resiliência dos ingleses mesmo diante de uma batalha praticamente perdida e o espírito de luta suicida dos soviéticos, não é consenso se a “cavalaria americana” teria realmente feito a diferença.

Depende de quem você ouvir, vão dizer que os americanos ou os russos que ganharam a guerra sozinhos. Isso é uma bobagem. Ninguém ganharia aquela guerra sozinho. Seja como for, assim que a poeira baixou, ingleses e franceses perceberam que o mais seguro seria se unir contra a nova ordem mundial. A União Soviética saiu muito forte da guerra, forte o suficiente para colocar o resto do mundo em alerta.

O acordo entre franceses e ingleses acontece em 1947. No ano seguinte, Bélgica, Holanda e Luxemburgo são adicionados. Não à toa: nas duas guerras mundiais, os adversários dos franceses usaram a Bélgica para passar pelas suas defesas, o caso mais grave na Segunda. No ano seguinte, o Tratado do Atlântico Norte é assinado, adicionando EUA, Canadá e vários outros países europeus. A preocupação continuava a mesma: os soviéticos.

Nos EUA, crescia a paranoia comunista. E é claro, não tinha nada a ver com ideologia, era sobre os espólios da guerra. Tanto EUA quanto União Soviética queriam tomar conta do mundo depois de “ganharem sozinhos” a guerra. Ambos acharam que poderiam pegar qualquer país que quisessem pra eles depois. As antigas potências coloniais estavam lambendo as feridas e boa parte do mundo tinha sido liberado do controle dos europeus.

O primeiro grande embate veio na Coreia. Os russos e chineses apoiaram uma revolução comunista no país, algo que os EUA não estava minimamente interessados em permitir, especialmente considerando que seu novo brinquedo, o Japão, estava ali do lado. O resultado foi a Guerra do Coreia, que hoje todos conhecemos pelo resultado inconclusivo. Os EUA conseguiram defender o sul, mas o norte continuou sob controle comunista.

Mas essa guerra fez com a OTAN se organizasse: abriram seus primeiros centros de controle e já trouxeram Grécia e Turquia para o grupo. O medo era que os soviéticos ajudassem outras revoluções comunistas em áreas de alta tensão e a guerra da Coreia se repetisse em escalas cada vez maiores. Os soviéticos logo perceberam que precisavam da sua própria OTAN, começando o Pacto de Varsóvia em 1955. Foi aí que se criaram duas zonas claras de controle das duas grandes potências, definindo a geopolítica da Guerra Fria.

Que não foi chamada de Guerra Fria à toa: nenhum embate entre nações da OTAN e do Pacto de Varsóvia ocorreu nesse meio tempo. A estratégia era armar grupos rivais com simpatias por um ou outro lado e torcer para dar certo. E como nós da América do Sul sabemos, outra parte importante era instalar ditaduras sanguinárias onde possível para evitar que o outro lado ganhasse algum terreno. A ditadura brasileira foi cruel, mas perto do que nossos vizinhos argentinos e chilenos passaram, até que foi tranquilo. Os americanos não previam a insanidade dos nossos hermanos do sul com a guerra das Malvinas, mas fora isso, o continente americano ficou quase que totalmente controlado pelo lado ianque.

A situação fica relativamente parecida nos quadros na OTAN até a queda da União Soviética. O Pacto de Varsóvia desaparece por motivos óbvios, e enquanto a Rússia está tonta tendo que se refazer como país novamente, a OTAN começa a ocupar mais e mais território. A Alemanha reunida é a primeira a ser adicionada.

Nos anos 90, a OTAN vira sua atenção para o Oriente Médio com a guerra do Iraque, e é aí que começam a pegar gosto pela ideia de controle global. Já em 1992, começam a enviar tropas e equipamentos para controlar a guerra civil resultante da dissolução da Iugoslávia. Era a primeira vez que a OTAN se metia num local que anteriormente era zona de influência soviética. Não estou dizendo que não foram intervenções válidas, estava acontecendo um genocídio na região, mas foi nesse período que muitos de nós de gerações mais recentes começaram a ver a ideia de Nações Unidas e OTAN se misturando.

Quem é dos anos 80 pra frente provavelmente nunca percebeu que tem diferença entre um tratado militar contra a URSS e a ideia de polícia do mundo. Foi a era de potência absoluta dos americanos. E os americanos gostaram da ideia: expandiram seu exército ao redor do mundo em incontáveis bases e se tornaram os protetores oficiais do comércio marítimo mundial. E como é de costume com a polícia, protegiam com muito mais afinco quem era branco ou quem tinha dinheiro… porque a África passou por vários genocídios nesse meio tempo sem resposta nenhuma da OTAN. Ruanda que o diga.

Em 1999, mais uma grande expansão, agora claramente fechando o certo contra os russos. Russos que tentaram entrar na OTAN sem sucesso anos antes. Polônia e mais dois países entraram no clube. Em 2001, acontece o atentado de 11 de setembro, e com isso a guerra contra a “potência militar” do Afeganistão. A OTAN se une para atacar o país asiático na primeira e até aqui única utilização do artigo quinto do tratado: se um país é atacado, todos são atacados. Como os EUA definiram que o inimigo estava no Afeganistão, a OTAN inteira se juntou na guerra. E por guerra eu quero dizer um massacre parecido com os dois realizados contra o Iraque pouco tempo antes. Curiosamente, a OTAN (vulgo EUA) saiu com o rabinho entre as pernas do Afeganistão décadas depois. Tomar a parte “oficial” de um país é rápido, controlar ele de verdade são outros quinhentos.

Em 2004, a expansão que realmente enfureceu os russos: Romênia e os países bálticos entraram na OTAN, colocando os exércitos americanos na porta de entrada da Rússia. Naquele tempo, Putin já estava no poder (mais sobre ele amanhã), mas não tinha muito o que fazer no momento. Mas aquela foi a gota d’água. Fica mais fácil entender o lado russo atualmente quando enxergamos essa história.

O corpo da URSS não estava nem frio quando a OTAN abocanhou a Alemanha toda. E, por que diabos a OTAN continuou funcionando? Quem era o inimigo? Depois da queda dos soviéticos, a Rússia estava destroçada pela mega crise que precipitou a queda do bloco soviético, a China ainda era mato e o resto dos países comunistas eram no máximo piadas. Foi a ganância por poder de EUA e europeus que manteve o tratado funcionando. Era muito mais confortável para eles ter um sistema de defesa de interesses apoiado pelo maior exército do mundo. Não havia mais os soviéticos, mas tinha muito petróleo esperando para ser controlado.

E importante, a OTAN não aceitou a Rússia como membra, e o pedido foi feito pela própria Rússia! Eles queriam estar no time, mas foram rejeitados. Sim, eu entendo que colocar um país em frangalhos sob risco de inúmeras guerras civis seria um perigo para a OTAN, mas nunca se esqueçam: os russos poderiam estar dentro da OTAN. Nada disso que estamos vendo hoje estaria acontecendo. A OTAN poderia ter se dissolvido quando a motivação original se desfez, mas foi mantida por comodidade e interesses financeiros. A OTAN poderia ter adicionado a Rússia, mas não estava com vontade de arriscar suas tropas (e recursos) em possíveis guerras internas russas.

A Rússia foi deixada para se virar sozinha enquanto a OTAN ia passando o trator no Oriente Médio e Leste Europeu. A Europa foi reconstruída quando acabou a Segunda Guerra Mundial, mas a Rússia teve que catar caquinho por caquinho o que se despedaçou com o fim da URSS. Enquanto isso, a “polícia do mundo” foi adicionando mais e mais países no caminho entre Rússia e Europa.

É justo atacar os ucranianos por causa disso? Não, não é. É justo que os russos estejam putíssimos da vida com os EUA e os países ricos da Europa? Muito. Nesse meio tempo, Putin invadiu territórios e negociou com ditadores malucos ao seu redor para tentar combater o controle quase que absoluto dos americanos sobre o mundo. A globalização era uma festa, mas eles não foram convidados. Não é à toa que mesmo com tantos recursos, proximidade da Europa e da China, a Rússia ainda seja uma economia que rivaliza com a brasileira.

Perdoaram a Alemanha, mas não perdoaram a Rússia. A história acabaria com esse país arrasado e preso nos escombros da União Soviética caso a China não tivesse se tornado o gigante que se tornou. A segunda maior economia do mundo não topa o controle absoluto americano, e vê nos russos um braço forte para segurar o avanço americano. Não se enganem, ninguém é amiguinho de ninguém, a China vai dar suporte para os russos enquanto for vantajoso para eles.

E falando em China, apesar da OTAN não estar oficialmente em suas fronteiras, Japão, Coreia do Sul e Austrália são “membros honorários” que com certeza seriam defendidos com todos os exércitos da OTAN caso atacados. A OTAN está no cangote dos chineses também. E se ninguém se levantar para dar um basta, ela vai continuar crescendo para asfixiar qualquer potência que rivalize com os EUA.

A OTAN já teve uma função clara, e concordando ou não com ela, foi algo respeitado por décadas. Com o fim da URSS, ficou muito mais difícil explicar o que estavam fazendo. Protegendo o mundo que não estavam, porque países pobres continuaram sendo controlados por ditadores sanguinários como se nada. Protegeram a globalização econômica e os interesses dos países ricos. Não é papo comunista: mesmo que eu entenda que cada um faz o que pode para avançar seus objetivos, pelo menos que assumam o papel de defensores de uma estratégia de controle econômico ao invés desse papo furado de polícia do mundo.

A OTAN não é a ONU, e se tem alguma coisa de útil nessa guerra, é muita gente percebendo a diferença. Se fosse para defender democracias e a liberdade, já teriam enfrentado os russos com soldados e tanques, não com pensamentos e orações…

Para gastar o dedo no demoji de comunista, para dizer que prefere seus textos com menos opinião, ou mesmo para dizer que o mundo não é dos inocentes: somir@desfavor.com

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Comments (20)

  • LindamÀr Silva

    Eu só me preocupo em não morrer derretida de bomba ou a fumaça que chegar e queimar meu lombo devagar.

    Eu não me importo quem vai ganhar ou se o macarrão vai ficar mais caro.
    Que acabe isso logo!!

  • Estou achando que o Ocidente está dando um tiro no pé com tantas sanções à Rússia. Tão na esperança de criar uma revolta da população contra a regime Putin? Perigoso. Transformá-los na pária do mundo é uma receita pra um ressentimento sem fim (com razão, os USA bombardeia o mundo e não acontece nada, pq que quando é minha vez todo mundo aponta o dedo?) e ascensão nacionalista num futuro se a situação se arrastar (caso a população da Rússia sofra amarguras por muito tempo). Estou torcendo pra que acabe o quanto antes.

  • “E por guerra eu quero dizer um massacre parecido com os dois realizados contra o Iraque pouco tempo antes.” A referência foi às guerras de 1991 e 2003? Nesse caso, a invasão/ocupação/massacre do Afeganistão é intermédia.
    Sidenote: triste lembrar como algumas intervenções militares da ONU foram inócuas. Não só na África, diga-se (os bósnios podem demonstrá-lo).

    • Eu já tinha perdido a conta das invasões no Oriente Médio mesmo… e olha que eu nem coloquei Líbia e Síria no texto, porque foi mais confusão com padrão de qualidade OTAN. Entra, faz uma zona, sai… continua uma zona.

  • Apesar de o assunto ser para lá de funesto, esta Semana Temática do Desfavor está de altíssimo nível. É difícil explicar algo tão complexo como o(s) contexto(s) de uma guerra de forma clara, porque no mundo real não há aquela dicotomia maniqueísta de “mocinhos” e “bandidos”; mas vocês, Paula, Somir e Sally, têm se superado nesta semana.

    É compreensível que a Rússia não queira se ver cercada de membros da OTAN depois de não ter sido aceita no “clubinho” e de ter ficado sem o seu próprio, que era o Pacto de Varsóvia, após a queda da URSS; mas nada justifica o que estão fazendo agora com a Ucrânia. Já há alguma perspectiva para um cessar-fogo em breve ou esse conflito ainda mesmo longe de acabar?

    • Eu li uma análise dizendo que o presidente comediante ucraniano é muito mais esperto que parece. Está tentando entrar na União Europeia enquanto a comoção existe e ao mesmo tempo usando a rejeição à OTAN como moeda de troca com os russo.

      Até semana passada, a Ucrânia não estava próxima de entrar em nenhum desses grupos.

      Digo isso porque apesar do Putin ser muito esperto, do outro lado tem alguém que parece saber jogar também. Pode ser que demore para sair um acordo.

      • Zelensky realmente está tentando fazer o melhor com o que ele tem no momento e achei essa análise bem pertinente. Ele ter dito que a Ucrânia foi abandonada e deixada sozinha perante a Rússia com certeza corrobora isso, embora seja verdade. Você reparou que as equipes diplomáticas ucranianas estão cobrando posicionamento non-stop mesmo de países tipicamente neutros, como o Brasil?

        Por falar em Brasil, uma fofoquinha: um amigo militar me disse, no dia seguinte à invasão, que o batalhão de forças especiais já estava organizando a retirada dos brasileiros da Ucrânia antes que o MRE autorizasse, e ia pedir ajuda para a Polônia. Não sei se é verdade porque ele não é das operações especiais, mas faz sentido dentro do contexto.

        • Pensei que essa postura de “cobrar posicionamento” fosse pouco mais que um protocolo diplomático, algo habitual e previsível a ser realizado pelas representações diplomáticas envolvidas em casos como esses.

  • Seus surtos “comunistas” são sempre legais. Desfavor estourando bolhas desde 2009.
    Pode ser alarmismo de leigo, mas me parece que as coisas podem encaminhar pra uma URSS 2. Os boicotes das grandes empresas vão isolar a Rússia de forma que o governo não precise tomar medidas impopulares como censura e banimento. Eu li algo sobre cidadãos russos estarem sendo hostilizados em alguns lugares na Europa, sei lá se é verdade, mas junto com os boicotes isso vai atiçar um ressentimento da população russa com o ocidente/países liberais. Depois disso é só ligar o grande firewall e em duas ou três gerações tem um regime e um universo à parte consolidados igual à Coreia do Norte ou Turcomenistão.

    • Eu queria ser comunista, mas o pessoal da esquerda não me deixa.

      Pra falar a verdade, eu já estou começando e ficar meio estranhado com os boicotes que estão acontecendo. Tem uma lista de empresas cortando relações com a Rússia… não sei que mensagem passa deixar de vender carro para russo. Eles vão ficar putos, e até com razão.

  • A mídia russa está falando sem parar sobre como a OTAN deveria ter sido desmantelada com o fim da URSS, e realmente é fácil entender por que os russos estão putos.
    Eu consigo entender o lado dos ex-integrantes do Pacto de Varsóvia terem aderido, já que a maioria foi oprimida durante séculos e sequer tinha permissão para existir de forma independente ou falar o próprio idioma. Mas a Rússia também deveria ter sido admitida, mesmo como membro honorário ou com critérios especiais. Também poderia ter proporcionado várias trocas interessantes de ciência e tecnologia… um minuto de silêncio pelo que não pôde acontecer. Infelizmente, agora Inês é morta.

    Ótimo texto, Somir!

    • Eu tenho a impressão que a Guerra Fria marcou tanto as gerações que estavam no poder da época que não conseguiram sair do mindset. É meio como se estivessem esperando aquela cena dos Simpsons onde o embaixador russo aperta um botão e muda a placa para União Soviética na ONU.

      E vindo de você, o elogio tem mais força ainda. Agradecido.

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