Guerra! – Cibernética.

Semana temática da Guerra no Desfavor. Nós não esquecemos e esperamos que você também não esqueça: a pandemia ainda não acabou.

Guerra é guerra, mas as tecnologias mudam. No Século XXI, a fronte digital é mais uma onde as grandes potências investem seus recursos. Sim, vamos falar dos temidos hackers governamentais, mas também temos que entender como um mundo tão conectado exige novas formas de vencer a cada vez mais disputada guerra na opinião pública.

Batalhas acontecem entre soldados como sempre aconteceram na nossa história, mas a cada avanço tecnológico da humanidade, mais e mais elementos são adicionados ao combate. Desde a antiguidade o ser humano está pensando em formas de projetar sua força contra o inimigo ao mesmo tempo que reduz o risco para seu exército. Desde a invenção da lança até o desenvolvimento dos mais poderosos mísseis continentais, a lógica da guerra vai se mantendo parecida: como causar o máximo de dano sem arriscar minhas tropas?

A lança coloca distância entre você e o inimigo, impedindo que ele possa revidar. Um pequeno aparte: a lança é a verdadeira arma das guerras do passado, espada é coisa de filme. Assim como você, seus antepassados não gostavam da ideia de um inimigo fungando no seu cangote. As próximas evoluções da arte da guerra envolviam proteção para o corpo na forma de escudos e armaduras, formações que ofereciam mais proteção, e sempre que possível a capacidade de atirar alguma coisa de muito longe no adversário.

Não à toa, no século XX vimos a guerra assumir a forma de armas de fogo, bombas, tanques e aviões. Assim que a tecnologia permitiu, nos enfiamos dentro de armaduras móveis e começamos a matar o inimigo da maior distância possível. Bom, acredito que todo mundo já entendeu essa ideia básica sobre guerras, não?

Então você vai entender o que motiva os avanços mais recentes das guerras neste século: drones e hackers. A ideia da lança continua a mesma. Drones são aviões não tripulados, controlados por controle remoto. As bombas e armas do drone são ativadas às vezes do outro lado do mundo, e se algo der errado, o piloto só leva uma bronca por ter perdido um equipamento caro. Todo exército que se preze está trabalhando pesado no desenvolvimento e aperfeiçoamento de seus drones. É a máquina perfeita de guerra. Ou… quase perfeita.

Para ter drones eficientes, você precisa ter linhas de comunicação eficientes. Se o seu drone perder o contato com a base, não serve pra nada. Por isso, é essencial ter estruturas de comunicação baseadas em torres de retransmissão de sinais e satélites em órbita para fazer isso direito. Se você consegue cortar o sinal entre a base e o drone, você consegue vencer o drone. Por isso é cada vez mais importante para os exércitos terem sistemas e mais sistemas de redundância na transmissão de seus sinais. Se na Segunda Guerra Mundial já era importante ter um soldado com um rádio no batalhão, imagine só quando seu exército depende de internet para funcionar?

Não basta ser capaz de produzir o drone, você tem que ser capaz de proteger a comunicação que faz o drone funcionar. E essa é uma boa introdução para os cada vez mais importantes hackers militares: todo exército depende de uma infraestrutura muito específica para funcionar. Soldados precisam de água, comida, energia… isso só para continuar no campo de batalha. Para terem alguma função prática, você ainda precisa de munição, combustível, peças de reposição… todas coisas que dependem da estrutura básica da humanidade moderna.

Antigamente, uma das melhores formas de vencer uma batalha era cortar as linhas de suprimentos do exército adversário. Grandes batalhas da nossa história foram decididas não por habilidade de luta, mas por inteligência de tirar dos inimigos as coisas que eles precisavam para continuar lutando. Os hackers militares trabalham com essa lógica: se o ambiente onde o inimigo está parar de funcionar, o inimigo para de funcionar.

E hoje em dia, quase tudo depende de um computador para continuar fazendo o seu trabalho. Se você for capaz de invadir e destruir sistemas, você é capaz de criar consequências reais para o adversário. Não é sobre invadir um site e colocar um palavrão no lugar, é sobre quebrar o sistema que faz a rede elétrica local funcionar, é sobre desconectar e confundir a burocracia que todo exército precisa para se organizar, é sobre tornar a internet um inferno para quem precisa dela para se comunicar.

Os melhores ataques hackers não são chamativos, com avisos mal-educados para alertar sobre sua presença. Causar um problema na rede de celulares de uma cidade de forma discreta é muito mais eficiente: se o adversário não souber onde está o problema, gasta o dobro do tempo para corrigir, tem que achar onde está a modificação maliciosa do hacker e tem que solucionar o problema. Vários países do mundo contam com equipes de hackers, os mais famosos são os russos, mas americanos, chineses, europeus e até mesmo os norte-coreanos tem seus times.

Faz tempo que eu bato nessa tecla aqui, mas não custa repetir: não existe segurança perfeita na internet. É da natureza do processo, qualquer sistema que troca dados com uma fonte exterior pode ser invadido. Como eu já escrevi num texto recente, é impressionante a quantidade de programas de computador mantidos por meia dúzia de gatos pingados, muitos inclusive fazendo isso por gosto e não por profissão. Recentemente encontraram uma falha num programa que milhões de servidores usavam ao redor do mundo, e era algo que poucas pessoas mantinham por hobby.

Eu gostaria de dizer algo diferente, mas a verdade é que boa parte da estrutura digital da nossa sociedade é colada com cuspe. Cheia de falhas e buracos que são exploradas por hackers todos os dias. Os melhores dos melhores ou estão trabalhando para megaempresas que podem pagar por eles, ou estão nos exércitos, com orçamentos igualmente superlativos. Já tem uma “Guerra Fria” acontecendo por baixo dos panos no campo cibernético desde a virada do século.

Quem é esperto e tem recursos já tem hackers experientes trabalhando para seus exércitos, e na Guerra da Ucrânia já vimos alguns sinais de como essa estratégia virou padrão: antes da invasão, os sites do governo ucraniano caíram, colocando a burocracia do país em estado de caos. Não sei se foram hackers ucranianos ou da OTAN (guerra cibernética não tem tratado, faz quem quer), mas a gentileza foi devolvida nos sites do governo russo.

Mas nesses casos, deixaram mensagens de provocação no lugar. Mas eu não acabei de dizer que ataque hacker bom não faz propaganda do que quebrou? E mantenho. Esses ataques hackers são parte de outra estratégia militar do século XXI: a guerra da opinião pública na internet.

De novo, nada inventado recentemente: mexer com os sentimentos do povo adversário faz parte da cartilha militar. Na Segunda Guerra Mundial, os ingleses soltavam panfletos de aviões para contar para os alemães sobre a selvageria dos nazistas que aconteciam longe de seus olhos. Todo mundo fazia algo parecido, seja com papéis ou transmissões de rádio, todos tentando fazer com que o povo que dava suporte ao exército inimigo se voltasse contra ele.

E dá pra voltar mais ainda no tempo: a antiga estratégia de sitiar a cidade era uma mistura de negar suprimentos para o exército e criar uma situação insustentável com a população local. Quando o povão começa a passar fome por causa da guerra, pode se revoltar e entregar o controle para o invasor. A guerra “nos corações da população” sempre foi importante. Exército sem suporte da população é exército fadado ao fracasso. É muito cansativo lutar contra o inimigo ao mesmo tempo que oprime seu próprio povo. Os seus soldados começam a vacilar.

Eu também considero guerra cibernética a fábrica de Fake News e discussões acaloradas sobre quem está certo na internet. Desconfie de todas as notícias saídas de um lado ou de outro da guerra, porque é parte da estratégia manipular a opinião do mundo sobre uma disputa. Antigamente você tentava mexer com a população local, mas hoje em dia o mundo todo olha para sua guerra. Especialmente se ela acontece num lugar onde as pessoas ainda não estão cansadas de ver guerra.

O que nos leva à Ucrânia. Se fosse uma invasão no Oriente Médio ou na África é muito provável que as pessoas não dessem bola, mas como foi na Europa, o mundo todo arregalou os olhos. Nesse momento, começou uma guerra violenta para conquistar aliados online. Mas… será que faz tanta diferença assim o que as pessoas estão falando nas redes sociais?

Olhe para as sanções que a Rússia está recebendo e perceba como faz sim. Não tenho como afirmar se Putin vai desistir por causa disso, mas é claro como isso gera desconforto em seu governo. Os protestos ficam maiores a cada dia, até mesmo o setor privado entrou na onda das sanções. Se isso é razoável ou não eu posso até discutir (cancelamento em guerra é meio patético), mas que a primeira batalha de opinião pública foi um sucesso para a Ucrânia, isso foi.

Hoje em dia toda nossa comunicação passa pela internet. Você precisa considerar a possibilidade de ter um exército virtual: gente que vai defender sua causa sem parar, para gerar pressão internacional sobre o lado adversário. E é claro, usar a grande arma do milênio: as Fake News. Não é de hoje que se criam histórias de sofrimento e heroísmo artificiais durante guerras, mas agora a tecnologia permite que todo mundo receba essas mensagens de forma instantânea. Já sabemos que pouca gente confirma a veracidade dos fatos, já sabemos que as pessoas acreditam em coisas que concordam com seus pontos de vista iniciais…

Políticos populistas aproveitaram a última década para atacar a credibilidade da imprensa, e isso permitiu que qualquer invenção corresse solta pela internet. Então, é só produzir e divulgar sem parar notícias e discursos favoráveis ao seu lado. Quem conseguir mais engajamento e compartilhamentos ganha. Os russos são bons nisso, mas estão enfrentando quase todo o mundo ocidental. Como eu disse antes, não existe tratado para guerra online, estamos vivendo uma era sem regras e sem limites. A informação que você recebe pode e vai ser manipulada.

Não tem mais amador nesse jogo, existem “fazendas” de Fake News e engajamento ao redor do mundo, com gente sendo paga para divulgar informações e convencer indecisos sobre qual o lado “certo” da guerra. Basta ter algumas boas cabeças pensantes no topo da estrutura e milhares de pobres de países com bom acesso à internet para rodar uma campanha de propaganda online. Por trás dos panos, os hackers de cada lado tentam quebrar o funcionamento das estruturas de divulgação do outro.

Quando algo chega na mídia, é porque queriam que chegasse: demonstrar poder virtual e criar a sensação de que existem terceiros realmente envolvidos com a guerra, como se não fossem pessoas pagas para fazer aquilo. Sempre funciona melhor quando o povão acha que não é propaganda.

Mas é propaganda. Sim, tem gente que morde a isca e começa a trabalhar de graça para defender um lado ou outro, mas essas pessoas são felizes coincidências para os exércitos cibernéticos. Basta que a opinião pública de um país comece a enxergar um lado como mais correto que seus líderes se sentem pressionados a agir de forma mais dura. A comoção causada com ucranianos branquinhos de olhos azuis foi suficiente para que o Ocidente fizesse tudo o que podia antes de entrar na batalha oficialmente.

Eu desconfio que exista um prazo para isso parar de funcionar tão bem, tanto Rússia quanto Ucrânia têm muito a ganhar ou perder com o passar da invasão nesse campo. Os russos podem resistir até o mundo ficar entediado com o ciclo de notícias e procurar outra coisa para fazer, mas os ucranianos também podem esperar para ver o quanto os russos aguentam tocar essa invasão com o mundo contra eles. A Rússia tem poderio militar para vencer a Ucrânia umas cinco vezes, mas a guerra cibernética conseguiu manter a resistência ucraniana viva por mais de uma semana. E mesmo se o último soldado ucraniano morrer, o exército virtual vai continuar lutando.

Enquanto existir internet, a guerra vai estar cada vez mais concentrada nela. Não costumamos voltar atrás em tecnologia de guerra.

Para dizer que vai desligar seu computador e ganhar a guerra, para dizer que percebeu que trabalhou de graça, ou mesmo para dizer que finalmente os nerds aprenderam a brigar: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Excelente, Somir! E justamente por saber quão delicado é o papel da internet em conflitos que o Vladimir Putin não as usa pessoalmente. Ele não usa sequer celular corporativo, supostamente para evitar riscos de vazamento de informações. E nem assim consegue garantir.
    A diferença de tom entre os sites de notícias ocidentais e russos é muito nítida. O Sputnik já caiu, fui dar uma olhada no RIA Novosti (os dois são do Kremlin) e estão dizendo que o Zelensky se escondeu em um bunker na Polônia, chamando a operação de “desmilitarização”, etc. Mas isso não é novidade, os números de mortos em combate que a Ucrânia divulga também estão um pouco inflados demais. Quando estava na faculdade, tivemos altas discussões sobre fake news serem ou não uma forma de terrorismo nas aulas de Segurança Internacional. Acho que agora já temos uma resposta conclusiva.

  • Já faz algum tempo que todas as atividades humanas vem se virtualizando e dependendo de computadores e da internet. E com os conflitos bélicos, infelizmente, não seria diferente… Mais: “guerras paralelas” em que a informação, falsa, distorcida e/ou exagerada, é a principal arma para abalar o moral do inimigo, existem desde sempre. O que muda hoje em dia,por causa da evolução da tecnologia, são a escala e o alcance das coisas, com o mundo inteiro por testemunha e informações comprometedoras com as quais já não se pode mais sumir de vez devido à facilidade de se conseguir cópias e a brechas em sistemas de segurança aproveitadas por hackers.

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