Esporte de verdade?

No Top Des eu xinguei, neste texto eu vou apresentar os argumentos: nossa digníssima ministra do Esporte, Vero… Ana Moser, já começou dizendo que os e-sports, as competições baseadas em videogames, não poderiam ser consideradas esportes. Fez até uma bizarra comparação com uma cantora. Quem diria que colocar um fuckin’ atleta para realizar tarefas puramente intelectuais seria um problema, não?

Eu sei que o cidadão médio nunca pensou mais que meio minuto sobre o tema; provavelmente este texto vai te dar mais substância para definir de que lado da polêmica está, o meu incômodo é com a fala da ministra mesmo. No mínimo ela deveria ter dito que precisava de mais dados para tomar uma decisão. Um ministro tem todo o direito de não conhecer tudo sobre a área, mas não tem o de cagar opinião aleatória de posse do cargo.

Vamos lá: e-sports é o nome que se dá a categoria de competições baseadas em videogames. E apesar da indústria ter crescido muito na última década, pessoas já jogavam profissionalmente de uma forma ou de outra desde os tempos dos jurássicos fliperamas dos anos 80. Naquele tempo, disputava-se o recorde de pontos dos jogos. Especialmente no caso dos americanos, que sempre souberam arrancar dinheiro de qualquer coisa, formou-se uma cena de super jogadores que destruíam recordes de Donkey Kong, Pac-Man, Tetris e contemporâneos.

A indústria saiu dos fliperamas e foi para as casas. Foram umas duas décadas sem nada de novo no fronte da profissionalização de jogadores, até que a internet se populariza o suficiente para a cena dos jogos online ficar gigantesca. Aí, a demanda represada por fazer de jogar videogame uma carreira pode ser atendida com força.

Talvez esteja fora do seu radar de eventos, mas os campeonatos de jogos populares já acontecem ao vivo em grandes arenas, as finais do campeonato de League of Legends, por exemplo, são mais pomposas e populares que muito campeonato de futebol! Os torneios de jogos de luta (como o antigo e agora novo de novo Street Fighter) dão prêmios gordos e tem jogadores que só vivem disso. Estamos falando de campeonatos milionários com participantes especializados e plateias enormes.

“Mas, isso quer dizer que são esportes?”

Boa pergunta. Eu voto sim. Não estou dizendo que não existem pessoas que discordam dessa categorização, mas estou dizendo que é difícil defender os argumentos contrários a chamar e-sports de esportes quando você começa a definir… o que é um esporte.

Esporte é atividade física? Sim. É mais do que só pensar, com certeza. Filósofos não estão praticando um esporte. Mas esporte é esporte por causa da atividade física? Porque aí a janela fica muito aberta. Varrer a calçada é um esporte? Cozinhar é um esporte? Masturbação é um esporte? São coisas que exigem alguma atividade física para serem completadas. Se esporte fosse apenas atividade física, essa discussão seria inútil e eu bater os dedos no teclado para escrever o texto seria um esporte. Não pode ser só isso.

Esporte é atividade física extrema? Interessante. Porque aí, por essa lógica, plantio de arroz é esporte. Prisão de ventre também, mas acho que ninguém dá medalha por um cocô difícil de sair, né? E um dos esportes olímpicos mais antigos de todos, o tiro ao alvo, provavelmente seria desqualificado. Se você for ver o layout dos participantes, ninguém parece muito propenso a levantar grandes pesos ou correr grandes distâncias. Tem até uns gordinhos participando, e bem.

Esporte é competição? Parece mais próximo. Mas não é qualquer competição que conta. Discutir com o gado do outro lado da cerca sobre qual corrupto de estimação é melhor não é considerado um esporte. Disputar uma mulher com outros pretendentes, até onde eu sei, também não entra nessa categoria. Aliás, entregar currículo é um esporte? Porque você com certeza está competindo com outras pessoas. Mas nós sabemos que não é o caso.

Já sei, esportes são baseados em regras! Todos eles têm regras. Mas, imposto de renda também. E se você não as seguir, pode ir preso. Se as seguir, ganha uma bela cobrança do governo. Não soa muito esportivo, né? Tem regras até para comentar no Desfavor: se você escrever baixaria aleatória ou for muito chato e repetitivo, eu bato o olho e deleto. E não adianta pedir medalha, prêmio só para quem acerta mais mortos no final do ano, e olhe lá, porque eu demoro para entregar. Não é um esporte.

Então, temos que voltar para a frase que está na cabeça de todo mundo: esporte é saúde.

Esporte é saúde? Atividade física moderada aliada a uma boa alimentação, sono e estabilidade mental é saúde. Esporte, quanto mais profissional fica, menos saudável é. Atletas estão sempre se estourando por abusar dos limites do corpo humano, usando substâncias questionáveis para aumentar a performance, lutando contra a dor quase todos os dias… tudo isso sob a pressão de entregar resultados para pagar suas contas. Machuca o corpo e estressa a mente. Em média é melhor do que ser um sedentário, é claro, mas não é melhor do que se exercitar sem exageros.

Pois então… o que é um esporte? Bom, eu definiria assim: é uma atividade competitiva com regras iguais para todos os participantes. Todos os exemplos do que não era esporte falham em algum desses pontos. Todos os esportes que você reconhece como esporte atendem a essa definição. Futebol? Atividade, competição, regras. Boxe? Atividade, competição, regras. Natação? Atividade, competição, regras. Ginástica Artística? Atividade, competição, regras.

Eu não tenho dúvidas que o xadrez, por exemplo, é um esporte. É uma atividade que tem que ser realizada por um ser humano consciente, sempre em contexto competitivo, e ambos os jogadores estão amarrados nas exatas mesmas regras. Assim como no basquete, um jogador de xadrez pode jogar melhor ou pior de acordo com seu estado físico. Dois enxadristas de nível parecido vão ter resultados diferentes se estiverem virados da madrugada anterior de bebedeira ou se tiverem se alimentado e dormido direito na véspera.

Aliás, ainda no mundo do xadrez: para quem não sabe, praticamente não tem gordo entre os melhores do mundo. Todos são magros ou estão em forma razoável. Uma barriguinha aqui, um mais relaxado por causa da idade ali, mas claramente tem algo impedindo pessoas obesas de terem grande representação entre os mais bem qualificados. Do mesmo jeito que acontece em tantos outros esportes… não acontece na música, não acontece no cinema, no teatro…

E eu não resisto… o fato de mulheres normalmente não competirem num nível parecido com os homens é mais uma dica de que e-sports realmente são esportes. Não é só inteligência, é treino e capacidade física também. Nem no xadrez, muito mais antigo, elas conseguem disputar junto com os homens. Homens tem facilidade para focar em tarefas específicas e especialmente para abusar terrivelmente do corpo e da mente em busca de melhores resultados. Faz diferença ter mais pulmão, ter mais energia, ter foco mais definido. Esporte. Se fosse só cérebro, a diferença entre os sexos ia começar a diminuir rapidamente nas últimas décadas. Não está. A vencedora do prêmio de melhor jogadora de LoL no Brasil em 2022 é transexual.

Continuando: a ministra do Esporte disse que se preparar muito para um evento é coisa que até uma cantora fazia. E é verdade, os artistas mais populares vivem rotinas insanas, muitas vezes tão danosas para a saúde como a de atletas. Mas eles não estão competindo com ninguém em específico. E com certeza não estão presos a mais regras que a maioria de nós não artistas ou não esportistas.

Os jogadores de e-sports tem que treinar muito, de forma compulsiva até, para conseguir levar vantagem sobre os adversários. No esporte tradicional, você pode usar coisas como altura e musculatura para levar vantagem sobre alguém que nasceu menos privilegiado, entre os jogadores profissionais a coisa é mais baseada em coordenação motora fina, tempo de reação e conhecimento avançado sobre as regras. Me arrisco até a dizer que é mais difícil se destacar num e-sport popular do que na maioria dos esportes tradicionais. A margem é muito pequena entre os jogadores.

A competição é pesada, se você não começar a treinar cedo, não tem chance de disputar com os profissionais. Eu argumento que uma das coisas que definem um esporte é uma diferença gritante de performance entre amadores e profissionais. A gente pode até xingar os atletas que fazem coisa errada no campo, mas o mais incompetente dos profissionais da maioria dos esportes populares é ordens de magnitude mais capaz que qualquer um de nós naquela atividade.

As pessoas acham que e-sports é que nem pegar o controle de um videogame e começar a jogar até aprender. Não é. Jogar futebol com seus amigos no final de semana não te habilita a ser contratado nem por times da segunda divisão da Paraíba. Saber jogar Counter Strike não te faz ser capaz de durar dez segundos numa partida de profissionais. E pior, sem camaradagem: quem joga mal online é xingado até a décima geração e bloqueado por todo mundo.

A diferença que muita gente vê é a quantidade de movimento do corpo desses atletas de e-sports em relação aos atletas tradicionais. Mas tem uma regra específica sobre quanto movimento é necessário? Ou de que partes do corpo? O jogador de basquete corre menos que o de futebol, ele é menos atleta? Porque ele tromba mais e pula mais. O jogador de vôlei é menos esportista porque não se choca com os competidores? Você pode até cismar que esporte precisa ser jogado de pé para valer como esporte. Mas aí é só levantar as mesas e tirar as cadeiras para os e-sports se adequarem? Se colocar uma bicicleta ergométrica debaixo da mesa onde eles jogam pode virar esporte?

Parece que só estou sendo mesquinho, mas tem um ponto mais profundo aqui, este texto só existe porque foi a ministra que falou essa bobagem. Esporte é uma ferramenta poderosa de melhoria de qualidade de vida na sociedade. Tira jovens de caminhos ruins e estimula cuidados com a saúde. Se a política pública for ganhar medalhas nas Olimpíadas, temos incompetentes no poder. Porque resultados em esportes populares é um desperdício de dinheiro público num país como o Brasil.

O ministério tem que estar lá para colocar criança para fazer esporte e permitir que atletas vivam de forma digna para dar bons exemplos para o resto da população. Passou disso é problema da iniciativa privada. Quando Ana Moser joga os e-sports para escanteio, está demonstrando que não percebe a função social do esporte. Que as seleções se explodam, tem gente passando fome e traficante aliciando jovens nas comunidades.

E uma coisa que pode ajudar muito as novas gerações a terem os benefícios do esporte, são os e-sports. Não é a mesma coisa que jogar videogame, é um caminho complicado e tortuoso que seleciona aqueles que tem melhores condições físicas e mentais de alcançar os resultados necessários para começar a ser considerado na cena profissional.

A maioria dos jogos populares nos e-sports são fáceis de rodar, não precisa de muito equipamento para colocar um monte de jovens para treinar. Assim como na maioria dos esportes, a maioria vai seguir por outros caminhos, mas lições como cuidado com o corpo (quase não tem gordo no xadrez ou nos grandes torneios de e-sports), disciplina e até mesmo esperança de fazer algo a mais da vida podem vir sim desses jogos.

Se for para patrocinar times grandes em campeonatos, eu até entendo o ministério do Esporte não dar atenção, mas a falha central da coisa está em não considerar esporte e ainda dar essa argumentação horrenda que falha em lógica simples. Se o governo não estiver enxergando a popularidade dos e-sports, vai ficar financiando coisa que os jovens não querem fazer e continuar na lógica tupiniquim de só se importar quando chegam as Olimpíadas, e mesmo assim, só para ganhar uma medalha e fazer pose depois. Grandes merdas.

Esporte é política pública. Milhões de jovens estão sendo impactados por e-sports enquanto você lê este texto, o mercado vai crescer e crescer. Triste que o governo esteja parado no tempo e não perceba a oportunidade. É melhor do que não fazer esporte nenhum, com certeza.

Para dizer que não entendeu a piada da Veronica Moser de novo (não pesquise), para dizer que esporte é coisa de gente burra, ou mesmo para dizer que prisão de ventre é esporte sim: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Seria The Voice então um esporte? Atividade, competição e regras. Muitas coisas como competições de quem come mais também seriam contadas como esporte diante desta definição, mas é senso comum que estas sejam nada mais que competições. Com uma simples pesquisa no Google podemos ver o que o dicionário de Oxford tem a falar sobre isso: Uma prática metódica, individual ou coletiva, de jogo ou qualquer atividade que demande exercício físico e destreza, com fins de recreação, manutenção do condicionamento corporal e da saúde e/ou competição; desporte, desporto.
    Parece que até Oxford considera The Voice uma esporte, estranho não? Acho que a definição de esporte hoje em dia conta com muitas exceções, estas que acabam se tornando parte do senso comum…

    • Se der para fazer The Voice na comunidade e dar ocupação para crianças carentes e um caminho melhor para crescer na vida, eu sou super a favor de The Voice ser esporte.

  • Quando a Verônica Moser falou que “jogos eletrônicos não são imprevisíveis, porque eles são programados pela cibernética…”, aquilo foi o puro suco do “videogame estraga a televisão!”

    E é curioso porque eu ouvo um podcast de videogames que a bancada inteira faz o tipão esquerda caviar fora Bozo, eles obviamente não gostaram da declaração e foi engraçado ver eles pisando em ovos pra criticar a fala, haha…

  • Ana Moser é a “vídeo game estraga a televisão” mais sofisticada.

    Quanto mais janelas para que pessoas possam fazer alguma coisa produtiva e talvez até uma renda, melhor. Se considerar um esporte (em adição aos fatores apontados pelo Somir) vai fazer com que jovem se dedique a algo, melhor.

    • “Quanto mais janelas para que pessoas possam fazer alguma coisa produtiva e talvez até uma renda, melhor.” Concordo plenamente, Ana.

  • Quem é E-esportista deve ser da mesma família do católico não praticante. E me respeita porque eu sou um E-policial no jogo e posso te E-prender por E-desacato.

  • “No Top Des eu xinguei, neste texto eu vou apresentar os argumentos: nossa digníssima ministra do Esporte, Vero… Ana Moser, já começou dizendo que os e-sports, as competições baseadas em videogames, não poderiam ser consideradas esportes”.

    Não diria que foi preconceito, mas sim caso pensado. Como prevejo que dará um textão, por que não um DC para reativar a coluna?

  • “Aliás, ainda no mundo do xadrez: para quem não sabe, praticamente não tem gordo entre os melhores do mundo. Todos são magros ou estão em forma razoável”.

    Em visita ao Brasil, Anatoly Karpov (arquirrival de Gary Kasparov) disse em entrevista que os enxadristas da equipe soviética treinavam regularmente com equipes de atletismo olímpicas. E não sei se já viram, mas em alguns torneios as mesas dos jogadores são em formato de T, para que os jogadores fiquem isolados por baixo para evitar que um chute a canela do outro durante o jogo…

  • Videogame nunca foi e nunca será um esporte, mesmo se o jogo for de esporte. Até eu quando saio pra caminhar com meu cachorro faço mais esporte do que essa geração de nerds virgens que passam o dia no videogame!
    É o mesmo que dizer que punheta no xvideos é relacionamento. Essa geração faz tudo no virtual, nunca levanta o rabo da cadeira e se acha esportista.

  • Volta e meia um político fala uma merda desse tipo enquanto outros estão fazendo merda e passando debaixo do radar, é rage bait que chama?

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