Jovens promessas.

Com os millenials em posições de poder e a Geração Z já se estabelecendo na vida adulta, Sally e Somir concordam que vem algo bem difícil por aí. O que exatamente é a discussão da vez. Os impopulares reclamam dos jovens.

Tema de hoje: qual será o maior problema da nova geração quando chegar à vida adulta?

SOMIR

Sensores de dopamina fritos, ou, de forma mais simples: uma dificuldade cada vez maior de sentir prazer no que fazem. Dopamina é uma espécie de estimulante natural que o cérebro produz para incentivar algumas atividades. Ele gera prazer e torna a ideia de fazer alguma coisa mais agradável. A vida dessas novas gerações tem tantas fontes de dopamina que a tendência é que a vida adulta seja bem mais difícil de lidar.

Mas antes, deixa eu me afastar de gurus e coaches que falam sobre dopamina: essa ideia de que você tem que fazer “jejum de dopamina”, se privando de prazeres por um tempo para fazer o cérebro voltar a achar graça nas coisas simples da vida é na melhor das hipóteses discutível. Se tem uma constante na história da humanidade, é que não existem soluções mágicas para problemas da mente.

Não vai ser o consumo ou restrição de uma substância que vai dar conta do seu estado mental. É sempre uma construção complexa que depende de muitos fatores. A dopamina, por exemplo: o que se entende sobre a função dela é que ela é liberada antes da pessoa fazer a coisa que considera prazerosa, é um estímulo para ir fazer aquilo, não uma recompensa. Se privar de fontes de prazer rápidas pode te ajudar a desperdiçar menos o seu tempo e te forçar a ter mais disciplina, mas não existem provas que isso vai fazer você sentir prazer fazendo seu imposto de renda… o que é chato para uma pessoa é chato para uma pessoa, não dá para manipular seu cérebro dessa forma.

O meu ponto aqui sobre dopamina é que essas novas gerações receberam muito mais estímulo desde a infância que as que vieram antes. Sim, isso costuma ser verdade com todas as gerações, eu recebi mais estímulo de mídia de massa que meus pais e eles mais que meus avós, mas as gerações da internet viram um salto absurdo em comparação com as últimas gerações analógicas (provavelmente a minha). Minha infância foi offline de verdade, mais que até mesmo os mais pobres hoje em dia, que de uma forma ou de outra tem algum acesso à internet e a cultura que vem dela.

Isso tende a causar um problema de falta de prazer no que fazem. Quando existe uma fonte infinita de distração na sua mão 24 horas por dia, é mais complicado se concentrar em tarefas da vida adulta. Além de trabalhar para se sustentar, fazemos muita manutenção de coisas básicas da vida, coisas que são chatas mesmo: repetitivas e que você sabe que vão ser desfeitas logo depois.

Infelizmente a vida é 99% manutenção e 1% construção. Ficamos rolando o pedregulho montanha acima só para ele rolar para baixo de novo. Se você vai encarar essa lógica de vida sabendo que existem milhares de formas de se distrair à disposição, tudo fica mais complicado. Eu que já me considero mais Geração X do que Millenial lido com esse problema por trabalhar num computador o dia todo, imagina só quem tem boa parte da sua vida social e entretenimento num celular que não larga por nada?

Este texto não é para criticar os jovens que são diferentes, acho a discussão mais repetitiva da história, é para demonstrar empatia mesmo: eu sinto algo parecido com o que eles devem sentir, mas pelo menos tive algum tempo de vida no modo antigo para comparar. Eu ficava entediado quando era criança, eu precisava inventar coisas para fazer quando não tinha nada na TV (tinha menos programação infantil e você tinha que disputar com os adultos por só ter uma TV em casa). Meu cérebro foi mais bem treinado em tentar extrair diversão de tarefas menos estimulantes.

E mais: para lidar com o fato de que as coisas não existiam para conquistar a minha atenção. Hoje em dia o feed de notícias e postagens de redes sociais entrega só o que você quer. Isso mexe com sua percepção sobre a realidade, parece estranho quando você lida com algo que não está programado para atender os seus desejos.

A vida adulta com um monte de coisas que quase ninguém gosta de fazer e a competição inerente à sociedade vão dar nós na cabeça desses jovens. Eu até entendo o ponto que a Sally vai defender, mas eu acho que o mais dramático vai ser muita gente sem vontade de fazer as coisas necessárias da vida adulta. Vai ser chato demais. Vai sair empurrado com a barriga, e vão acabar achando que estão infelizes quando na verdade estão só pagando o preço normal de crescer: focar muito mais em manutenção do que construção e prazer.

Se você tem um prospecto de algo divertido para fazer o tempo todo, fica tomando descarga de dopamina toda hora para te afastar de coisas chatas, mas necessárias para a vida. Eu volto a bater na tecla da ilusão de infelicidade aqui: não é que a pessoa está triste e desmotivada, é que ela foi enganada por uma infância e adolescência baseadas na oferta quase que infinita de entretenimento e socialização fácil. Falta alguém para dizer para essas pessoas que isso é normal: a vida é bem mais ou menos na maioria do tempo.

É natural não estar motivado para fazer faxina ou para resolver um problema no banco, não é um absurdo se sentir sozinho às vezes, não é depressão estar sem vontade de fazer as coisas por um ou dois dias. Mas se a pessoa é iludida com a promessa de dopamina infinita, tudo parece pior em comparação.

Eu prevejo profissionais piores, companheiros piores, uma redução considerável da qualidade das interações humanas por algum tempo até as coisas se estabilizarem e esses humanos viciados em dopamina começarem a criar seus filhos com mais travas para não repetirem os erros que seus pais cometeram (e que dificilmente seriam capazes de prever tendo vivido infâncias offline).

E essa piora não vai ser por “gênio ruim”, vai ser o resultado de gente achando cada vez menos graça nas coisas, justamente porque caíram no conto de que tudo tem que ter muita graça.

Não tem. Tem muita coisa chata na vida mesmo. Tudo bem.

Para me chamar de velho, para dizer que adora quando eu te desmotivo, ou mesmo para dizer que o jovem continua precisando acabar: somir@desfavor.com

SALLY

Qual será o maior problema da nova geração quando chegar à vida adulta?

Serão muitos, mas o maior será a completa incapacidade de lidar com frustração de uma forma saudável.

Estamos falando de uma geração que cresceu tendo tudo ao alcance de um clique, uma geração que fica incomodada se uma página demora mais de cinco segundos para carregar, de uma geração que sempre teve mil opções quando algo não a agradava.

Uma foto não agradou? Tira outras 100 com o celular até encontrar uma que goste. Não é como se tivesse apenas 36 chances (pagando caro) e com espera de vários dias para ver o resultado. Os comentários a respeito de algo não agradaram? Excluí algumas pessoas das redes sociais. Não é como se tivesse que fazer um longo processo ao vivo para consolidar uma amizade.

Essa hiperdisponibilidade de recursos somada à criação que receberam (dos Millenials) com menos cobrança e mais proteção retira a frustração do rol de eventos diários, rotineiros e comuns e a coloca quase que como uma tragédia.

Não estou dizendo que cada negativa recebida vai ser um drama, estou dizendo que o fato de não se frustrar regulamente faz com que a pessoa não tenha ferramentas para lidar com a frustração quando ela bater realmente forte. Quando algo que a pessoa queria muito não acontecer, vai doer exatamente como dói na gente, mas não existirão ferramentas (nem habilidade com estas ferramentas) para lidar com essa dor.

Um exemplo bobo: quando eu era pequena e queria muito alguma coisa, eu sabia que, ao pedir isso para os meus pais, as chances de ganhar um “não” eram maiores do que as de ganhar um “sim”, o que é muito natural, já que criança quer tudo que vê e pede milhões de coisas por dia. Esse era o mindset: vou pedir mas é muito comum que não consiga.

E, na minha infância, eu dependia dos meus pais para ter coisas do meu interesse. Isso mudou. Hoje, uma criança com um tablet ou celular na mão consegue dezenas de vezes por dia o que quer: ver um desenho no Youtube, achar uma foto de alguma coisa, conseguir uma letra de uma música.

Isso gera no cérebro a expectativa de que “quando eu quero algo, a regra é que eu consiga esse algo”. Infelizmente na vida adulta não é essa a regra. Minha geração sabe disso, pois na nossa infância a regra era a mesma que na vida adulta. Foram muitos anos de preparação para não conseguir o que queríamos.

No começo, com choro, com angústia, com tristeza, depois, a gente vai calejando e aprende que não conseguir o que queremos é parte da vida e, inclusive, às vezes é até bom, visto que quando somos jovens queremos cada merda… A cada frustração nos levantamos mais rápido, nos recuperamos mais rápido. O que muita gente hoje acha que “traumatiza”, na verdade, fortalece – e o tempo vai me dar razão.

Foi um longo caminho para entender que eu não posso ter o que eu quero quando eu quero da forma que eu quero. Quem é Geração X como eu deve achar que essa constatação é óbvia, mas para muitas pessoas da Geração Z e da Geração Alfa, isso não é uma obviedade. Não conseguir o que quer não é regra, é a exceção durante quase duas décadas da sua vida.

Então, o chilique que eu dei nos primeiros anos de vida (não no sentido de fazer escândalo e sim de me abalar profundamente), eles darão na vida adulta cada vez que não conseguirem algo, pois não foram treinados para isso e cresceram com pouca capacidade de frustração e resiliência. Infelizmente todos nós já vimos alguns deles protagonizando esses chiliques de criança na vida adulta, pois, para piorar tudo, eles costumam se filmar quando o fazem.

Isso é um problema. Um problema para quem passa por esse choque de realidade e descobre como é a vida de verdade fora da bolha e um problema para o resto das pessoas, que tem que lidar com um adultinho que tem a inteligência emocional de uma criança.

Existe um motivo pelo qual não se permitem crianças no mercado de trabalho e ele vai muito além da força física: uma criança está construindo sua personalidade, desenvolvendo suas habilidades emocionais, aprendendo a lidar com o mundo. É o clássico “criança tem que brincar”, não que trabalhar, pois brincando é que se construía esse entendimento de mundo e se criavam ferramentas para lidar com ele.

Só que agora, quando as crianças brincam, elas não se frustram mais, ao menos não com frequência. No pique-esconde apenas um ganha, no Candy Crush você joga até ganhar. Ao tentar socializar na escola são necessárias várias tentativas e constante manutenção, já nas redes sociais você adiciona quem quer e consegue centenas de amigos em um dia.

Então, a nova geração vai chegar na vida adulta sem ter desenvolvido as ferramentas para lidar com frustração. Eu nem acho que vá pesar tanto no mercado de trabalho, pois seus chefes serão os Millenials, que costumam ter uma filosofia de trabalho bem menos puxada do que a que vigora hoje (não se matar de trabalhar, trabalhar menos horas, prezar pelo conforto e bem-estar etc.). Eu acho que a pancada vem mesmo na vida pessoal.

Relacionamentos com parceiros para a vida (não namoricos, relacionamentos estáveis) não são contos de fadas. A convivência não é fácil nem para a gente, das gerações anteriores. Imagina para quem não tem familiaridade com frustração e não tem ferramentas para lidar com ela.

Imagina o tamanho do atrito de pessoas que não sabem fazer concessões, mas que, ao mesmo tempo, são carentes e acostumadas com a aceitação da bolha na qual vivem.

O mesmo vale para amizades. Amizades verdadeiras, em algum ponto, vão demandar conversas sinceras e dolorosas. Vão demandar concessões. Vão demandar esforço. Vão demandar lidar com frustrações de forma adulta, madura e saudável. Até mesmo relacionamentos familiares na vida adulta exigem isso.

Não dá para viver uma vida sem se relacionar com alguém (família, amigos, amor). Portanto, a nova geração não vai poder evitá-lo. Mas, ao mesmo tempo, não parece ter as ferramentas necessárias para fazê-lo. E, pior do que um que não está preparado são dois que não estão preparados, atritando.

Você pode ter o sucesso que for na vida mas, se não tiver bons relacionamentos para te ajudar nesse mundo, o emocional vai colapsar. E não tem desafio mais sofrido que que sobreviver com o emocional colapsado…

Para dizer que já existirão robôs inteligentes então contato humano será opcional, para dizer que o pior problema será todo mundo ser processado o tempo todo por desagradar alguém ou ainda para dizer que eles que se virem: sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • Discordo dos dois. Nesses dois casos, o mundo vai se virar com os menos fodidos. A coisa vai pegar na hora em que essa geração for criar filhos. Criar filhos junta as duas coisas acima: recompensa de curto prazo zero e 100% de frustração em todos os casos. Filhos demoram ANOS para criar, e NUNCA correspondem às expectativas dos pais. Pra piorar, não dá pra transferir essa responsabilidade sem dar merda. Ou seja, só sequelados vão ter filhos, que serão mais sequelados ainda. Ou ninguém mais vai ter filhos.

  • Mas vai ser uma combinação morfenomenal!

    Receptores de dopamina fritos: recompensas oferecem uma sensação menor de gratificação e satisfação.

    Incapacidade de lidar com frustrações: ao ter a menor das expectativas não atendidas, ou receber a menor das cobranças, o Zoomer reage da mesma forma com que um aldeão da Idade Média reagiria ao ter a perna amputada em um acidente.

    • Kenny McCormick

      O aldeão da idade média tendia a agir de forma mais compassiva do que o zoomer ao lidar com as frustrações (muito por efeito da religião), e olha que o pessoal zoomer em grande parte já está chegando na hora da verdade (a Greta com aquela vergonha alheia não me deixa mentir).
      Os mais velhos estão na faixa dos 25 anos e estão tentando se virar com o fato de que o mundo não gira em volta deles. Certa ex-colega de faculdade que o diga. Magrela da bunda chata e com pouco busto achando que eu estava a fim dela por ela usar short nas aulas da faculdade.
      O negócio do Candy Crush é fazer concessões e vender vantagens porque é basicamente o que sustenta o negócio, até porque tem algumas fases que de fato são praticamente impossíveis de se passar sem alguma “ajuda” do jogo. Acho menos pior que o grosso dos jogos que estão disponíveis na Play Store, que são verdadeiros backdoors para SPAM, SPAM, SPAM e mais SPAM.

  • Entendo o ponto de vista do Somir sobre uma geração de distraídos e “viciados em dopamina” chegando à vida adulta empurrando as coisas “chatas” com a barriga, mas eu fico com a Sally nessa. Em qualquer época, viver, conviver e sobreviver no “mundo lá fora” já são, por si só, coisas muito difíceis de se conseguir; e tudo fica ainda mais complicado quando não se é “cascudo” devido a uma criação que não ensina que a frustração faz parte da vida e que caímos para aprender a nos levantar. Claro que o dia-a-dia no pós-adolescência não é um eterno penar, mas também é fato que certas lições duras da vida tem que ser aprendidas o quanto antes. Ou, parafraseando um aforismo apócrifo atribuída ao escritor norte-americano Dale Carnegie: “Quanto mais se sua durante o treinamento (juventude), menos se sangrará na batalha (vida adulta). E uma frase do texto da Sally me chamou a atenção: “Imagina o tamanho do atrito de pessoas que não sabem fazer concessões, mas que, ao mesmo tempo, são carentes e acostumadas com a aceitação da bolha na qual vivem”. Já tenho visto muita gente por aí com a “inteligência emocional de uma criança” e ficado pasmado. Tem horas que eu fico mesmo preocupado…

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