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Colunas

Casa, comigo.

Sally e Somir, apesar de se entenderem no final das contas, são pessoas bem diferentes. Mais de 15 anos de discordâncias semanais estão aí para provar. E para levar essas diferenças ao limite, nada melhor do que pensar em convivência. Sally e Somir não se vendem como companheiros, os impopulares fazem uma escolha difícil.

Tema de hoje: se você tivesse que morar por um ano com alguém, com quem seria melhor morar, com o Somir ou com a Sally?

SOMIR

Eu escolheria a Sally. Ela é bem mais difícil inicialmente, mas isso vem com uma série de compensações que simplesmente não vão existir comigo.

Não me considero preguiçoso, porco ou desleixado, não perto de pessoas que realmente fazem por merecer essas críticas. O problema é que eu fico no limite o tempo todo. Não trabalho com excelência na questão de manutenção de um lar. Eu conheço a informação básica sobre como evitar que uma casa fique nojenta ou perigosa e não gasto uma caloria, física ou mental, além disso.

E para proteger minha pouca energia disponível para coisas que não são do meu interesse honesto, eu vou jogar baixo para te fazer se sentir um(a) imbecil por discordar de mim. O Desfavor é um dos meus lugares felizes onde eu só discuto quando quero e na absoluta maior parte do tempo eu estou de bom humor. Não vai ser simples lidar comigo por um ano com as variações normais de estado mental que a vida cotidiana presume.

Qualquer ideia que você tiver sobre como fazer a manutenção de uma casa que eu considere desperdício de energia será ignorada, e qualquer tentativa de me convencer do contrário será respondida com argumentos e mais argumentos, que francamente, acabam passando por descreditar sua inteligência e/ou conhecimento científico. Para me fazer lavar a louça em qualquer outro tempo que não o que eu quero, vai precisar publicar um artigo com revisão de pares me provando por A+B que você não está sendo maluco(a).

E como ninguém é perfeito, num dia de humor “virado” nem isso vai resolver. Existem mil métodos de irritar alguém tentando te convencer de algo e eu sei pelo menos metade deles. A única coisa outra coisa que me vence é afeto, ou seja, tolerar discordância para fazer a outra pessoa ficar feliz. Mas a presunção do texto é de companheiro de casa, não de uma relação afetiva profunda.

Mas isso é na parte da discordância, você pode ser uma pessoa que também vive no limite básico da funcionalidade em casa e nunca ter nenhum capricho ou teimosia que desperte esse meu lado argumentativo. O que nos leva à segunda questão. Também não é essa maravilha toda ter alguém que não se importa no nível que eu não me importo.

Sally vive pela excelência, e por tabela você consegue muitas coisas boas ao dividir um ambiente com ela. Pelo trabalho dela e pela forma tirânica como ela mantém seu ambiente, vai estar tudo arrumado, planejado e brilhando ao redor dela. Não conte comigo para nada disso. Eu me mantenho no limite e provavelmente nem vou perceber se você estiver tendo um infarto na minha frente. O lado bom de estar dentro da casa da Sally é que você acaba recebendo o mesmo tratamento de excelência, não necessariamente por amor, mas por estar dentro do Império dela.

Eventualmente ela vai aprender mil coisas sobre você e saber como reagir na maioria dos casos. Eu vou ser uma constante, não vou perguntar o nome da sua namorada ou namorado, e vou continuar não sabendo nem depois de um ano. Tem alguma doença que precisa de atenção? Sally vai saber como te manter vivo de 10 formas diferentes. Eu sei chamar a ambulância. É alérgico a alguma coisa? Sally vai perceber antes de você que você está prestes a fazer uma besteira, porque sabe que tem o elemento alergênico na coisa que você está prestes a usar, mesmo que não esteja aparente na embalagem. Eu… sei chamar a ambulância.

Nada é de graça nessa vida. Sally cobra mais, vai ser bem mais tirana, mas vai pagar com um grau de atenção e qualidade de vida bem melhor. Eu vou te deixar em paz, mas provavelmente até quando você preferisse que eu não te deixasse em paz. E tem gente que realmente se sente mal com o tipo de pessoa que eu sou no dia a dia, acha frieza e desinteresse. Pode achar que eu tenho algo contra… esse tipo de pessoa que precisa de mais contato humano sofre bastante na minha mão, mesmo que eu não esteja tentando me distanciar, é uma forma de ser: viva e deixe viver.

E se você for do tipo que gosta de saber mais sobre com quem vive, conhecer a fundo… não vai ser bacana. Demora anos para eu deixar de achar estranho alguém me perguntando onde eu estava. Eu sei que as pessoas fazem isso sem pensar, às vezes até com boas intenções de interesse e cuidado, mas é mais forte do que eu olhar feio quando me perguntam o que eu estou pensando ou o que eu vou fazer. Sally funciona muito melhor nesse sentido, é uma pessoa que vai agir feito um ser humano normal em todas as situações que não envolvam interferir nas suas regras draconianas de funcionamento da casa.

Tem outro problema: eu não gosto de sair. Eu trabalho em casa e não tenho vontade de estar fora de casa na maioria do tempo. Eu provavelmente não vou estar no mesmo ambiente que você, mas se você quer casa vazia para qualquer motivo, não vai ter essa chance comigo.

E pra mim o grande diferencial a favor da Sally: ela cozinha. Não é que eu seja totalmente incapaz de cozinhar, mas eu realmente não tenho paciência para isso. Você nunca vai ter uma refeição caseira se depender de mim, e considerando como custa caro comer fora ou pedir no delivery, vai ser bem raro que eu ofereça algo. Novamente, vivendo no limite do tolerável, sem espaço para encaixar outra pessoa.

É uma das coisas mais valiosas numa casa, junto com higiene e silêncio. Eu não ofereço capacidade de cozinhar, ofereço a minha higiene básica (se você for relapso(a) eu vou te criticar sem ajudar em nada) e só sou nota 10 em silêncio mesmo. Muito embora isso possa cair para nota 5 se você tiver sono leve: sempre que eu posso eu troco a noite pelo dia. Em semana de trabalho normal é mais tranquilo, mas chega feriado e fim de semana eu durmo só quando amanhece. Mesmo sem querer fazer barulho, fazer um lanche às 3 da manhã vai gerar algum barulho na casa…

É superficialmente mais fácil viver comigo, mas a maioria das pessoas que eu conheci nessa vida provavelmente prefeririam o grau de excelência da Sally depois de passar pelo sufoco da tirania inicial dela.

Para dizer que nem queria, para dizer que eu sou o pai ausente que você nunca teve, ou mesmo para dizer que quem vive no limite tem muito mais acidentes (verdade): comente.

SALLY

Se você tivesse que morar por um ano com alguém, com quem seria melhor morar, com o Somir ou com a Sally?

Você não quer morar comigo, acredite. O grau de rigidez das normas que vigoram na minha casa dificilmente é compatível com a informalidade, animação e a alma festeira do brasileiro. Por mais que você não seja tão alegre assim, dificilmente alguém “normal” convive comigo de boa. E acho muito saudável que não conviva.

As pessoas vêm em “pacotes”, com ótimas qualidades e defeitos correlacionados. Como você acha que eu consigo trabalhar, cuidar de uma casa, fazer postagem diária no Desfavor, me exercitar e fazer tantas outras tarefas? Na vida de uma pessoa normal o cronograma não fecha. Vocês usufruem do lado “bom” disso que são postagens gratuitas, mas tem o lado “ruim”, que é a disciplina e as quantidade de regras que isso exige. E morando comigo vocês seriam expostos a esse lado considerado “ruim”.

Se alguém aqui viu o seriado The Big Bang Theory, saiba que morar comigo é muito, mas muito parecido a morar com Sheldon Cooper. Para quem não viu o seriado, explico um pouco melhor.

Eu não tolero barulhos na minha casa. E não estou falando apenas de música alta, estou falando de qualquer coisa que exceda 50 decibéis. Sim, eu tenho um medidor de decibéis. Gritar de um cômodo para o outro para se comunicar, por exemplo, é inaceitável. Assistir tv em um volume alto (volume alto = mais de 50 decibéis) vai te causar sérios problemas. Ouvir áudio de WhatsApp ou assistir a vídeos que tem som sem fone de ouvido, dependendo do dia, talvez gere até violência física. O silêncio é a regra. E a regra vigora o ano todo.

Outra coisa que você precisa saber, eu odeio receber gente na minha casa. Odeio. Eu sinto ódio de quem vem na minha casa. Eventualmente, quando é uma pessoa muito querida que já conquistou um lugar muito importante na minha vida, eu tolero, mas é apenas isso: tolerar. E provavelmente em pouco tempo eu já estou querendo mentalmente que a pessoa vá embora e sofrendo por ela continuar ali. Então, ao morar comigo você já sabe que por um ano não vai convidar ninguém para a casa na qual você mora.

Eu trabalho em Home Office, o que quer dizer que meu desejo por silêncio já exacerbado, se torna radical e intransigível em horário útil. Faço reuniões, gravo áudio, preciso de concentração para escrever. Em horário útil, além de não fazer nenhum ruído, também é proibido me dirigir a palavra, a menos que seja um caso de incêndio, aí pode me avisar, desde que seja de forma direta, com poder de síntese e coesão.

Eu durmo cedo, pois se não acordar cedo, não dou conta de todas as tarefas do dia, que são muitas além do trabalho. E, apesar de não ter qualquer dificuldade para dormir, tenho extrema dificuldade para voltar a pegar no sono se sou acordada, por motivos de: ódio. O ódio que me dá ao ver que um ato de desconsideração me acordou me libera uma adrenalina pior do que a de uma mãe que vê o filho morrer atropelado e isso me impede de voltar a dormir. E se eu passar um dia com sono, não dou conta de tudo que tenho que fazer. E isso me deixa furiosa.

Isso significa que depois que eu fui dormir (cedo), ou a pessoa se comporta como um ninja silencioso e invisível (visto que luz também me incomoda quando estou dormindo) ou teremos sérios problemas. E esses sérios problemas vão muito além de uma reclamação ou advertência. A coisa fica feia. A pessoa não vai se sentir bem-vinda e, se ela tiver um mínimo de dignidade e amor-próprio, terá vontade de se retirar da minha casa quando eu acabar de reagir à sua falta de consideração.

Para finalizar, quero te comunicar que eu tenho um poodle, na verdade adquirido por tabela, visto que pertencia o sr. meu marido antes da nossa relação. “Mas Sally, ele é produtor cultural? Ele é estilista? Cabelereiro?”. Pois é, a vida é assim, você conhece uma pessoa praticante de crossfit, ex-competidor de natação, que puxa ferro e descobre que, de todas as raças do mundo, a pessoa achou adequado para o seu template ter um poodle. A vida é sádica. E isso vai te obrigar a conviver com um poodle.

Ele (o poodle) já estava lá quando eu cheguei, o que significa que além de não ter escolha, não fui a responsável pela educação do animal, que foi criado, ao meu ver, de uma forma muito mais permissiva do que deveria. Apesar de amá-lo muito, é um poodle, estou plenamente ciente do que isso implica. Você está?Você já coabitou com um poodle? Você já esteve debaixo do mesmo teto que um poodle?

Como vocês bem podem imaginar, eu não tenho condições psicológicas de obrigar um cachorro a ficar do lado de fora da casa, ele dorme do lado de dentro. “Dorme” nem é a expressão mais apropriada, pois o mal não dorme, o mal descansa… o fato é que ele está do lado de dentro da casa o tempo todo e seria obrigatório conviver com ele. Somir tem 500 gatos? Tem. Mas são todos antissociais, assim como ele. Meu poodle é excessivamente simpático. Um inferno.

Outro ponto que você deve ter em mente: existem regras que talvez não façam sentido para você, mas devem ser respeitadas mesmo assim. Por exemplo, ficar zanzando na cozinha enquanto eu estou cozinhando. Prefiro que entrem no banheiro enquanto eu estou cagando do que entrem na cozinha enquanto eu estou cozinhando pois além de ser perigoso, me atrapalha e me irrita demais. Como essa, temos várias. E eu não me importo se a pessoa concorda ou não, gosta ou não, entende ou não. Tem que seguir.

Eu não sou boa companhia para quase nada. Eu não sou uma companhia divertida. Não gosto de sair. Não gosto de receber gente. Não bebo. Não uso drogas. Conte comigo para praticar atividade física (longe da natureza) ou para atividades gastronômicas ou intelectuais. E só.

Minha casa é toda telada, para evitar que qualquer mínimo resquício de natureza entre nela. Basicamente eu moro em um lugar blindado contra a natureza e seus agentes nefastos, com excelente wi-fi e com temperatura sempre abaixo de 20° (o aquecimento não vai passar disso), no qual se deve permanecer em silêncio e cultivar hábitos silenciosos e não me dirigir a palavra quando eu estiver trabalhando.

Eu sei o que o Somir vai falar: que eu cozinho. Sim, eu cozinho, eu preparo tudo com prazer, eu gosto de cozinhar é só pedir. Eu cozinho basicamente qualquer coisa que me pedirem. Na minha casa se come bem, todo tipo de comida. Mas, meus queridos, a que preço? Se você quer comida, peça por um aplicativo, que é muito mais sensato do que ter que se sujeitar a tudo isso que eu te narrei.

A menos que você seja muito parecido comigo, viver comigo seria um inferno tirano que te estressaria absurdamente. Vai viver com o Somir que é muito mais flexível do que eu.

Para dizer que ainda não entendeu a escolha de um poodle (eu também não), para dizer que só pelo poodle já vai morar com o Somir ou ainda para dizer que é melhor toda a minha tirania do que receber uma visita do Alicate: comente.

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convivência, meta, relacionamentos

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