Campanha da discórdia.

Eu demorei um pouco para falar sobre essa história porque meu cérebro não conseguia fazer muito sentido da coisa: depois de uma postagem patrocinada com a transexual Dylan Mulvaney, a cerveja Bud Light recebeu um enorme boicote do público americano, o que culminou em quedas expressivas de vendas e uma derrubada no preço das ações. Foi apenas mais um caso de transfobia?

Sim, provavelmente.

Mas não tão simples assim como boa parte da mídia vai te vender ao falar do tema. É claro que o preconceito de muita gente em relação aos transexuais e público LGBT+ em geral é parte integrante do processo, mas é também a gota d’água que transbordou o copo. Não é só sobre Dylan.

No dia 1º de abril de 2023, Dylan completava um ano da sua transição de gênero de homem para mulher. O departamento de marketing da cerveja Bud Light resolveu participar do momento fazendo latas especiais para ela e patrocinando um post comemorativo. Uma ação rápida e provavelmente bem barata para os padrões da marca líder em vendas nos EUA.

Era para dar uma lacradinha de leve, ganhar uns biscoitos e seguir a vida como se nada. Mas tinha uma armadilha ali, centrada na figura de Dylan. Desde o começo de sua transição, já se criticava a comediante relativamente desconhecida de espetacularizar o processo para ganhar mais atenção e consequentemente, dinheiro.

E numa daquelas uniões improváveis que só a era das redes sociais nos presenteia, feministas radicais e conservadores se juntaram na mesma desconfiança que Dylan estava apenas fingindo. Não cabe a mim, e francamente, a ninguém ficar regulando esse tipo de coisa nos outros, mas é verdade que a pessoa escolhida pela Bud Light tinha uma aura ainda mais polêmica que boa parte dos outros transexuais que poderia ter escolhido.

Trazendo para a realidade brasileira, por exemplo: se a Skol resolve fazer uma postagem patrocinada com o Thammy Gretchen, poderia até ter uma reação negativa do povo mais preconceituoso, mas a maioria de nós acredita nessa transição. Concorde ou não com a decisão, Thammy foi lá e se transformou em homem com toda a força que tinha. Tem algo muito sólido ali que daria veracidade ao apoio da marca.

Como Dylan tinha essa nuvem de truque midiático pairando em cima da cabeça, a Bud Light acabou colocando seu barco num porto muito pouco seguro. Dylan foi muito criticada por passar a impressão que era um homem brincando de ser mulher, e isso foi essencial para o boicote da marca pelo público mais reacionário americano.

Não que o americano médio tenha essa sutileza mental, mas a porta estava muito mais aberta dessa vez para uma reação negativa. Dylan tinha uma imagem pública conectada à lacração com fins lucrativos. Talvez a coitada realmente só queira ser mulher e as acusações de estar só colocando uma peruca e brincando sejam infundadas, mas isso impacta no resultado.

Numa outra comparação direta com a Skol, a Bud Light é a cerveja preferida da ralé americana, um mix de reconhecimento de marca e preços baixos que a estabeleceu como produto mais vendido no setor. É aquela cerveja que qualquer bar e supermercado tem à vontade. O caipira americano médio é movido a Bud Light. O mesmo que vota no Trump e acha que é comunismo não ser cobrado dez anos de salário a cada vez que entra num hospital.

Faísca, mato seco. Influenciadores e mídia tradicional mais alinhados com a direita americana foram para cima da história e começaram a se perguntar se a Bud Light sabia quem era seu público. Normalmente pedidos de boicote de uma marca não são muito efetivos, ainda mais uma tão popular e bem distribuída como a da vez, mas nesse caso específico, o povo mais progressivo não reagiu com força denunciando o preconceito.

Dylan era um pouco mais complicada de defender que a média. E já tinha detratores mesmo dentro do lado lacrador da força. Talvez percebendo que a reação à proposta de boicote não tinha sido violenta o suficiente por parte dos progressistas, até algumas celebridades mais à direita americanas entraram na conversa. Kid Rock até gravou um vídeo metralhando caixas de cerveja Bud Light.

Dylan não era importante ao ponto de gerar toda essa reação, mas depois de tanto tempo sendo impactados por campanhas publicitárias cada vez mais inclusivas (vulgo excluindo o comprador médio por tabela), esse povo mais reacionário americano viu a chance de mandar uma mensagem: não queriam suas marcas preferidas representadas por pessoas diferentes deles.

É babaquice? Sim. Se você entrar nessa pilha de que o mundo vai acabar por causa de homem de peruca, vai sofrer por uma imensa bobagem e se radicalizar contra quem menos te ameaça atualmente. Os bilionários que se assustaram com o movimento “Ocupe Wall Street” agradecem a distração e torcem para que vocês se entretenham por milênios patrulhando o ânus uns dos outros enquanto eles aumentam suas fortunas.

Mas tem uma complexidade que vai além de “reacionário odeia transexual por motivos de Jesus”, como já escrevi alguns anos atrás, existe uma tendência do povo que faz publicidade ter visões mais progressistas. Seja pela proximidade com o meio artístico, seja pela necessidade de um pouco mais de massa cinzenta para dar conta do trabalho, raramente vamos ver o pessoal criativo focando em pautas conservadoras. Agência de publicidade tem essa pegada mais esquerdista de universidade pública mesmo.

Quando temos o publicitário médio lidando com um produto que é vendido para o conservador médio, as coisas podem dar errado ao primeiro sinal de distração dos gestores. A Bud Light disse para seus investidores que a peça publicitária com Dylan tinha sido criada por uma agência parceira e não fazia parte da estratégia de comunicação da marca.

Não sei o que é pior, se é mentira e o departamento de marketing aprovou, ou se eles deixaram isso rolar sem supervisão nenhuma. Os dois casos sugerem erros primários no processo de criação e aprovação de ações publicitárias. Alguém não pensou antes de fazer seu trabalho ou alguém não fez seu trabalho. A diretora de marketing da marca foi desligada logo depois, e dificilmente vamos saber exatamente por que ela foi desligada.

Mas algo me diz que não foi distração: foi intencional. Quem lida com produtos de massa como cervejas baratas normalmente não é seletivo com seu público-alvo. Tentam manter uma aura de atualidade na comunicação, para ter mais chances de conquistarem novas gerações de clientes, mas também não é para pular de cabeça em todas as tendências dos jovens: o público mais velho precisa continuar consumindo.

Como a cada dia que passa fica mais e mais comum ver propagandas apelando para a visão mais progressista (especialmente em questões de sexualidade) das novas gerações, cria-se a falsa sensação de segurança em ações como a da Bud Light com Dylan Mulvaney. Não era seguro. O consumidor médio da cerveja escuta todos os dias como os “gays estão destruindo a América”, e mesmo que não se radicalizem ao ponto de sair matando todo mundo por aí (pelo menos a maioria), a semente está plantada.

A versão do consumidor médio da Bud Light do que configura normalidade em 2023 não tem transexuais sendo indiferenciáveis de mulheres. No máximo tem uma tolerância à mudança do status quo, mesmo que ressentida. Uma marca tão sinônima do caipira americano como a Bud Light não era o lugar onde eles esperavam ver mudanças. As mudanças chegaram. A tolerância era muito frágil e estourou.

O boicote foi bem mais forte que qualquer previsão inicial, a cerveja foi ganhando infâmia em vários estados mais conservadores dos EUA. E não houve uma reação comparável no público mais progressista, até porque a identidade da Bud Light sempre foi mais ligada ao público que a boicota agora. Os lacradores habituais não queriam tanto assim salvar a marca. Muito “masculinidade tóxica” para eles.

Foi uma tempestade perfeita de apostar na influencer errada com uma estratégia errada na hora errada: a fadiga das notícias sobre transexuais já se estabelece ao redor do mundo. Nem tem mais essa questão de ser uma grande novidade trabalhar sua imagem com gays e transexuais, na verdade até já soa meio como exploração. Nesse ambiente usar justamente alguém acusada de fazer um show da sua transição tinha tudo para dar errado.

Você tem que conhecer seu público-alvo, e mais do que isso, conhecer o que conta como atualidade para o seu público-alvo. Uma pessoa super progressista numa agência de publicidade é exposta à uma realidade bem diferente do caipira que toma Bud Light depois de trabalhar na fazenda. E é aí que vemos o departamento de marketing da empresa falhando terrivelmente: tem que dizer não para o que for excessivo para seu consumidor médio.

Mas eu aposto que rolou um medo de ser acusada de transfóbica pela diretora de marketing da empresa. O que até me leva a pensar no problema extra que executivas mulheres podem ter quanto mais se tornam comuns: a expectativa delas serem sempre muito progressivas e abertas à inclusão. A marca já era a campeã de vendas no país, impossível ser mais inclusivo do que vender para todo mundo em todos os lugares. Não precisava enfiar arco-íris e embaixadoras de marca trans para manter isso funcionando.

Mas talvez não tenham resistido à pressão interna de grandes empresas para baterem metas de diversidade e alinhamento à mensagem de justiça social. Metas baseadas na aparência de diversidade e justiça social. Se estivermos só pensando em aparências, a ação publicitária que gerou o boicote da marca fazia sentido. Mas na vida real, essa não é a função de uma empresa que vende bebidas alcóolicas, então é muito difícil imaginar como a marca estaria ajudando em qualquer causa com a lata comemorativa e a postagem paga de Dylan Mulvaney.

O que isso muda na vida dos transexuais? Eles e elas não podiam beber cerveja antes? O problema de alguém nessa vida é não aparecer em propaganda de cerveja vagabunda? Inclusão de aparência é aparência de inclusão. Não só a Bud Light não tinha nada de prático para oferecer à causa dos transexuais, como ainda foi mexer com quem estava quieto e pagou o preço por mais inúmeras marcas que só exploram o arco-íris para vender um pouco mais.

Quem está no negócio de melhorar a vida de seres humanos é o Estado, não empresas aleatórias. Não só tem pouca ou nenhuma razão prática para essas marcas lacrarem, como ainda vão gerando o tipo de fadiga que desemboca em reações como a dos conservadores americanos com o a Bud Light.

As pessoas sentem quando não é de verdade. E pior, talvez essa falsidade toda de empresas que lacram com fins lucrativos acabe respingando nos públicos que dizem querer ajudar com mais visibilidade. Quantos caipiras americanos não tiveram seu primeiro contato mais aprofundado com transexuais com a polêmica Dylan? Que cá entre nós, tem mais jeito de travesti que transexual.

Eu boicotaria a Bud Light por causa dessa ação publicitária? Nunca. Eu fiquei incomodado com usarem um transexual numa propaganda? Não. Eu acho que o pessoal que boicotou é meio retardado? Acho. Mas isso não muda o fato de que ano após ano de marcas explorando lacração para vender mais criaram uma aura de falsidade sobre a justiça social moderna, que eventualmente vai gerar reações como essas. Não é a mesma que eu tenho, mas entendo de onde vem.

Por ser publicitário, é muito simples entender esse cinismo de grandes marcas com suas causas nobres, é uma maquiagem que usam para que as pessoas não lembrem que no final do dia, estão só querendo ganhar mais dinheiro e sossegar os acionistas. Mas eu duvido que o cidadão médio veja dessa forma, para ele, as empresas estão escolhendo causas e querendo ser julgadas por isso.

Que sejam julgadas então. E se fizerem como a Bud Light, que está pedindo desculpas para os caipiras sem renegar a campanha que fez, tentando varrer para debaixo do tapete e deixando os dois lados muito mais putos ainda, que continuem se afundando de formas hilárias para nos entreter.

E se for para tirar uma lição dessa história, que seja uma das mais antigas do marketing: conheça o seu público.

Para dizer que ainda não entende (não é lógico mesmo, é sentimento), para dizer que quem lacra não lucra (mentira, quem lacra mal não lucra), ou mesmo para dizer que Bud é ruim mesmo: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • “O mesmo que vota no Trump e acha que é comunismo não ser cobrado dez anos de salário a cada vez que entra num hospital.”

    Pra frase ficar perfeita, faltou só dizer: “(…) e que tem a bandeira dos EUA hasteada na frente de casa, perto da qual canta o hino do país toda manhã em posição de sentido.”.

  • Quando fui cantar a bola de que o boicote tinha vindo principalmente dos “rednecks”, que é basicamente a população interiorana que vive nos rincões dos EUA, sendo geralmente mais simpática ao GOP que aos membros do Democratic Party, vieram me citar que essa não é a primeira vez que eles fazem uma grande empresa na área de bebidas quase beijar a lona.
    Nos anos 80, era a Coca-Cola que estava amargando prejuízo com a New Coke.

  • Não sou muito fã das cervejas, em especial daquelas da AmBev. Brahma e Antárctica nem tem gosto de nada. Já a Skol é pior porque tem gosto de coisa aguada.
    De qualquer forma, não bebo mais porque agora tomo uma medicação que sozinha já apresenta um certo grau de hepatoxicidade e que só piora em combinação com o álcool.

  • Parando de zoar o nome do Gretchen:

    Nah, mesmo considerando o carisma negativa de Dylan, dado o tamanho do jogo de empurra empurra, mesmo se fosse uma trans carismática (ao invés desse ser que cada ano quer ser uma coisa diferente – me julguem, eu acho que é só mais um biscoiteiro que faz questão de falar merda pra se manter nos holofotes) era capaz de dar o mesmo resultado.

  • Quem são os “escolhidos” vestidos de judeu conservador? Nova seita? Depois do macarrão voador e dos “Jews for Jesus” nada me surpreende mais.

  • Sempre vi especialistas e artigos científicos falando que quanto mais cedo a pessoa for exposta à diversidade melhor, pois sua mente desmistificaria os preconceitos. Mas é impressão minha ou quanto mais fazem isso, mais o oposto ocorre?
    Tem certas discussões que eu nunca imaginaria que sairiam de lugares obscuros da internet e se espalhariam entre a população “normie”, por falta de termo melhor. Temas considerados sensíveis (tipo o tal do 13/50, problemas causados pela imigração excessiva, relação entre o sucesso de uma pessoa e a presença paterna, doenças que são mais comuns em determinada população, dúvidas sobre Holocausto etc.) e fatos que desmentem certas narrativas estão sendo falados abertamente, independente de “cultura do cancelamento” ou “ditadura do politicamente correto”. O que vocês acham?

    • Minha opinião: depende de como você seja apresentado à diversidade.
      Se for como eu, com pessoa negra tentando me agredir e agredir minha mãe (com câncer) por ter entendido que estávamos falando mal de negros (não estávamos, inclusive estávamos falando em outro idioma),realmente não ajuda muito a ter boa vontade e empatia. Quando a diversidade chega até você carregada de mágoa, rancor e revanchismo desperta uma vontade enorme de pensar “olha aí, tem mais é que se foder mesmo”. Quando a diversidade chega de forma agressiva, do tipo “vai ter que me engolir”, com gente fazendo coisas para “chocar a sociedade”, em vez de aceitação se cria resistência.

  • Budweiser é ruinzinha, sim. Se alguém me oferece isso, dou uma de Calvo Campari sem hesitar.

    E colocar o Thammy em propaganda de cerveja, ia dar bom. Ele tem cara de tio biriteiro mesmo.

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