Ditaduras líquidas.

A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) determinou que a Google cumpra, imediatamente, uma série de medidas cautelares para corrigir os indícios de que a empresa está censurando o debate público sobre o Projeto de Lei 2630/2020, o chamado PL das Fake News.

A Senacon determinou a Google que sinalize ao usuário como publicidade este e outros conteúdos contrários à aprovação do PL 2630. Por já ter dado ampla divulgação às críticas à proposta de regulação das plataformas digitais, a Google também terá que começar a veicular, em até duas horas após ser notificada da decisão, as posições favoráveis ao projeto de lei.

Se descumprir as determinações da Senacon, a empresa será multada em R$ 1 milhão por hora. LINK


Censura do bem. Desfavor da Semana.

SALLY

O fato do brasileiro se preocupar mais com a forma do que com a essência sempre foi motivo de críticas aqui: desde gente que não tem dinheiro para pagar as contas, mas tem carro importado para “parecer bem-sucedido” até gente que fica com parceiro abusador e acoberta seus abusos para “parecer ser uma família feliz”. Mas agora está acontecendo em escala coletiva e, como não estamos vendo muita gente falar sobre isso, achamos importante trazer o assunto a debate.

Nossos conceitos mudam com o passar dos anos, nem tanto pela nossa evolução pessoal, mas sim pela evolução social. O mundo não é o mesmo que era na década de 60, o que se considerava um relacionamento de sucesso na época pode não ser o mesmo que se considera hoje. Nem mesmo o que se considerava uma mulher/homem bonito na época é o mesmo que se considera hoje.

Porém, parece que tem muita gente abraçada a conceitos antigos, sem a menor vontade de abandoná-los. E isso é um perigo, pois se você está esperando que uma ameaça venha de uma forma antiga, obsoleta e ultrapassada, só vai conseguir se defender se ela vier nessa roupagem. As ameaças, os abusos, os excessos, assim como todo o resto, também se atualizam e podem vir de formas muito diferentes.

Se você acha que uma postura opressiva de um Governo só pode vir na forma de tanque fechando o Congresso, eu te convido a reavaliar seus conceitos. Esse fantasma não volta mais, é incompatível com os tempos atuais. É burro, ultrapassado, desnecessário. Existem formas muito mais atuais, sutis e discretas de ser autoritário.

As formas padrão de supressão de direitos, de autoritarismo, de risco à democracia se atualizaram. E se você mede o dano buscando a presença das formas antigas, vão te tirar direitos bem debaixo do seu nariz e você nem vai perceber, pois estará focado em detectar agressões de acordo com as suas crenças, com o que você estipulou que seriam agressões.

Então, é hora de esquecer a forma. Não importa se é um tanque fechando o Congresso ou se é matar alguém pisoteado por gatinhos, o abuso por parte do Governo pode vir com infinitas roupagens, inclusive revestido de ato nobre, de bondade, de proteção, de “preocupação com as criancinhas” ou “preocupação com o trabalhador”.

Não é no discurso que você vai perceber se há abuso. Abuso, com a melhor das intenções, continua sendo abuso. Não é em um rol de atos fechados que você vai perceber se há abuso. Abuso pode ser perpetrado de infinitas formas e, se você tem medo específico de alguma destas formas, isso é uma questão pessoal sua, que não deve nortear sua vigilância: é preciso estar atento a todas elas.

Para estar sempre atento a abusos basta observar a consequência do que se faz. Não importa quem faz, não importa como faz, não importa quais são as supostas intenções de quem faz. O que importa é que isso acarreta, as consequências. Se focar apenas em supostas boas intenções, você não é muito diferente de uma mulher de malandro, que apanha, mas cede quando escuta que a pessoa te ama, que você deu causa a isso ou que a pessoa jura que vai mudar. Acredite, político algum tem boas intenções no Brasil.

Abuso é abuso. Abuso não se tolera, pois se você tolera está passando a horrível mensagem de que pode fazer mais – e fatalmente virá mais e mais. Abuso é como um filhotinho de tigre: parece inofensivo quando é pequeno, mas em pouco tempo cresce e pode te matar.

O que estamos vendo hoje no Brasil é abuso. Abuso de poder, abuso de autoridade e ameaça à democracia. A narrativa de que quem ameaçava a democracia era o antecessor, uma ameba incapaz de comer sem derrubar farofa no chão, fez com que o atual governo tenha carta branca para fazer o que quiser, afinal, ele veio para “defender a democracia”. Foi instituída essa narrativa, e muita gente parece estar acreditando.

Como não vão fazer nada brutal, nada que esteja diretamente associado a uma ditadura, periga das pessoas não se preocuparem. É extremamente doloroso e assustador perceber que aqueles que foram colocados no poder para salvar a democracia a estão atacando, então, não creio que muita gente tenha a capacidade e estrutura emocional suficientes para realmente deixar essa ficha cair e entender a seriedade do que está acontecendo.

Quando falamos em “ditadura” pensamos em uma única pessoa com poderes absolutos, agindo de forma tirana. Ditadura não é um único homem com poderes absolutos. Ditadura não é a impossibilidade de votar. Ditadura não é militar dando porrada em pessoas em um porão.

O que caracteriza o conceito de uma ditadura é a não-participação popular, um sistema em que o povo não é escutado (ainda que finjam que é escutado), em que os interesses do povo não são levados em consideração (ainda que finjam levá-los em consideração), em que o poder não emane do povo (ainda que, no discurso, se diga que emana).

Todos os grandes filhos da puta da história, desde Hitler a Putin, justificaram cada um de seus atos como sendo em nome de uma causa nobre. Todos os governos opressivos, autoritários e autocráticos do mundo conquistaram as pessoas na base do medo de uma ameaça a qual somente eles poderiam combater. A fórmula é manjada, batida, mas agora tem uma nova roupagem, que, por ser mais sutil, vai demorar a ser percebida.

Diga-se de passagem, a nova roupagem é grotesca. É como o Pernalonga de batom se fazendo passar por uma mulher. Mas está colando. “É para salvar as criancinhas”. “É pelo trabalhador”. “Se criticar o Bolsonaro volta”. O outro lado foi vilanizado e pessoas que se apresentam como contraponto estão fazendo exatamente o mesmo que o outro lado fazia, se não pior, e estão sendo aplaudidas.

Tem um grupo pequeno que comanda o Brasil neste momento e está abusando do poder. Ditadura nem sempre é coisa de um homem só. É um grupo que está testando as águas, para ver se dá ou não para mergulhar. E sim, o brasileiro tem total condição de dizer “não vai dar não” e colocar um limite, mas sua autoestima não lhe permite acreditar nisso.

Prestem atenção ao que está acontecendo no país. Quando sacaneiam o Google, mandando tirar coisas do ar e, pior, mandando colocar determinado conteúdo no ar, é hora de se perguntar: “se estão fazendo isso com o Google, o que poderiam fazer comigo?”. São esses que vieram para salvar a democracia? Tenha santa paciência, para salvar a democracia não precisa censurar opinião.

Infelizmente a democracia faliu e ninguém se dispôs a tentar desenvolver um sistema melhor. Vamos começar a pensar no assunto? Talvez a sua contribuição para uma mudança seja com uma boa ideia.

Para dizer que não tem medo pois são muito burros, para dizer “acuse-os do que você faz” ou ainda para dizer que nós também praticamos censura quando barramos comentários (malditos millenials!): sally@desfavor.com

SOMIR

Você pode escolher alguns pontos históricos para definir o começo do mundo democrático como conhecemos. Pelo menos o ocidental. Não estamos falando de democracia em todos os lugares, mas da visão de que democracia é parte integrante de evolução social. Talvez você considere esse ponto nas primeiras experiências da antiguidade, talvez marque o ponto nos criadores da palavra, os gregos. Pode ser até que ache que essa visão venha da Revolução Francesa.

Eu marco o início dessa visão pervasiva de democracia como solução para a sociedade humana a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Os americanos usaram sua força econômica, militar e cultural para espalhar a ideia de superioridade do modelo de organização. Em 2023 o mundo passa longe de oferecer democracias para todos seus habitantes, mas a transmissão da ideia funcionou. Fui impactado da mesma forma que quase todo mundo debaixo da esfera de influência ianque.

Quando você olha para democracias ricas dos tempos modernos, acredita nessa ideia. Apesar de torrar a paciência às vezes, muito melhor discutir excessos de lacração do que ter medo de ser torturado num porão por discordar do governo. Dadas as opções, democracia é a melhor alternativa disponível.

Mas… e infelizmente tem um mas… não é a solução mágica que décadas de propaganda americana fizeram o mundo acreditar. O século XX viu uma transformação imensa na forma como o ser humano vivia. Uma pessoa que nasceu num vilarejo rural onde as pessoas passavam fome viu os netos do outro lado do mundo ao vivo numa tela mágica que cabia no bolso. A bonança incrível que uma boa parte da humanidade experimentou em um século alimentou a empolgação com o sistema democrático.

O problema é que uma coisa não estava necessariamente conectada à outra. Democracia é um excelente sistema de organização social, especialmente se comparada com monarquias, teocracias e ditaduras, mas não resolve todos os problemas que temos. O ser humano da virada do século XX para o XXI e nas suas primeiras décadas começa a sentir uma espécie de fadiga da empolgação democrática.

Naquele ritmo alucinante de evolução, não deveríamos ter vencido fome, guerra e doenças nessa altura do campeonato? Especialmente para os países que conseguiram instaurar democracias. A propaganda nos disse que essa era a base do sucesso das nações mais justas e poderosas do mundo. Mas aí, diversos países compraram esse modelo de organização e os resultados não são tão impressionantes assim.

O brasileiro acreditou que tirar os militares do poder era um passo em direção a um futuro melhor. Algumas décadas depois, trocamos Lula por Bolsonaro e Bolsonaro por Lula de novo. Tem milhões de pessoas passando aperto para lidar com necessidades básicas como alimentação e saúde… cadê o sucesso da democracia que nos venderam por tantos anos?

É claro que existem alguns erros fundamentais nesse desânimo que a democracia está causando ao redor do mundo, democracia não deveria ser o fim do processo, mas apenas uma etapa de desintoxicação do autoritarismo histórico. Muito por causa dessa propaganda de democracia como o último passo para uma sociedade utópica de igualdade e justiça, vemos o desespero com a falta de resultados em uma tolerância cada vez maior a atitudes autocráticas.

Talvez sem nunca ter racionalizado isso, o cidadão médio começou a procurar alternativas ao sistema democrático. Só que ao invés de olhar para a frente, olhou para trás. Esquerda e direita cada vez mais afeitas à ideia de usar o Estado para controlar dissidentes, todo mundo certo que sua ditadura vai ser do bem. Só que, vejam só, como a propaganda ainda faz parte da mente de muita gente, o truque da vez é pregar autoritarismo como forma de defender a liberdade e a justiça.

“A ideia é a mesma, fica tranquilo, mas a gente precisa oprimir um pouco você para conseguir o mundo ideal.”

E aí, passa debaixo do nariz de boa parte do país o absurdo que foi mandar o Google apresentar uma opinião divergente para agradar o governo. O cidadão médio mal deve ter notado o que aconteceu, e as supostas cabeças pensantes do país, especialmente na grande mídia, não se rebelaram contra essa tentativa de controle da informação. É assim que governantes autoritários competentes agem. É a tal da ditadura líquida que a Sally descreveu. Bolsonaro era um bobo-da-corte cujos planos infantilóides podiam ser enxergados a quilômetros de distância. Lula atua de forma muito mais eficiente… e moderna.

Ele já trabalha com a ideia de fadiga da democracia. E com a percepção de que ao invés de buscar um novo estágio evolutivo de organização social, o ser humano médio está começando a tolerar de novo sistemas autocráticos que resolvam suas disputas estúpidas de internet. O Google não é santo, ninguém é, mas o governo se livrou fácil demais de uma atitude horrível contra a empresa americana. Não é sobre defender ou atacar o Google, é sobre o poder que o Estado tenta exercer sobre a liberdade de expressão num país. Num mundo onde a propaganda sobre democracia ainda estivesse com sua força total, Lula pagaria um preço altíssimo por isso.

No mundo onde as pessoas estão cansadas da democracia não ter resolvido todos seus problemas (nunca foi o plano), é só uma atitude necessária contra os inimigos da vez. E a vantagem de 2023 é que você pode criar um novo inimigo por minuto. As pessoas estão sempre animadas para encontrar o novo vilão. Se for pelo “bem”, pode censurar quem quiser.

Mas… quem define o que é o bem? Se estamos dispostos a aceitar violações às nossas liberdades em nome de um objetivo nobre, não seria melhor que concordássemos em algum objetivo nobre para começo de conversa? Eu entendo esse cansaço da democracia, eu o sinto também, com força depois de duas eleições presidenciais escolhendo entre as mesmas opções terríveis.

A democracia tribal era diferente da dos gregos, a dos gregos diferente da dos franceses, a dos franceses diferente da dos americanos… está na hora de um novo passo. Sistemas de governo evoluem. Essa fadiga é uma boa coisa se for direcionada para uma evolução, mas é um perigo se o povo começar a achar que governos autoritários são a solução. Porque as ditaduras modernas também são diferentes das ditaduras antigas.

Elas vão tomando seus direitos aos poucos, com muito populismo e propaganda em prol de um futuro melhor que a democracia do século XX prometeu e não conseguiu cumprir para boa parte da população mundial. O erro é achar que a democracia falhou… não, foi a propaganda da democracia que ficou exposta como propaganda. Vivemos décadas vendo americanos vendendo seu modelo de funcionamento como a resposta para tudo. Era mentira. Faz bem perceber que era mentira, mas não faz bem achar que é a ideia do poder emanar do povo que estava errada.

Para dizer que votaria em mim para ditador, para dizer que esse povo não merece ter liberdade, ou mesmo para dizer que o melhor sistema de governo é ser rico: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , , , ,

Comments (10)

  • Não é a toa que a religião que mais cresce no mundo, até em países desenvolvidos, é a que mais flerta com autoritarismo, ignorância e violência… É disso que o cidadão médio gosta.

  • As mais perigosas, na minha opinião, são as ditaduras do pensamento. Uma idéia (meme) bizarra e perigosa que se fortaleceu com a digitalização e as mídias sociais é que estar certo é mais importante que tudo. Então tem gente que acha que tem que estar sempre certo o tempo todo. Quando isso chega nos altos níveis de administração, a coisa fede. É o que está acontecendo no Brasil.

  • Qualquer semelhança com o religioso que usa o diabo para estigmatizar o diferente NÃO é mera coinciência

    Diga-se de passagem, a nova roupagem é grotesca. É como o Pernalonga de batom se fazendo passar por uma mulher. Mas está colando. “É para salvar as criancinhas”. “É pelo trabalhador”. “Se criticar o Bolsonaro volta”. O outro lado foi vilanizado e pessoas que se apresentam como contraponto estão fazendo exatamente o mesmo que o outro lado fazia, se não pior, e estão sendo aplaudidas.

  • Imagina uma visão de mundo tão frágil, tão fácil de ser refutada com fatos, que só sobrevive com censura.

    Ditadores são bebezões mimados.

    • Nós temos excelentes exemplos ocidentais.

      Reino Unido é tão absurdo que lembro de uma marcha do orgulho alfabeto onde lésbicas foram impedidas de participarem pois foram acusadas de serem TERFs (sem prova alguma), logo são danosas às frágeis sensibilidades locais

      Nós EUA qualquer manifestação real de descontentamento com preconceito e luta trabalhista é resolvida com uma polícia com tantas armas que faz a nossa truculência parecer um afago.

      Na Austrália foderam tanto com as condições climáticas, habitação e inflação que mesmo quem já estava em processo de quitação do imóvel teve de vender pois era impossível acompanhar o aumento do preço das parcelas (não me pergunte como fizeram um contrato assinado ter valor variável, também não sei).

      Endêmico. E não acho que há maneira pacífica de se resolver isso. Cada dia mais concordo com os franceses.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: