Espaço vazio.

Vorana acabara de sair da cama, ainda atordoada pelos efeitos do potente remédio contra ansiedade prescrito por seu conselheiro. Sentada diante de uma mesa com apenas uma xícara de café e uma barra proteica, suspira antecipando o que viria a seguir. Depois de alguma hesitação, permite que os sinais da Rede sejam transmitidos diretamente para seu cérebro.

129.821 visualizações e 49 mensagens nas últimas 9 horas. Números terríveis, franco declínio de seu auge de popularidade. Servia de algum consolo o relato parecido vindo de milhares de outras influencers no canal Terra 77H3. De alguns meses para cá, o número de interessados no material produzido por Vorana e similares desabara.

Tudo por causa de uma nova espécie adicionada à Coletividade: os aalasianos, planeta paradisíaco virtualmente intocado até sua conexão com a Rede em 2419. Seus habitantes tinham uma adorável pele rosada e grandes olhos esverdeados para complementar a curvilínea forma quadrúpede. Sessaro, seu representante mais famoso, acabara de bater o recorde de 10 trilhões de visualizações numa transmissão.

Recorde que pertencia aos humanos. Vorana nunca tinha passado de um bilhão, mas sentia orgulho compartilhado pelo recorde de 8 trilhões que uma bela jovem do canal Terra 93Y2 conquistara menos de 3 anos antes. O dinheiro guardado dos tempos de fama dos terráqueos provavelmente a garantiria milhares de anos de extensão de vida, mas o sonho de viajar pelos planetas da Rede custaria muito mais do que isso.

Desanimada, ela coloca seu conselheiro para emular seu estilo de resposta para as poucas mensagens recebidas através da galáxia durante suas horas de sono. No começo era realmente divertido conhecer novos povos e culturas através de conversas e vídeos, mas no final das contas a maioria dos contatos era baseado em algum tipo de fetiche obscuro. Enquanto não sabia que mostrar a língua era um tabu incrível no planeta Go’oolak, enviou de graça centenas de vídeos fazendo caretas para seus novos fãs do outro lado da Via Láctea, sem ideia de que poderia ter cobrado um milhão de anos de vida por eles.

Seriam mais algumas horas até receber as respostas sobre a cobrança para filmar as mais inusitadas cenas pedidas por interessados de todos os cantos da Coletividade. Vorana tinha tempo para se atualizar sobre as notícias da região e pesquisar sobre as novas tendências. O mercado de comunicação à distância era a pedra fundamental da economia da Coletividade, da qual a Terra fazia parte há quase três décadas. Cientistas de espécies mais avançadas haviam descoberto como vencer a barreira da velocidade da luz para a transmissão de dados, mas não para viagens físicas.

A maioria dos povos trazidos para o grande grupo galáctico nunca havia sequer tocado um ser de outro planeta. A Terra não era exceção. Todos os contatos com alienígenas eram por chamadas de vídeo, uma versão mais avançada de vídeo que permitia movimentação livre do ponto de vista, mas vídeo da mesma forma. Vorana tinha todas suas necessidades básicas atendidas por inteligências artificiais importadas de outros planetas, muitas delas complexas demais para o ser humano médio compreender.

Boa parte das funções administrativas do planeta Terra e seu enxame de estações espaciais em órbita eram realizadas remotamente pelo governo central da Coletividade, uma série de computadores poderosos que agiam como uma só mente. Fome, doenças e guerras já não faziam parte da memória recente de nenhum ser humano.

Aliás, desde o nascimento de Vorana, a própria ideia de morar na Terra já não fazia parte da vida do ser humano médio. Com boa parte do planeta planejado para produção de alimentos e reservas ambientais, mais de 80% da população já tinha se mudado para habitats em órbita. A posição da estação individual de Vorana, comprada com o dinheiro de alguns vídeos de sucesso poucos anos atrás, logo ficaria cara demais para manter no ritmo atual de visualizações e pedidos de fãs.

A vista constante do planeta de seus antepassados provavelmente seria substituída pelo cinzento cenário lunar, localização pelo menos dez vezes mais barata, mesmo que os serviços fossem muito piores naquela distância. Vorana sente o peito apertando de novo, desesperada por alguma ideia para gerar mais atenção. Seu conselheiro assume uma posição frontal no foco mental e sugere mais medicação. Um dispenser normalmente de acesso bloqueado se abre e entrega uma pílula branca.

Vorana engole sem pensar duas vezes. O nervosismo se esvai em questão de minutos, e ela começa a observar os vídeos de humanos com mais visualizações nas últimas horas. O algoritmo da Rede parecia estar impulsionando conteúdos de pessoas fazendo suas necessidades fisiológicas em closes excessivos, provavelmente baseado na popularidade do processo reprodutivo dos aalasianos, que expeliam seus jovens em pastas avermelhadas através de um orifício muito parecido com o órgão excretor humano.

Ela considera a possibilidade por alguns momentos, mas prefere buscar outras opções. Com certeza a febre com a nova espécie descoberta não duraria tanto tempo assim. Era melhor se concentrar em produzir o conteúdo que conhecia bem e esperar o mercado melhorar por conta própria. Os humanos sempre estavam entre as dez primeiras espécies mais atraentes da Coletividade desde sua entrada. Os aalasianos eram só uma novidade passageira.

Por isso, ela começa a se preparar para mais uma filmagem. Coloca um macacão multicolorido, entra na sala de gravação e dá mais um suspiro antes de abrir um sorriso exagerado. Pelas próximas três horas, dança, rodopia e brinca com brinquedos enormes em takes sucessivos até que o efeito do remédio começa a enfraquecer e o sorriso fica difícil de sustentar. Esgotada, pede para seu conselheiro editar as cenas com maior potencial de visualizações e enviar para seus seguidores na Rede.

Depois de um longo banho transmitido ao vivo para os assinantes do seu pacote especial de conteúdo, ela começa a receber as ofertas de pagamento por vídeos especiais das mensagens do dia anterior. Por sorte, nada de especialmente humilhante dessa vez. Rejeita apenas dois, um por ter relação com a tendência do algoritmo, e outro porque exige posições que o corpo humano não consegue fazer, erro comum de algumas espécies mais flexíveis. Ela passa o resto do dia realizando os desejos de diversos seres ao redor da galáxia, a maioria apenas pedindo mais do mesmo: comportamento infantilizado com objetos comicamente grandes.

Depois de ter seu convite de uma reunião ao vivo com duas amigas rejeitado por incompatibilidade de agendas, Vorana se deita numa grande cama, seu corpo espalhado pelo colchão, olhos ainda abertos em direção ao teto metálico da cabine. Num monitor lateral, a Terra passa em alta velocidade.

Do outro lado da galáxia, um ser com vários olhos acompanha a transmissão que pagara caro para acompanhar. Vorana deitada numa cama, estática. O peito diminuto da forma infantil humana subindo e descendo cada vez mais rápido. O sinal corta por alguns momentos, e na volta, ela está sentada na borda da cama, pés incapazes de tocar o chão. Ela segura um copo d’água enquanto um robô redondo sai de cena.

O ser continua observando por alguns minutos, mas logo troca o sinal pelo de uma adorável criatura aalasiana chacoalhando o corpo diante de um cenário multicolorido.

Para dizer que o futuro é horrível, para dizer que eu tinha que colocar coisa nojenta, ou mesmo para dizer que ainda não sabe lidar com os nomes que eu coloco: somir@desfavor.com

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Comments (2)

  • Somir, o futuro que você projeta nesse texto será então apenas uma versão em escala interplanetária, ou até galáctica, da triste realidade em que nós já vivemos hoje em dia?

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