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Colunas

Exauridos.

Ficamos divididos entre três assuntos para a coluna de hoje:

O caso de racismo contra Vinícius Jr., o ataque contra o meio-ambiente perpetrado pelo Estado brasileiro e a ameaça de novas pandemias no horizonte.

Percebemos então que queríamos falar da mesma coisa sobre todas eles: apatia causada pela forma cansativa que esses temas são abordados há vários e vários anos. Desfavor da Semana.

SALLY

A exaustão pode se apresentar de diferentes formas em um ser humano. Faça atividade física excessiva e no dia seguinte você terá dificuldade para andar. Beba além do que seu fígado pode processar e você ganhará uma bela ressaca. Coma além do que seu corpo aguenta e enfrentará uma indisposição gástrica. Mas, existe um tipo de excesso um pouco mais sutil que poucas pessoas parecem perceber, mas também gera consequências nocivas.

O excesso de estímulos emocionais pode acabar dessensibilizando as pessoas, banalizando o que é importante e deixando a sociedade anestesiada. É mais ou menos como a fábula menino que gritava “lobo”: ele gritou tantas vezes quando não havia perigo algum que, quando o lobo de fato apareceu, ninguém deu importância aos seus gritos.

Só nesta semana, vimos três casos de eventos importantes negligenciados: o caso grotesco de racismo contra o jogador Vinícius Jr., as atitudes tenebrosas do Governo Lula na pauta ambiental e a possibilidade de nova pandemia.

São três notícias de grande relevância, que deveriam despertar muita atenção e alguma atitude, no entanto, as pessoas parecem exaustas, de saco cheio e sem paciência para lidar com isso. Pudera, o pessoal está gritando “lobo” há tanto tempo que desistiram de levar a sério.

O caso do jogador Vinícius Jr. não é apenas um caso a mais no futebol. Além do racismo descarado, vimos cenas que indicavam violência, vimos a mídia local culpando o jogador pelo racismo, vimos colegas ficarem contra ele. Mas, como todo mundo vê racismo em tudo, quando ele finamente acontece, de uma forma grave e exacerbada, as pessoas não têm mais paciência, disponibilidade emocional nem vontade de se informar ou combater.

Tem aquela indignação formal, necessária para não pegar mal. Tem Lula pedindo “providências”, quando no país dele todo domingo tem racismo nos estádios. Resolver que é bom, nada. Nada será feito no Brasil para coibir racismo no futebol, vai continuar acontecendo e as pessoas vão continuar olhando e falando “nossa, que absurdo” e seguindo com suas vidas.

Só para citar um exemplo, em março de 2018, na saída do estádio Nilton Santos, após um clássico contra o Botafogo, o mesmo Vinícius Jr., que então jogava pelo Flamengo, foi chamado de “neguinho safado”. O Brasil é tão errado quanto a Espanha. E nada vai mudar, pois graças à histeria de chamar tudo de racismo, quando ele realmente acontece, ninguém dá bola.

Esta semana também vimos o governo limpando a bunda com o Ministério do Meio Ambiente e fritando (novamente, quem poderia imaginar?) a Marina Silva, colocando discretamente a culpa no Centrão e no Congresso. Mas, quem entende o funcionamento do país e dos três poderes sabe que a responsabilidade não é de terceiros, é do PT. O que está acontecendo é uma autorização para uma catástrofe ambiental em nome de dinheiro.

Mas, como as pessoas estão desde 1990 gritando que o planeta vai acabar, que vamos todos morrer, que as calotas de gelo vão derreter e alagar os continentes e coisas do tipo, ninguém se importa. Todo mundo aprendeu a conviver com a ideia de que o planeta está ferrado e é isso aí.

Só vemos uma indignação em função de pessoas, não dos atos: Bolsonaro era genocida que matava índio, criminoso que passava a boiada, bandido que estava acabando com a Amazônia. Lula não. Lula é desmatamento do bem, exploração predatória do amor, assassinato indígena com respeito.

As pessoas não têm mais condições emocionais de reagirem ao milésimo grito de “lobo” sobre a questão ambiental. Está todo mundo de saco cheio, está todo mundo preocupado em pagar as contas, está todo mundo exausto desse bombardeio de “olha só, você usou um canudo de plástico e agora a tartaruga morreu!”. Vão continuar ferrando a Amazônia e ninguém vai fazer nada.

E, por fim, a questão que eu acho mais grave: o risco de uma próxima pandemia, que é uma questão de “quando”, não de “se”. Ela vai acontecer, pois nós, seres humanos, estamos nos colocando nessa rota. Esta semana vimos dois avisos.

Um do diretor do Butantan dizendo que se a gripe aviária se adaptar aos humanos, teremos uma pandemia. E o vírus está recebendo todas as oportunidades para isso, já que existem várias aves infectadas no Brasil, em cativeiro e na natureza, que estão convivendo com seres humanos.

O outro aviso (que já vem sendo dito faz algum tempo) veio do CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA) e da ANVISA, sobre o fungo Candia Auris, que foi classificado como “uma grave ameaça à saúde global”, por se tratar de um fungo resistente aos medicamentos que existem, de difícil diagnóstico e de fácil e rápida disseminação.

São duas hipóteses bastante próximas que podem gerar um problema sanitário grave. Mas quem é que quer pensar nisso, depois de uma pandemia que ceifou a vida de quase um milhão de brasileiros? Quem é que tem disponibilidade emocional para focar nisso agora? Quem é que quer pesquisar o que pode fazer para estar um pouco mais seguro contra esses problemas? Quase ninguém.

As pessoas estão exaustas e estão deixando de olhar para coisas importantes por causa disso. E eu nem as culpo, é realmente impossível viver nesse bombardeio de ter sempre alguém gritando “fascista”, “racista”, “machista”, “nazista”, “o mundo vai acabar”, “vamos todos morrer” e não criar um mecanismo para não enlouquecer.

Quando não se consegue abordar um assunto desde o ponto de vista da consciência, as questões são sempre tratadas com medo, histeria, sensacionalismo – e isso desgasta, estressa adoece. O efeito colateral disso é conseguir mais visualizações, afinal, alarmismo atrai atenção, mas também é dessensibilizar as pessoas.

Agora o povo parece incapaz de lidar com certas questões que se apresentam, por saturação, por tratar tudo que as antecedeu na base do desgaste. E isso é ruim para todos os envolvidos, inclusive para as pessoas que estão saturadas e serão obrigadas a lidar com essas questões na marra, pois a realidade não se importa com o emocional de ninguém.

Então, o que estamos pedindo aqui não é que você fique tirando forças para continuar passando por todo esse processo desgastante e sim que encontrem novas formas de lidar com isso para que não seja desgastante.

Não é sobre o que acontece, é sobre como você lida com o que acontece. Saiam da anestesia, aprendam a olhar para tudo com consciência (não com histeria, com medo, com raiva ou com polarização), caso contrário o resultado será bem pior.

Para dizer que é um novo plano do Bill Gates, para dizer que quando ninguém aprende nada a situação se repete ou ainda para dizer que está exausto demais para ler este texto: sally@desfavor.com

SOMIR

E daí que Vinícius Jr. sofreu racismo? E daí que o Brasil está cagando para o meio ambiente? E daí que ninguém está se preparando para novas pandemias?

“E daí?” é o tipo da expressão que acaba muito mal utilizada no dia a dia. A maioria das pessoas entende como se fosse apenas descaso. Como se a mensagem fosse que não faz diferença se importar com o tema. Mas eu ainda acredito no valor original do “e daí”, porque a expressão deveria significar “o que acontece depois disso?”.

Porque o que realmente importa é o que se faz diante do problema. Vamos para o caso do Vinícius Jr.: os torcedores já berraram macaco para o jogador brasileiro, não tem nada que desfaça isso. Falar sobre o seu desgosto pela situação ainda é lidar com o fato passado, imutável.

Não à toa, resolvi abordar o tema pelo ângulo de um grupo que conseguiu criar uma defesa muito forte contra o racismo, a NBA. Porque isso me parece mais lógico: dado o fato óbvio que racismo é uma coisa errada, quais ações podem ser realizadas para diminuir as consequências negativas ou mesmo impedir que aconteça novamente no futuro?

O tema é essa forma de fadiga por excesso de informação que a população do século XXI vive, mas também é uma análise sobre como isso acontece. Ainda vou continuar no caso do jogador do Real Madrid porque com uma semana de separação do fato, pudemos ver por que as coisas não avançam do jeito que deveriam: foi um tsunami de informação baseada em repúdio ao racismo por vários dias.

A sociedade estabelece a ideia de que é contra pessoas serem maltratadas por causa da cor da pele. Lindo. Emocionante. Mas depois que todo mundo ganhou o seu biscoito, o ciclo de notícias continuou. Percebam a quantidade de energia e atenção disponibilizada pelas pessoas apenas para repetir algo extremamente óbvio. Ninguém está de parabéns por ser contra o racismo, é o começo do começo do processo de evolução.

No mundo das redes sociais e das hashtags de apoio, o orçamento é todo gasto na propaganda e sobra apenas uma mixaria para melhorar o produto. Pior, essa propaganda fica tão prevalente que as pessoas começam a reagir à forma ao invés do conteúdo. A energia, finita, que temos para lidar com situações do tipo é gasta antes de chegarmos no “e daí?”. É por isso que a expressão parece apenas descaso, quando chegamos na parte de transformar a percepção sobre um problema em ação, estamos cansados.

Exauridos por um mundo que exige posicionamento constante, que não deixa ninguém ter a presunção de boas intenções e capacidade de recuperação. Tudo se queima durante a fase do chilique de rede social, deixando apenas brasas para alimentar as atitudes que a sociedade precisa tomar.

Nesta mesma semana eu li uma notícia sobre como a entidade que ficou responsável por gerenciar as doações para o movimento Black Lives Matter nos EUA está no negativo porque as pessoas que tomaram conta dela torraram o dinheiro com inúmeras bobagens, especialmente em contratos superfaturados para parentes e amigos. Lembra daquela energia aparentemente infinita que levou milhões de pessoas às ruas? Esvaiu-se num esquema de corrupção genérico poucos anos depois. Isso só acontece porque as pessoas perdem o interesse em acompanhar.

É um problema humano perder a motivação rapidamente. Eu tenho, você tem, quase todo mundo tem. Por isso é importante saber dosar quanta energia se coloca em cada etapa do processo: se continuarmos nessa fogueira de vaidades virtual, vamos continuar chegando sem energia nenhuma na fase da solução.

Se você está seguro de que enxerga o problema, não precisa ficar desfilando virtude por aí. Não precisa ficar gastando seu limitado foco de atenção no problema que já aconteceu, relembrando porque acha aquilo errado sem parar. Eu sou o otimista aqui no Desfavor, e realmente acredito que a humanidade tem muito potencial para resolver problemas como os descritos nas notícias de hoje, mas é essencial que paremos de nos ocupar com 99% de chilique e polêmica vazia sobre a propaganda que se faz dos temas ao invés dos problemas práticos.

Não é esquerda ou direita, não é progressismo ou conservadorismo, são problemas muito práticos que exigem ações igualmente práticas. O ser humano parece viciado em propaganda a essa altura do campeonato, e como todo vício, esse é cheio de efeitos colaterais negativos: a fadiga dessa estúpida batalha cultural faz com que muita gente relativize os problemas de acordo com sua paciência para a discussão vazia de rede social.

Não é que o tema é inútil, são os ativistas profissionais que são inúteis. São as torrentes de clickbait e a ideia cretina que imagem é tudo no mundo moderno. Justiça social com fins lucrativos está cansando as pessoas de justiça social, ambientalismo com fins lucrativos está cansando as pessoas de ambientalismo, negacionismo científico com fins lucrativos está cansando as pessoas de… aprender. As versões “instagramáveis” desses temas estão gastando a nossa capacidade de lidar com eles.

Existe método sim na nossa aparente loucura de bater nos dois lados e queimar pontes: estamos enxergando um problema que fica cada vez maior e queremos contaminar mais pessoas com essa percepção desse ativismo motivado por interesses comerciais. Queremos sim mais pessoas dizendo “e daí?”. Mas não a versão da expressão que parece demonstrar desinteresse, e sim a que te faz lembrar que só discutir o problema e se dizer contra as coisas que são ruins não te coloca mais perto de uma solução.

E daí que você é contra coisas que qualquer pessoa com meio neurônio consegue perceber que são ruins?

E daí?

Para dizer que é contra as coisas ruins e a favor das coisas boas, para dizer que em casa de ferreiro o espeto é de pau, ou mesmo para dizer que realmente já ficou de saco cheio: somir@desfavor.com

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ambiente, mídia, pandemia, racismo, redes sociais

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