Comparações.

O Bahia informou, na noite desta terça-feira, 6, que irá prestar apoio jurídico a duas torcedoras que foram expostas em uma publicação feita por um homem que as comparava com torcedoras loiras do Grêmio. Na publicação, o homem, que se identifica apenas como “Chief” na rede social, escreveu: “Grêmio e Bahia se enfrentam nas quartas da Copa do Brasil. Vocês vão torcer para quem?”, sem dar maior contexto sobre qual a relação entre as mulheres e o jogo. LINK


Vem cá… qual é a ofensa ou exposição indevida? Desfavor da Semana.

SALLY

Um influenciador fez um post com a seguinte frase: “Grêmio e Bahia se enfrentam nas quartas da Copa do Brasil. Vocês vão torcer para quem?” e duas fotos, uma com torcedoras baianas, a outra com torcedoras gaúchas. Apenas isso. Nada mais. E foi um escândalo que durou a semana toda, com direito a ameaça, cancelamento e processo.

Eu adoraria entrar no mérito da discussão sobre ser racismo ou não, já que a postagem não continha nenhuma palavra depreciativa, a depreciação é interpretação de quem vê a imagem e acha um biotipo mais bonito do que outro. Adoraria discutir como temos o direito de achar qualquer característica feia sem que isso seja depreciação e muito menos racismo. Mas infelizmente não há nem espaço para isso, pois existe uma questão que antecede essa discussão.

Concorde você ou não que houve depreciação de alguma mulher por suas características físicas, precisamos estabelecer algo, por questão de equidade: se homem não pode desmerecer mulher por características físicas, se isso é tão condenável, deveria ser uma mão de via dupla e mulher, da mesma forma, deveriam não desmerecer homens por características físicas.

Não é o que acontece. Na vida real e em redes sociais vemos a maior parte das mulheres esculhambando certas características físicas de homens, muitas vezes de forma mesquinha e cruel. Isso tem nome: hipocrisia, quando você condena furiosamente algo que você também faz.

Homens baixos, homens carecas, homens barrigudos, homens peludos… eu poderia passar muitos parágrafos citando características físicas masculinas que geram ataques e humilhações públicas em redes sociais. E muitas delas estão sim relacionadas com raças, como por exemplo, dizer que “japonês tem pau pequeno”.

E nem precisa ser japonês. Quando, por algum comportamento que a desagrada, a mulher não presume e decreta que o homem “tem pau pequeno”. Imagina se, cada vez que uma mulher fala uma imbecilidade, vários homens justificassem essa imbecilidade dizendo que ela tem “uma buceta arrombada”.

Então, este texto sequer vai esbarrar no mérito, se o repúdio ao rapaz é justificado ou não. Aceito ambos os posicionamentos, desde que eles sejam acompanhados por coerência: quem acha que o comportamento dele é repudiável não pode jamais desmerecer um homem por qualquer atributo físico.

Aí começa o desgraçamento argumentativo, pessoas confusas tentando justificar sua hipocrisia: “mas homens fizeram isso com mulheres por décadas!”. Certo, e sua reposta é pagar na mesma moeda? Se uma pessoa negra quiser acorrentar e açoitar brancos, obrigando-os a trabalhar de graça, pelo seu raciocínio, é justo, pois os brancos fizeram isso com negros por décadas?

“Ah mas no caso dele foi racismo”. Não, não foi e eu não aguento mais, depois de 15 anos explicando, discutir com gente que parece nunca ter lido a lei que define o que é racismo. Já deveriam ter aprendido. O ponto é: estão surtando por terem colocado duas mulheres em uma comparação supostamente desfavorável a outras mulheres com atributos físicos supostamente mais bonitos. As mesmas pessoas que, dia sim, dia também, esculacham com orgulho corpos e aparência de homens.

Quando foi que desistiram de cobrar coerência entre o que se fala e o que se faz? Muito triste viver em um mundo no qual cada um pode falar o que quiser para receber aplausos, pertencimento e uma medalha de virtude, mas não precisa se portar de acordo com isso. Parabéns aos envolvidos, é muito fácil ser virtuoso em tese, virtuoso patrulhador de rede social, virtuoso não-praticante.

O mais curioso é a reação quando se cobra destas mulheres coerência. Vem a cartada do machismo, vem a cartada do incel e pior, vem a cartada da sexualidade (“faz um esforço para gostar de mulher”) que, por si só, é tão incorreta quanto o que criticam: é demérito ser homossexual? A única razão pela qual um homem pode criticar uma mulher é ser homossexual?

Todos nós temos direito a nossas preferências, a nos sentirmos atraídos por determinadas características físicas. Mas, parece que você só tem o direito de externar isso se for mulher, pois se for homem, no mínimo, será cancelado.

Se eu for até uma rede social e disser que “homem com menos de 1,70 eu não quero nem para amigo” nada vai me acontecer. Se um homem for a uma rede social e disser que “mulher com mais de 70kg eu não quero nem para amiga”, ele corre um sério risco de ser acusado de vários ismos e fobias (machismo, gordofobia, etc.). Que porra de igualdade é essa que as mulheres pregam e não executam?

Pior: que tipo de doença mental, que tipo de trauma de infância, que tipo de ego frágil faz doer na pessoa quando ela entra em contato com a informação de que uma ou mais características físicas suas não são atraentes para um desconhecido? Todo mundo é obrigado a achar a pessoa bonita, a se sentir atraído pela pessoa e, quem tem outras preferências, tem que se calar?

Ainda que você ache que a resposta é “sim”, você há de concordar comigo que, em sendo “sim”, deve valer para todos. Eu me dei ao trabalho de pesquisar as falas das pessoas que se sentiram ofendidas por esse influencer e, surpresa, todas em algum momento postaram comentários pejorativos sobre características físicas, algumas vezes até mesmo de mulheres.

Tá chato esse jogo de vitimização. Tá chato responsabilizar os outros pela própria autoestima. Tá chato ficar chamando mulher branca de sem graça, homem branco de palmito, mas cobrar que todos te elogiem. E nem isso, pois quando elogiam vem a problematização da “sexualização da mulher negra”. Vão cagar no mato!

Equiparar isso a racismo é que é ofensivo. Equiparar isso com quem impede que uma mãe matricule um filho na escola pela cor da sua pele ou com quem deixa de contratar uma pessoa pela cor da sua pele é um tremendo desfavor. É por isso que quando acontece um caso de racismo de verdade as pessoas não reagem com a intensidade que deveriam, quem deveria zelar por isso está, na verdade, banalizando o racismo.

Façam sempre uma checagem de coerência: algo que a pessoa falou te indignou? Ok, avalie e veja se você, no seu dia a dia, de uma forma ou de outra, não acaba fazendo o mesmo. Se você faz o mesmo, engole o choro. Depois, uma checagem de autoestima também é necessária: você permite que aquilo que desconhecidos te dizem te impacte, te abale, te irrite? Bem, terapia é a única solução, caso contrário sua saúde mental vai perecer.

Não tá legal essa brincadeira de mulher poder tudo e homem não poder nada – e olha que eu sou mulher, eu poderia surfar na onda e me beneficiar disso. Pode parecer divertido ter seus dez segundos de poder (cafonérrimo, por sinal), mas não tem nada mais desempoderado do que a pessoa que conquista algum poder e o usa para oprimir seu suposto opressor. Isso é rasteiro. Sejam melhores.

Para dizer que o problema é estrutural (vai tomar no seu cu), para dizer que é uma questão de desconstrução de machismo (vai tomar no seu cu) ou ainda para dizer que eu não entendi a questão em profundidade (vai tomar no seu cu também): sally@desfavor.com

SOMIR

É um absurdo que isso acabe judicializado. Pode-se argumentar que a ofensa da postagem está na interpretação. Que ela foi feita presumindo que outras pessoas tirassem uma conclusão e que por causa disso, tinha intenção ofensiva. Pode-se argumentar isso. Mas… pode-se provar isso?

Parece uma tecnicalidade, mas é uma pedra fundamental do conceito de justiça que estamos refinando desde que começamos a viver em sociedades mais populosas que um vilarejo no meio do nada. Quanto menos interpretação das leis e das motivações das pessoas, melhor. Precisamos de textos legais claros e evidências sólidas.

E por que tantas gerações de humanos foram concordando com essas bases para formar nossa compreensão de justiça no século XXI? Porque é o sistema que mais consegue proteger minorias. Quanto mais o Estado pode interpretar um acontecimento e presumir a intenção ou motivação de uma pessoa sendo julgada, mais perigo ela corre de ser injustiçada por preconceito.

O problema de minorias é que elas raramente estão bem representadas nas estruturas de poder. Se você procura a justiça pelas mãos do Estado, uma ou mais pessoas representando esse Estado vão lidar com você. E se não tiver nenhuma proteção legal contra os preconceitos e interesses delas, a minoria tem tudo para ser injustiçada.

É por isso que existem limites de quanto juízes podem interpretar os casos que julgam: tem que ser sempre de acordo com uma das leis vigentes e precisamos de evidências bem sólidas para fundamentar uma decisão. Isso quer dizer que o judiciário brasileiro funciona bem? Não, claro não. Mas quer dizer que como a imensa maioria dos judiciários do mundo livre, existe a mesma lógica da democracia: dividir um pouco o poder na sociedade.

O que me fez sair por essa tangente para analisar o caso é o fato de que muita gente quis ver a caveira do cidadão que postou a foto porque era “óbvio” que ele estava sendo até racista. Que bastava olhar para aquilo e saber o que a pessoa queria. É aí que eu vejo os progressistas/lacradores atirando no chão da canoa para matar uma mosca.

Ok, a mosca vai morrer, mas o barco vai afundar algum tempo depois. É assustador como esse povo que diz amar a democracia não entender patavinas sobre como ela funciona. Democracia é sobre pulverizar o poder, é sobre criar mecanismos para que ninguém tome o controle de forma irrevogável. Quando você argumenta que o Estado tem que ter mecanismos de controle mais fortes e especialmente quando você quer que o Estado comece a interpretar muito o que é certo ou errado, você está atacando a democracia na sua base.

O que é certo ou errado está na lei. Para ninguém poder mudar de ideia sobre bem e mal por interesse, ou quando estiver com raiva… leis são feitas de forma fria, neutra. Lei é aquele seu amigo insensível que diz que é triste que você tenha sido atropelado, mas que não deveria ter atravessado fora da faixa. A lei não tem simpatia ou antipatia por ninguém. E é JUSTAMENTE isso que nos fez avançar tanto na questão de direitos básicos.

Eu fico louco com a tendência de pessoas que se dizem contra injustiças quererem colocar poder de interpretação tão grande na mão de juízes. Como é que o lacrador esquece que o Bolsonaro era presidente nessa altura do ano passado? Eu nem tenho forças neste texto para dizer como o Lula não é o oposto dele, só quero estabelecer como é insano dar poder excessivo para um Estado que pode mudar totalmente de posicionamento ideológico de quatro em quatro anos!

E eu não estou tendo um ataque de libertarianismo, longe disso. Eu estou defendendo o Estado como poder moderador, mas desde que ele não possa punir pessoas sem provas, apenas intuindo uma motivação. O lacrador pode até bater palma quando acontecer com alguém que ele acha que merece sofrer, mas pessoas inteligentes perceberam essa imbecilidade imensa milhares de anos atrás e nos protegeram disso.

Uma hora ou outra você vai lidar com um agente do Estado que tem visões políticas, éticas ou morais diferentes das suas, e ele tem a porra do monopólio da força ao lado dele. Você quer mesmo que uma entidade com o poder legal de te espancar e prender interprete da cabeça dela o que é certo ou errado? Então não peça para que o Estado puna quem você acha que está fazendo algo errado, mas não tem como provar. Porque uma hora ou outra isso vai se virar contra você.

E como dito no começo do texto, isso vai se virar contra minorias com muito mais força ainda. Direito de todo mundo não gostar das coisas, mas não gostar é diferente de ser crime. E crime precisa estar definido numa lei e ter provas suficientes para ser punido. Vai ter gente que você não gosta escapando pelas brechas do sistema? Vai. Mas esse é o preço que se paga para proteger um senso de justiça básico para as minorias.

Não dá para ter as duas coisas ao mesmo tempo. Não dá para juiz interpretar piada como se fosse coisa séria e não abrir a porta para juízes preconceituosos interpretarem como crimes os atos de quem eles não gostam. Pode ser irritante às vezes, mas é o preço. É essa mania de achar que o mundo começou ontem e que você é a primeira pessoa a pensar sobre um tema. Justiça social não começou na semana que você começou a postar lacração na internet, tem gente lutando por isso há milênios. Eles já quebraram a cabeça e viram todo tipo de absurdo acontecendo, adaptando a lógica do sistema judiciário de acordo.

Presunção de inocência e necessidade de apresentar provas são mecanismos essenciais para o mundo não repetir os erros que já sabemos que cometemos no passado. Eu não me incomodo com a lacração moderna porque eles são chatos (eles são, mas isso é o de menos), eu me incomodo com essa vontade suicida de trazer autoritarismo e descontrole emocional de volta para nosso sistema político e legal. Para isso já temos a direita evangélica.

Parem de fazer buracos na nossa canoa, seus malucos!

Para dizer que não entendeu a conexão, para dizer que eu sou igual ao Hitler, ou mesmo para dizer que juízes deveriam pensar igual você: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Se não tivesse chegado até a notícia pelo texto do Desfavor, ainda estaria tentando entender qual era o problema. Só vi fotos de torcedoras e nada demais entre elas.
    O pessoal da lacração vive de projetar os próprios sentimentos de inferioridade nos outros e forçar a barra pra sair como vítima desde sempre, mas as interpretações estão tão forçadas e absurdas que fico surpresa quando alguém de fora dessa bolhinha consegue entendê-las sem fazer uma grande ginástica mental.

  • Esse povo tem uma tara por racismo que tudo força a barra. Outro dia uma colega minha (sempre mulher né) tentou me dar lição de moral só porque falei mulambada se referindo aos flamenguistas, que seria termo racista. Flamengo é mulambo desde sempre, desde a época dos anos 80,90 que não-existia a geração mimimi.

    • Você não sabe que tudo isso é por bi$coito?
      Larga de ser tolo.
      Nesses dias vi uma aberração ainda pior, com militante psolista com cartaz dizendo que “São Paulo é terra indígena”… Vai que o juizeco com “consciência social” concede vantagens a eles no sentido da propriedade de áreas valiosas Brasil agora, né?
      Essa turma quer viver na base da lei do Gerson.

  • Não é a primeira vez que o Chief faz isso. Já fez antes comparando mulheres em uma praia de dois estados diferentes, deu em considerável choro.

    Inclusive, ele foi banido de um monte de plataformas em 2020 devido meme de um amigo próximo envolvendo o BLM.

    Sinceramente, nem sei porque levam ele a sério. O cara é um shitposter, ou seja, vive de falar e postar merda para deixar todo mundo puto de propósito, quando não tá falando de guerra de console de vídeo game. Basta apenas bloquear e seguir a vida, deixando a criatura morrer no esquecimento. Mas não… Continuam falando dele, espalhando a fama dele por aí.

    No que essa postagem mesmo é mais grave do que já fizeram com ele antes (e ainda fazem), como ameaçar ele de morte e espalhar os dados pessoais dele e da família dele?

    • Eu não vejo qualquer problema com essa postagem, de verdade. O problema é a interpretação que estão dando, o problema está dentro da cabeça do brasileiro.

  • Duas frases pra resumir toda essa questão: “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” e “quem nunca comeu melado, qundo come, se lambuza”.

  • Essa é a boa e velha problematização com a questão racial, que diga-se de passagem, rende muito nas redes sociais e quanto mais polarizada a situação, mais vantagem em termos de barganha por parte de quem se vê em desvantagem na comparação.
    As duas fotos mostrando uma mãe entre 40 e 50 anos e uma moçoila na faixa dos 20 e o povinho querendo causar em cima disso. Dai-me paciência.

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