Abuso aceito.

Relacionamentos disfuncionais são extremamente comuns, e o mais bizarro é que muitos deles perduram por anos ou décadas. Inclusive com uma espécie de liberação social para a disfuncionalidade. Sally e Somir acham isso inaceitável, mas escolhem pontos diferentes para criticar. Os impopulares se separam.

Tema de hoje: Qual é a pior modalidade de relacionamento abusivo socialmente aceita?

SOMIR

Relacionamento com evasão constante de privacidade. Sim, eu sei que existem formas de abuso mais dolorosas, mas a grande maioria delas é vista como algo errado, de uma forma ou de outra. Se você explicar direitinho o ponto que a Sally vai defender, acredito que a maioria das pessoas vai acabar entendendo.

Mas mesmo explicando o ponto que eu escolhi, muita gente vai achar estranho. Como se fosse uma paranoia minha sem suporte da realidade. E vou além: para muita gente essa constante evasão de privacidade e convite de terceiros para opinar num relacionamento é até visto como algo positivo!

É aquele problema básico sobre privacidade: tem muita gente que acha que não existe meio termo entre se escancarar todo para o mundo e ter algo a esconder. Ou você está disposto a dividir sua vida em detalhes com todo mundo, ou tem segredos horríveis que teme serem revelados. Quando na verdade, existem motivos racionais para se poupar da atenção pública para o bem de uma relação. E em vários casos, até atenção de pessoas mais próximas.

Só entende a dinâmica da relação quem está dentro dela. Não quer dizer que uma mulher sendo abusada não deva denunciar, é óbvio que deve, mas quer dizer que existem nuances dentro do relacionamento que não fazem sentido para quem está olhando de fora. E até nesse ângulo de abuso físico ou emocional, expor a pessoa sem se afastar dela não faz sentido também. Só pessoas que estão presas, direta ou indiretamente, com outra podem se beneficiar de tornar a questão pública. E mesmo assim, com o expresso objetivo de ser resgatada daquela situação.

Para quem não pretende se afastar da fonte, exposição de intimidade é uma forma de abuso da ideia de formar um casal: formar um laço. Não existe laço entre você, uma pessoa e uma plateia ao mesmo tempo. Relações são enfraquecidas quando se inserem mais e mais pessoas dentro dela. Pessoas muito famosas vivem sofrendo com seus relacionamentos, com traições e brigas que vazam para o domínio público. Evidente que isso acontece: nada mais complexo que uma decisão por comitê.

Quando eu digo que existem nuances e particularidades na relação entre duas pessoas, eu também quero dizer que a resolução de conflitos é diferente se as duas partes estão envolvidas de verdade. Tem gente com mais tolerância à descaso, tem gente que tem níveis diferentes de ciúme, tem gente até com mais casca para agressividade e grosseria em geral. O que um casal pode lidar na sua intimidade não é equivalente ao que pessoas de fora podem. E se você provoca o terceiro a opinar, vai ter que lidar com mais e mais variáveis, a maioria delas irrelevante para a vida do casal.

Eu tenho horror a gente que evade intimidade porque eu me coloco no lugar da pessoa que está sendo exposta sem consentimento. Eu não dou trela nem para amigos nesse sentido, porque acho incorreto vazar intimidade de mulheres que não me deram autorização para saber sobre o que fazem ou não fazem no ambiente privado. Eu considero traição séria expor algo que eu confidenciei para apenas uma pessoa.

E intimidade de casal tem essa presunção de confidência exclusiva. As pessoas começaram a entender o erro de vazar nudes recebidos, mas a coisa para mais ou menos aí: se você sair contando a intimidade do casal que faz parte para todo mundo na rede social, não só é visto como normal, como se for uma mulher ainda sendo indiscreta com um homem que não consentiu em ser exposto, é visto como empoderador e corajoso.

Tudo o que uma pessoa faz exclusivamente na sua presença e presumindo intimidade tem que ser considerado informação privilegiada. Muita gente parece entender que postar foto da mulher ou do marido pelado em casa na internet é errado, mas se fizer 30 postagens expondo o que acontece na relação com todo mundo vestido, é normal. Não é. É escroto e abusivo.

Ninguém é obrigado a ter uma relação pública e ter que lidar com a doentia atenção de terceiros sobre sua vida particular. Pessoas exageram nessa curiosidade sobre a vida do outro, e com cada vez mais gente apelando para a tática Caras de relevância na vida, isso é, evadir privacidade sem nenhuma função prática além de chamar atenção, mais e mais parceiros dessas pessoas são jogados diante de uma plateia sem nunca terem concordado com isso.

Se você quem ser um “livro aberto” e se exibir constantemente, o mínimo que deveria fazer é dar essa condição para a pessoa com a qual vai se relacionar. Se for outro maluco de pedra que quer todo mundo opinando sobre sua privacidade, beleza, o casal está compartilhando um interesse. Mas se não for uma pessoa que te disse expressamente que quer ser exposta, é abusivo. As pessoas têm o direito de controlar quanta atenção vão receber, e não é aceitável forçar o outro a ficar vulnerável dessa forma.

E para ser honesto, quem busca atenção se exibindo na internet ou mesmo no grupo social real ao seu redor vai acabar traindo sua confiança uma hora ou outra. Vai te expor quando quiser biscoito, e você não vai ter opinião no tema. Se pelo menos as pessoas fossem mais críticas com gente sem noção e celebridades em geral por ficarem se expondo o tempo todo, talvez fosse possível controlar o comportamento. Mas não, muito pelo contrário: a indústria do entretenimento quer saber exatamente quantas gramas pesou o último cocô da cantora da moda, e sabe que milhares de pessoas vão se interessar por isso.

Evasão de privacidade é visto como algo positivo, num esquema meio opressivo de “quem não deve não teme”, como se todos nós concordássemos em viver diante do escrutínio alheio (muito dele feito por gente absolutamente estúpida e limitada) e fosse só questão de tempo para aparecermos no palco.

E quem não quer ser palhaço no circo da rede social ou na roda de fofocas mais próxima? E quem quer formar uma relação de cumplicidade e confiança inabalável? É um abuso ter que viver com quem acha que é normal contar segredos do casal ou ficar expondo intimidade o tempo todo. Tem gente que quer ter relação com o mundo todo e só usa o outro como decoração no cenário que criou. Novamente: se achar que alguém que também quer isso, seja feliz. Mas presumir que todo mundo quer isso e ainda tratar como normalidade, como “não ter o que esconder”, é um abuso que incrivelmente é tratado como comportamento normal.

Não é. Você deveria querer proteger a pessoa que gosta, não expor ela aos chacais para ganhar curtidas na internet e papo-furado de conhecidos. Está sofrendo um abuso, denuncie e pule fora. Se não está, é só desligar a merda do celular e conversar com o outro para resolver.

Para dizer que criticar evasão de privacidade é misoginia, para dizer que é um livro aberto (por isso está manchado), ou mesmo para dizer que quem não tem segredo não é interessante: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é a pior modalidade de relacionamento abusivo socialmente aceita?

Percebam o detalhe: tem que ser uma forma de relacionamento abusivo e tem que ser socialmente aceito. Na minha opinião o pior é cagar e andar para o outro, não ser parceiro, não ser companheiro, com alguma justificativa socialmente aceitável.

Um relacionamento é muito mais do que dois corpos se esfregando. Um relacionamento é uma construção de confiança, parceira, companheirismo, respeito, objetivos em comum e interesse pelo outro. Nunca aceite menos do que isso, pois a partir do momento em que você negocia e aceita menos, o recado que você passa para a pessoa é: “eu me contento com pouco, pode me dar migalhas”.

Para mim não tem pior abuso socialmente aceito do que o estelionato no relacionamento: se promete uma coisa, se combina uma coisa, e depois se dá menos. Ou se começa dando tudo e gradualmente se reduz a entrega. Combinar e não cumprir é, na minha concepção, uma das maiores vergonhas socialmente aceitas do Brasil.

Quando se faz isso, se retira um fator essencial da equação: a confiança. E sem confiança não existe nenhuma possibilidade de um relacionamento crescer saudável. Quando se faz isso a pessoa se coloca em um patamar de importância acima do outro: ela não precisa cumprir o combinado, ela, o floquinho de neve especial, está acima das regras.

O mais curioso é que geralmente essas pessoas são as primeiras a desacreditar quem reclama delas: o outro é colocado em um papel de chato, reclamão, carente. A pessoa vai retirando seu investimento do relacionamento aos poucos e constrangendo o outro se ele reclamar disso. É baixo, é muito baixo. Mas, infelizmente, também é muito comum.

Cada casal constrói o seu modelo do que é companheirismo, parceria e entrega. Longe de mim querer impor um padrão. Mas, uma vez estabelecido um acordo, a coisa certa a fazer é manter o combinado. Se não quer mais, a porta está sempre aberta para ir embora.

E não tem desculpas. Tempo é questão de prioridade. Quando a pessoa quer, arruma tempo e vontade para tudo. Se não arruma para você, é por você não ser prioridade. Não tape o sol com a peneira, todo estelionatário emocional sempre tem ótimos motivos para se comportar como um escroto e um discurso na ponta da língua para justificar isso, te fazendo parecer um egoísta incompreensivo se não aceitar.

A desculpa clássica usada igualmente por homens e mulheres é: “eu trabalho”. Por sinal, “eu trabalho” é o grande coringa da canalhice, a grande muleta do acomodado, o grande trunfo do incompetente. Deixar de fazer algo que é um dever mínimo para não ser uma pessoa bosta porque “eu trabalho” é um dos piores atestados de incompetência que eu já vi.

Quase todo mundo trabalha, e muitas pessoas em condições bem mais desfavoráveis do que nós, e nem por isso se eximem de suas responsabilidades, sejam elas emocionais, de saúde ou de qualquer outra natureza. Não se dedicar ao relacionamento, não cuidar da saúde, não cuidar da mente, não fazer o que é minimamente necessário com a desculpa do “mas eu trabalho” é se autodeclarar um imbecil.

Se a pessoa não consegue dar conta do trabalho e de um relacionamento, que não se relacione com ninguém. Se a pessoa não consegue dar conta do trabalho e de um relacionamento com essa pessoa específica com a qual está por considerá-la muito demandante, então que não se relacione com ela. Mas em termos gerais, a pessoa não quer largar o osso, quer os benefícios de ter um parceiro sem precisar dar o que aquele parceiro pede.

As desculpas são infinitas: cansaço, falta de tempo, falta de dinheiro e muitas outras. Nada disso justifica negligenciar os termos de um relacionamento. Se a pessoa for mesmo prioridade, o outro dará um jeito. E quem falha nisso, deve pedir desculpas e não encurralar e se colocar em condição de vítima.

Não gosta de ser cobrado? Faça sua parte direito, olha que simples! E se não consegue fazer, conversa sobre isso e estabelece novos termos, se o outro concordar. Não tem acordo? Pega seu banquinho e saia de fininho. O que não pode é ficar manipulando o outro e a opinião pública para avalizar o seu estelionato emocional.

Mas, no Brasil parece existir um acordo tácito muito do perverso, no qual todos se comportam segundo a premissa de que cobrar é ofensivo, é coisa de gente chata, é coisa de gente neurótica. Só posso presumir que seja um interesse coletivo em nunca serem cobrados, afinal, salvo honrosas exceções, a maioria entrega muito pouco em todos os campos da vida. Convém a medíocres que se regem pela lei do menor esforço vilanizar cobranças.

Prometeu? Cumpra. Não pode cumprir pontualmente? Avise. Não pode cumprir mais? Renegocie. Não foi aceito? Retire-se. E sem falar mal do outro, afinal, quem deixou a desejar foi você.

Passou da hora das pessoas terem vergonha de prometer e não entregar. Não existe motivos para que isso seja condenável apenas quando ocorre com bens materiais (é inclusive crime), pois o emocional é muito mais valioso que um bem material.

Para dizer que entregar e não cumprir é um clássico brasileiro, para dizer que eu estou mexendo com as instituições ou ainda para dizer que o pior é casais se tratando com falta de respeito: sally@desfavor.com

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Comments (2)

  • Badalhocas Perdidas

    Fico com o Somir nessa. Também detesto evasão de privacidade, ainda mais a da minha feita sem o meu consentimento, e creio que há certas coisas em um relacionamento que dizem respeito apenas às duas pessoas diretamente envolvidas e a ninguém mais.

  • Dessa vez, vou discordar tanto da Sally quanto do Somir.
    O pior relacionamento abusivo socialmente aceito é aquele onde a pessoa que é seu parceiro ou parceira fica patrulhando a sua vida profissional, o que você fala nas redes sociais e até mesmo os apps de bate-papo no seu celular.
    Esse é um traço bem típico de uma pessoa que trata o outro como propriedade e inclusive é um sinal sério de que o relacionamento pode descambar até mesmo para um eventual homicídio, sendo a pessoa alvo do patrulhamento a provável vítima nisso.
    Sim, eu sei que tem a militância que critica relacionamentos nessa linha e inclusive vive de expor a questão dos “relacionamentos abusivos”, mas no geral se trata de uma militância egoica com interesses secundários que ficam óbvios a medida que você conhece a linha política da turma que fica sinalizando virtude com a militância pretensamente contra o relacionamento abusivo.
    Na real, pela frente é a tentativa de induzir a amiga calcinha a deixar um relacionamento que a mesma vê como insatisfatório, mas por trás, o objetivo é formar gado pra efeitos de barganha no campo político.

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