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Segurança em fuga.

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| Desfavor | | 12 comentários em Segurança em fuga.

Conhecido como “Maníaco do Parque das Nações Indígenas”, José Carlos de Santana é acusado de voltar a cometer estupros dois anos depois de conseguir liberdade em progressão de pena, segundo a polícia. Ele foi preso no município de Terenos (28 km de Campo Grande) durante operação Incubus deflagrada pela Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM) de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. LINK


O Brasil tem prioridades bem confusas quando falamos de proteger os mais vulneráveis. Desfavor da Semana.

SALLY

Provavelmente alguns leitores estão se perguntando por qual motivo o tema do Desfavor da Semana não é o assassinato dos médicos no Rio de Janeiro. Realmente é aberrante que pessoas sejam fuziladas no meio da rua sem qualquer problema, em um local tido como seguro, de grande circulação e aberto. Bem-vindos ao Rio de Janeiro, lá as coisas são assim.

Eu não sei o que vazou ou vai vazar para a mídia, eu simplesmente vou te contar o que aconteceu em dois parágrafos, para que você entenda o motivo pelo qual não escolhemos esse tema:

A região na qual ocorreu o assassinato é dominada por uma milícia ligada ao Comando Vermelho, que estava faz tempo querendo matar o chefe de uma milícia rival. Um dos médicos mortos era fisicamente bastante parecido com esse chefe da milícia rival. No que eles sentaram no quiosque, um garçom o confundiu, ligou para a milícia que domina a área e informou que o chefe da milícia rival estava lá, razão pela qual enviaram quatro pessoas para passar atirando e matar todo mundo. Os idiotas que passaram atirando nem ao menos conseguiram cumprir sua missão, pois uma das armas engasgou, deixando sobreviventes.

Ao perceberem, pelas notícias, que haviam matado as pessoas erradas, os chefes do Comando Vermelho convocaram uma reunião urgente, que foi realizada por videoconferência diretamente do presídio de Bangu (eles estão presos) dando ordens de como proceder perante o equívoco: deveriam matar os quatro que executaram os médicos e assim foi feito. Não apenas mataram os quatro, como colocaram seus corpos em um lugar estratégico e avisaram à polícia que os assassinos dos médicos estavam mortos e os corpos estavam em tal lugar. O que a mídia vai dizer não sei, essa é a verdade.

A notícia escolhida acabou sendo ofuscada por esta dos médicos e, justamente por isso resolvemos falar dela: é importante e quase ninguém está discutindo o assunto em profundidade. Sentimos que fazemos mais pelo leitor se falarmos sobre isso.

Um sujeito conhecido como “Maníaco do Parque das Nações Indígenas” (não vou postar o nome pois acredito no direito ao esquecimento, mas está na matéria) foi preso, em 2007, após estuprar de forma comprovada ao menos dez mulheres. Foi condenado a 34 anos de prisão, porém, foi colocado em liberdade em 2021.

Apesar de ser procurado também pela Interpol, pois, além dos dez estupros cometidos no Brasil, ele ainda cometeu outros no exterior, ele foi solto após cumprir 14 anos de pena, graças a todos os “benefícios” que o sistema penal brasileiro concede ao condenado, partindo da premissa de que, no Brasil, a prisão ressocializa.

O resultado, vocês já podem imaginar: desde 2021 até agora, ele estuprou várias mulheres. E isso, meus queridos, não é um caso isolado, essa é a regra no Brasil. Estuprador é colocado na rua e volta a estuprar. Por qual motivo não tem ninguém discutindo isso com seriedade?

Os debates sobre o assunto são meras repetições dignas de papagaios adestrados. Tem os papagaios do “tem que matar, tem que castrar, bandido bom é bandido morto” e tem os papagaios do “vítima da sociedade, prisão não resolve nada, direitos humanos”. Cada um tem seus prós e contras e não é sobre eles que queremos falar. Queremos falar sobre a militância dos direitos das mulheres.

O Brasil é um caso perdido, um poço sem fundo de injustiça, criminalidade e canalhice. Então, eu entendo se o cidadão médio não tiver tempo, energia e saúde mental para se posicionar ou fazer algo cada vez que se deparar com uma dessas coisas. As pessoas têm uma vida, não é justo nem saudável pedir que abracem todas as causas.

Porém, se alguém voluntariamente escolheu abraçar a causa da violência contra a mulher, é, no mínimo esperado, que a pessoa faça alguma coisa diante de um caso grotesco como esse, certo? Funcionários do Estado, que são pagos com o dinheiro do povo para fazer o que for melhor para o povo, estão colocando estuprador na rua e gerando novas vítimas.

Novamente: ninguém é obrigado a nada, mas, a partir do momento que você veste a camisa da militância e um evento bizarro envolvendo a sua causa aparece, a gente espera, por ética, coerência e vergonha na cara, algum tipo de atitude. Vocês viram alguma coisa? Eu não vi.

O que eu faria se fosse militante desta causa e se morasse no Brasil (bate na madeira três vezes): buscaria saber o nome do juiz que soltou esse sujeito, o nome dos profissionais de psicologia/psiquiatria que deram parecer favorável para ele sair e o nome dos demais envolvidos e promoveria uma bela manifestação em redes sociais. Não precisa faltar com o respeito, basta pressionar, mostrar que esse tipo de escolha vai ter consequências.

“Mas Sally, se o preso apresenta os requisitos, é obrigação soltar”. Não seja essa pessoa. Trabalhei muitos anos no sistema penitenciário, sério mesmo, não passe essa vergonha. Um juiz tem zilhões de ferramentas para não soltar um preso se quiser. Existem infinitas formas de não soltar, tanto é que, quando é um caso que causou grande clamor público, mesmo que o preso tenha direito, eles não soltam. Um sujeito desse não poderia ter ido para a rua.

Se a militância for em peso nas redes sociais de quem soltou, se a militância fizer tudo que faz contra humorista (cancelar, pressionar, divulgar telefone, endereço, nome dos filhos, escola onde eles estudam, etc.), se a militância atormentar os responsáveis por essa decisão, em pouco tempo as pessoas pensarão duas vezes antes de colocar estuprador na rua novamente.

Mas a militância parece mais preocupada em fazer escândalo por piada, por mansplaining, por erro de pronome e por homem sentando de perna aberta no ônibus. Curioso isso. Militância gourmet cujo objetivo é desfilar virtude e não tornar o país um lugar melhor e mais seguro para as mulheres. Eu vi mais gritaria quando o Leo Lins contou uma piada considerada machista do que nesse caso.

Tem também a discussão mais profunda do caso, que em algum momento terá que ser pensada: pessoa alguma pode ser ressocializada no atual estado do sistema penitenciário brasileiro. Até quando vocês vão se comportar como se isso fosse possível, colocando bandido psicopata de volta às ruas?

E, mais importante do que isso, o que fazer com essas pessoas? Um preso custa mais de três mil reais por mês aos cofres públicos, portanto, pensem bem antes de pedir prisão perpétua, que nem ao menos é permitida no Brasil.

Em algum momento tudo isso terá que ser olhado e terá que ser realizada uma reforma completa no sistema penitenciário que, para ser eficaz, vai demandar uma nova Constituição, pois a atual não permite retroceder um milímetro nos direitos dos presos. Quantas pessoas mais terão que ser barbarizadas por bandidos até vocês comecem a pressionar por isso?

Longe de mim dizer o que tem que ser feito para tornar o sistema penitenciário brasileiro coerente e eficiente. Façam o que acharem melhor. Só estou dizendo que como está, não está dando certo. Façam alguma coisa. Ao menos comecem a discutir o assunto, em vez de fingir que um ambiente insalubre de tortura e violência ressocializa alguém.

O assassinato dos médicos é triste, mas é um problema que você resolve não indo ao Rio de Janeiro. O tema de hoje é muito mais abrangente e pode afetar a qualquer um de vocês em qualquer parte do país.

Eu sinceramente não entendo como o povo continua de braços cruzados. Na hora de se mobilizar para votar em vilão de reality todo mundo faz, na hora de ir xingar e escrotizar humorista pressionando para ele perca emprego todo mundo faz. Na hora de cancelar subcelebridade todo mundo faz.

Por qual motivo não usam esse poder para pressionar que não se joguem mais estupradores na rua? Se eu tivesse uma filha, uma irmã ou uma mãe transitando pelas ruas do Brasil, tentar tornar o lugar um pouco mais seguro para elas seria minha prioridade.

Para dizer que nem tinha visto essa notícia (repercutiu absurdamente pouco), para dizer que só milita em causas nas quais vai receber aplausos ou ainda para dizer que não vale o esforço pois ser contra estupro não te torna especial: sally@desfavor.com

SOMIR

A morte de médicos com certeza chamou atenção da mídia, afinal, podia ser um deles tomando cerveja num bar carioca. A gente se horroriza também com a facilidade com a qual uma pessoa pode ser executada no Brasil, mas se é para puxar um tema maior, o caso do estuprador solto que voltou a cometer crimes é mais emblemático sobre o que está dando errado na segurança pública do país.

E por consequência, na visão das pessoas sobre a situação. Desde tempos imemoriais, o ser humano sabe que guerras não se vencem apenas com soldados e recursos, mas com o psicológico também. Se você faz o povo do outro lado ficar desmoralizado, a resistência diminui, eles começam a brigar entre si, vários problemas que impedem o exército tradicional de continuar lutando de forma eficiente.

Na guerra contra o crime organizado, o povo brasileiro está desmoralizado. O Maníaco do Parque cover em questão não cometeu seus crimes por causa de PCC, CV, Milícias ou similares, mas se beneficiou do sistema que eles criaram. Ele é mais um infiltrado do caos no pouco de ordem que ainda temos. Mais uma pessoa que foi para uma cadeia abarrotada de gente, num sistema judiciário incapaz de lidar com o trabalho, e que eventualmente acabou escorregando pelos dedos da Justiça, de volta aos crimes que cometera.

O Brasil tem a terceira maior população encarcerada do mundo, batemos a fuckin’ Índia, o país mais populoso do mundo, em número de presos. Só EUA e China estão na frente. E essa superlotação tem consequências terríveis no país. Não só milhares e milhares ficam presos sem nenhum processo jurídico funcional, como o volume incessante de entradas e saídas baixa a guarda da sociedade sobre o que acontece nas prisões.

O Estado Paralelo das cadeias tem outros presidentes, governadores, deputados, juízes… ele infecta o pouco que ainda funciona do sistema, e num misto de necessidade causada pela lotação e sabotagens causadas por gente comprada pelas facções, torna muito difícil sabermos quem está sendo preso e quem está sendo solto. Eu presumo que são décadas de trabalho competente e muito investimento para começarmos a tomar de volta as cadeias para o Estado. O que sabemos que não anima nenhuma das religiões políticas instauradas no país.

A direita quer mais violência e tortura dos presos (porque devem achar que o tanto que temos agora funciona…), a esquerda não quer nem pensar nas ações mais duras que precisam ser tomadas. Ficamos girando em falso. E pior, com a maioria da população achando, nos seus 10 segundos de pensar sobre o tema a cada 4 anos, que é só fazer uma ação mágica para tudo se resolver.

O crime desmoralizou o brasileiro até chegar nesse estado de inépcia. A ideia do bandido bom é bandido morto está sendo utilizada há milênios na humanidade e simplesmente não resolve. A ideia de que precisamos combater a desigualdade primeiro empurra a solução para um futuro utópico enquanto sofremos no presente.

E aqui, eu começo mais uma crítica apontada à esquerda, e entendam como um elogio: não dá para discutir com a direita, acho que ela nunca vai melhorar nesse sentido. A direita decidiu que qualquer variação de atirar em bandido é defender bandido, então saíram fora do alcance de qualquer conversa. Se dezenas de milhares de anos de vida humana em sociedade não provaram que violência por violência não resolve segurança pública, não vai ser um texto do Desfavor que vai convencê-los, né?

Então, me resta olhar para o lado que ainda pode pensar melhor. A parte que se diz mais humanista no espectro político é mais uma vítima da desmoralização: é tanto absurdo como o caso selecionado no texto de hoje, que talvez até inconscientemente a esquerda olhe para causas mais “realistas”. Explico: é de doer na alma que o crime organizado tenha tomado boa parte do país e que violência horrível e primal corra solta por aí. É gente que não vai ser convencida por danças performáticas em saraus, é gente fora do alcance do mundo mágico da lacração. Só a direita olha para essa gente, e não é à toa que seja o único lado que realmente fala com o povão sobre o tema.

O ativismo pelos direitos das mulheres se recolhe à insignificância de pernas muito abertas no metrô, ar-condicionado muito gelado no trabalho e pronomes neutros. Acabam colocando sua energia em tarefas aparentemente mais seguras. Esquerdista que discute com CEO de grande corporação para contratar mais mulheres negras está muito mais seguro do que esquerdista que discute com chefe de morro para não abusar de mulheres da comunidade. Um vai voltar pra casa e ser aplaudido na rede social, o outro vai ser morto numa emboscada.

Longe de mim obrigar todo mundo a ir peitar psicopata, é compreensível escolher causas mais seguras, mas como eu falo desde o começo do texto, isso é sinal de desmoralização se a esquerda nunca tem um plano para combater as máfias que controlam uma boa parte do país. O medo vence, e sobra para quem defende direitos humanos pegar no pé de quem diz algo machista no reality show enquanto o sistema é infestado por bandidos.

E aí, na hora que o cidadão médio fica com medo da bandidagem, só tem um ou dois candidatos falando explicitamente sobre o tema. Um plano furado de sair matando gente escura na favela é um plano, pelo menos. Essa mentalidade medieval de sistema carcerário punitivo é horrível, mas é a única coisa que o cidadão médio conhece.

E se a competição é gente fechando os olhos para um problema fundamental do país, temos o que temos. O crime organizado vence ao travar a direita numa guerra inútil e ao fazer a esquerda fingir que não está acontecendo nada. Usaram mais do que soldados, usaram o psicológico. E funcionou.

Atira primeiro e pergunta depois ou finge que bandido não existe. Qual opção você escolhe para continuar perdendo a guerra?

Para dizer que a solução é fazer a mesma coisa que deu errado antes, para dizer que a solução é não fazer nada e esperar que funcione, ou mesmo para dizer que a solução é mudar médicos brancos para as favelas: somir@desfavor.com


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