Nossa Gaza.

Na segunda-feira, milicianos da Zona Oeste atacaram a cidade em represália à morte do sobrinho do chefe do grupo, Zinho. Cada ônibus comum queimado custará cerca de R$ 850 mil para repor. BRT novo custa cerca de R$ 2,4 milhões cada. LINK


O brasileiro percebe que o que acontece em Gaza não é normal, mas não quando acontece no Brasil. Desfavor da Semana.

SALLY

Nunca vou esquecer de uma conversa informal que tive com desconhecidos no país onde moro. Quando disse que morava no Brasil, as pessoas começaram a citar as poucas referências que tinham do local, uma delas, o filme “Tropa de Elite”. Cantarolaram a música tema do filme (Rap das Armas) e me perguntaram se a parte do “Papara-papara-papara-claque-bum” era uma alusão à “bateria das escolas de samba” (ignorância é uma bênção).

Quando eu expliquei o real significado do “Papara-papara-papara-claque-bum” (o barulho de um tiro de fuzil) a cara das pessoas se transtornou. Quando eu especifiquei o tipo de fuzil então, a cara piorou. As pessoas me perguntavam como eu sabia disso, então, eu expliquei que qualquer morador do Rio de Janeiro com um mínimo de vivência de rua sabe reconhecer o barulho de tiro de diferentes armamentos.

A conversa virou um interrogatório com cara de terror e eu pude ver o horror e a pena no rosto dos interlocutores, uma expressão de “que merda de lugar que você morava”. Algo que, para mim, sempre foi rotineiro, é de extremo choque e terror para pessoas fora desse contexto.

E eu sei que neste ponto tem muita gente pensando “também, né? Rio de Janeiro é foda”. É um lugar complicado, mas não se engane, morar no Brasil é complicado. Pode ser mais complicado ou menos complicado, mas normal não é.

O brasileiro é como o sapo na panela de água quente: a coisa vai esquentando, quem está dentro vai se acostumando, se acostumando, até que morre. Quem nasceu no Brasil, quem não tem a vivência de não morar no Brasil, não tem a menor ideia do quanto o “estilo de vida Brasil” impacta na sua realidade. Eu mesma não tinha. Mesmo extremamente insatisfeita, foi apenas quando saí e me adaptei a outro lugar que pude perceber os danos físicos e psicológicos que o país impõe a seus residentes.

Você pode cogitar em tese como sua vida melhoraria se morasse em um lugar um pouquinho mais civilizado, mas, acredite, você só terá a real dimensão do quanto o Brasil te faz mal quando de fato sair.

E não é só sobre violência, é tudo. É o risco de escrotizarem seu filho na rua, é o risco de desrespeitarem sua mulher dentro de um hospital, é a falta de educação coletiva, é o aborrecimento recorrente por prestação de serviço bosta, é uma infinidade de problemas que impactam diariamente a sua vida e você nem ao menos percebe quanto.

Ao sair do Brasil de uma forma racional e segura, seu sono melhora, seu humor melhora, sua produtividade aumenta, até seu peso diminuí, pois um corpo que não está bombeando cortisol o tempo todo fica mais fininho e saudável. O “Efeito Brasil” só é sentido depois que você sai dele e se adapta a uma nova cultura – e a gente fica em choque do quanto vivia mal sem perceber.

Assim como vocês devem ter se perguntado como a população do Rio de Janeiro consegue viver em um lugar bizarro onde 35 ônibus são incendiados (inclusive com gente dentro), eu te garanto que muito gringo teria o mesmo sentimento e faria as mesmas perguntas se você contasse algumas coisas sobre as dificuldades inerentes à sua cidade.

E mesmo no Rio de Janeiro, as pessoas vivem em uma negação absurda. A maioria acha que a cidade ainda é maravilhosa apenas de “alguns problemas”. Problemas quem tem é Roma, o Rio de Janeiro é um buraco quente violento, sujo, corrupto e invivível.

Em escala maior ou menor, o Brasil todo é um grande atraso civilizatório que faz mal para o seu corpo, para a sua saúde e para o seu emocional. Anormal é quem não tem síndrome do pânico morando no Brasil. E eu sei, por experiência própria, que quando se está no país não é possível sentir a totalidade dos danos que ele nos causa, seja por não conhecermos outra opção, seja por acreditarmos que não é tão ruim assim.

Não deixe que a barbárie do Rio de Janeiro faça o seu estado ou a sua cidade parecerem um contraponto civilizado, o Brasil inteiro é insalubre quando comparado a um lugar realmente bom para se viver. O fato do vizinho ao lado ter um pouco mais de barbárie que você não significa que você está em um lugar bom.

Não deixe que o fato de ter nascido aí e estar acostumado com essa realidade a normalize para você. Se vive muito mal no Brasil e isso reflete na sua saúde física e emocional, mesmo que você não perceba de forma clara. Não quero convencer ninguém a sair, apenas quero que façam uma escolha consciente, em vez de escolher induzidos a erro por uma falsa sensação de que “não é tão ruim assim”. É. E você só dimensiona isso quando sai.

Desde as pequenas coisas como não conseguir cancelar uma porra de um serviço até as grandes como não saber se seu filho volta para casa bem quando sai na rua: tudo isso mina sua saúde física e mental. Para conseguir sobreviver criamos mecanismos de bloqueio e de negação, mas isso só impede nossa percepção, os efeitos continuam afetando nosso corpo e mente.

O Rio de Janeiro e suas barbáries fazem o desfavor de puxar a linha do inaceitável para um patamar que nem cidade em guerra civil se atreveria a estabelecer. O Rio de Janeiro não pode ser parâmetro para nada, qualquer cidade parece boa quando comparada a essa Gaza Nacional. Não estabeleça seus parâmetros do que é aceitável usando como referência uma pocilga de barbáries, você merece coisa melhor.

Atualmente, um dos Memes mais populares em redes sociais é uma montagem de Israel, Hamas e Palestina unidos pedindo o cessar-fogo do Rio de Janeiro. Esse é o nível. É esse lugar que você quer usar de comparação para saber se você vive em um lugar aceitável ou não?

O Brasil é inabitável. Ninguém merece viver nesse esquema. Não permita que um lugar um pouco mais inabitável faça com que você se contente em estar em um lugar um pouco menos inabitável. Você merece um lugar digno, civilizado, com pessoas educadas e prestação de serviço eficiente.

Para dizer que Gaza é melhor do que o Rio pois apesar da violência não tem carioca, para dizer que eu tenho inveja do Brasil ou ainda para dizer que queria os detalhes sórdidos do que aconteceu: sally@desfavor.com

SOMIR

Outro dia desses eu tive que passar por São Paulo, e num caminho pela cidade que em tese só passa por áreas centrais, eu tive um choque de realidade: favelas enormes no meio do meu caminho. Eu sei que elas existem, eu sei que elas existem até no interior do estado, mas numa grande capital brasileira, está tudo ali na sua cara.

Onde eu vivo, você pode escolher um caminho que não te faça ver como tem gente miserável no país. E por motivos de segurança e até mesmo de não querer pensar nessas coisas, é evidente que eu escolho não ver. É aí que São Paulo me ajudou a lembrar do mundo real: não tinha como desviar de praticamente um bairro nos arredores de uma ponte. Casas feitas de qualquer coisa encontrada, crianças soltas pela rua, situação dramática mesmo.

Isso ficou guardado num lugar da cabeça, até conversar com a Sally sobre a notícia dos ônibus queimados no Rio. Foi por texto, mas eu juro que vi ela revirando os olhos, achando nada demais perto do que conhecia da cidade. Na verdade, a pergunta dela foi por qual motivo dessa vez virou notícia. Foi aí que definimos o tema da semana. Isso não é normal. Não é aceitável.

Eu vivendo numa realidade manipulada por GPS, evitando ver os problemas sociais que estão ao meu redor; ela já sem sensibilidade para situações como a queima de 35 ônibus em protesto pela polícia ter matado um dos chefes da milícia. Todo mundo tem alguma forma de mitigar o problema no Brasil, e como a maioria dessas formas se instala no inconsciente, esquecemos como não é minimamente aceitável que esse seja o estado das coisas.

Algumas das percepções da Sally sobre o que deveria ser o normal depois de sair do Rio de Janeiro já eram coisas que eu pensava por viver numa região relativamente rica do país. Claro, o dinheiro grosso do país está nas grandes capitais, mas nos interiores dos estados mais ao sul, a classe média é um pouco maior e a desigualdade parece menor.

Não é. As capitais são uma forma de desnudar o problema, com favelas enfiadas no meio do caminho de todo mundo. Quando você acumula grandes populações, começam a ficar mais evidentes os extremos da curva de distribuição de renda. Milionários e miseráveis. Milionários que exploram a mão de obra barata, miseráveis que aceitam muito mais riscos para ganhar a vida. O mercado do crime fica grande e atrativo.

E aí, o perigo de nos acostumarmos com isso. Perigo já tornado em realidade em boa parte do país. Se você evita ver o problema ou se você perde a sensibilidade para ele, tanto faz: um Estado Paralelo se instala nos espaços deixados por todos nós. Ciclo vicioso: a gente se importa menos, elege representantes que não se importam (ou pior, são infiltrados das facções criminosas), o que faz a situação ficar pior, as pessoas dobrarem a aposta em ignorar, elegendo gente pior, e pior, e pior…

Não sei o que precisa acontecer para o brasileiro médio perceber que não é normal. PCC, CV e afins vão se espalhando pelo território brasileiro, chegando em estados e cidades que não atingiam antes. É muito mais fácil se esconder quando as pessoas que vivem nas capitais te consideram “paisagem” e quando as pessoas que vivem no interior te tratam como se você fosse um animal num safári, que basta não chegar perto para não ser atacado.

E muitos de vocês podem estar pensando que a guinada à direita de uma boa parcela dos brasileiros é uma resposta para essa questão. É, mas não é. Explico: incômodo com segurança pública fortalece a imagem de “homens fortes” como Bolsonaro, mas quando o povão percebe que na prática as coisas continuam iguais, começam a achar formas de lidar com a frustração. Não é só moral cristã que faz com que tanta gente foque sua atenção em sexualidade e reprodução: é um povo tentando achar algo para fazer depois de ficarem frustrados com a falta de resultados em segurança.

Em 2018, o Brasil escolheu um candidato linha dura contra o crime, em 2022, a bandeira do mesmo candidato era uma gororoba ideológica de rejeição à homossexualidade e combate ao comunismo… Bolsonaro não tinha mais a carta da segurança pública porque sua única ideia, vulgo facilitar a compra de armas, não fez a menor diferença. É claro que não faria diferença. Era apenas aceitar o fracasso do Estado em proteger o cidadão e uma boa parcela do povo achando que tudo bem.

Da mesma forma que nos acostumamos com boas situações, nos acostumamos com as ruins. O estado de São Paulo parece mais seguro que o do Rio porque o paulista (e o paulistano) aceitaram o PCC como governo de fato de parte mais pobre da população, evitando que confrontos constantes entre bandidos e policiais criem a mesma sensação de insegurança que acontece no Rio de Janeiro. Ter uma facção criminosa desse tamanho dividindo poder com o Estado às claras como acontece no estado mais rico do país é inaceitável.

Mas talvez seja um sonho para o carioca: se pelo menos só tivesse um grupo controlando o crime, as coisas seriam menos caóticas. É aí que a falência do sistema se instala, quando o povo está tão cansado das coisas muito erradas que aceita outras levemente menos erradas como um avanço.

É meio como aquela história de sempre pedir um pouco mais do que aceitaria na negociação, para ter margem. O brasileiro está tão encurralado pelo crime que está aceitando propostas desvantajosas só para ganhar alguma coisa, qualquer coisa. Como eu tinha dito antes: o crescimento da figura do contraditório pobre conservador que vota em populista de direita ao invés de populista de esquerda não é uma resposta real ao problema. Vamos desistir de viver num país minimamente normal com as vistas grossas da esquerda ou com as soluções infantis da direita.

De qualquer forma, o caminho vai dar no mesmo lugar: gente mais e mais desesperada aceitando qualquer esmola de ação do poder público como se fosse um grande avanço. A sensação de segurança que o brasileiro tem não é normal, é resultado de décadas e décadas de crescimento exponencial do poder do crime organizado; por vezes ignorado e por vezes ajudado pelos péssimos políticos que o povo insiste em eleger.

Povo que só faz isso porque acha que é normal viver num país assim. Não é. Curioso que as pessoas percebem isso sobre Gaza, mas não percebem no país onde vivem.

Para dizer que eu sou um burguês (queria), para dizer que somos todos palestinos, ou mesmo para dizer que santo de casa rouba a casa: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Badalhocas Perdidas

    Nada mais típico de Brasileiro Médio do que vomitar palpites errados sobre uma realidade que desconhece e não vivencia enquanto se acostuma e nada faz para resolver a questão da barbárie que lhe bate à porta diariamente há décadas.

  • Tio da Pavelança

    Não mexa com o Zinho do bandido! Melhor ficar com o Zinho de fora! Só Zinho pra botar fogo em tudo! Com o Zinho e não abro!

  • No Brasil tudo é muito precário como mencionou a Sally.
    São serviços públicos e privados terríveis, zero segurança na aquisição ou uso e as fiscalizações são inexistentes, em tudo, não há garantia de nada, absolutamente.
    Esse país é um buraco trevoso.Parei de sair, viajar, andar por aí…quase tudo me aborrece ou me preocupa.
    Adoraria sair daqui, mas não tenho condições necessárias e a idade pesa bastante, tbm não saberia nem pra onde ir….Sally, por favor, pode sugerir ou indicar lugares que são viáveis? Por que como imigrante e nacionalidade BRA tbm não é fácil né? Não é qlq país que nos veem com bons olhos.

  • Isso é tão “normal” por aqui que já aconteceu de fazerem algo similar por aqui (ainda que em menor escala porque a máfia do busão e a polícia conteve a situação mais rapidamente) há alguns anos atrás.

    Modo PCC de protestar por morte de algum dos seus na alta roda copiado com sucesso.

  • Os muros vão ficando mais altos, cada vez mais câmeras e cercas elétricas, daqui a pouco o povo vai sair de casa usando armadura…

    “…péssimos políticos que o povo insiste em eleger.”
    E temos escolha? O povo vota em políticos diferentes e quando vê, estão roubando, fazendo acordos com outros políticos e contradizendo o que supostamente defendiam e prometeram. E nem adianta impeachmar, matar, esperar que morram de velhice, nem nada, sempre tem um sucessor. Pra dar um exemplo, o ancestral mais antigo (século XVIII) registrado do Ciro Gomes é Domingos Ferreira Gomes, um aristocrata português da capitania do siará, atual Ceará. A família do cara manda e desmanda na região faz uns 300 anos.

  • Dia desses estava conversando com uma amiga e refletindo sobre como deve ser bom morar em um lugar em que você não precisa estar vigilante com tudo o tempo todo.

    E o pior do Rio de Janeiro é que além de ser uma cidade terrível em todos os aspectos, ainda é caríssima de viver. Um pesadelo sem fim, não vejo a hora de poder ir embora

    • Custo de vida pela hora da morte.
      Nada mais normal tendo em vista a situação caótica da outrora capital nacional.

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