Péssimo incentivo.

Empresas, pelo menos as menos disfuncionais, estão sempre pensando em como tirar mais eficiência do trabalho de seus funcionários. Sally e Somir concordam que esse é um fato da vida e que tem jeitos melhores e piores, mas não sobre qual forma de conseguir isso é mais errada. Os impopulares fazem hora extra.

Tema de hoje: qual é o pior suposto incentivo que empresas dão aos seus funcionários?

SOMIR

Incentivos que não sejam dinheiro. Setores de Recursos Humanos ao redor do mundo seguem várias cartilhas diferentes de como manter os funcionários produzindo em alto nível, mas tem uma ideia que eu considero nefasta enfiada no meio de todas essas ideologias: que trabalho tem que ser mais do que receber dinheiro por horas trabalhadas.

Pode ser mais do que um salário, é claro. Mas não TEM que ser mais do que um salário. Quando você prescinde dessa ideia fundamental sobre o que é trabalhar para um terceiro, você começa a inserir uma mentalidade bem estranha no ambiente de trabalho. Essa coisa de vestir a camisa ou fazer parte da família da empresa adiciona um elemento de culto no que deveria ser apenas o seu trabalho.

Não basta trabalhar, tem que estar feliz trabalhando, tem que ter energia para entregar os tais dos 110%, tem que ser um defensor da sua empresa em todas as ocasiões… se isso não é criar um componente religioso no seu ambiente de trabalho, eu não sei mais o que é. O acordo social não era esse: era entregar horas de trabalho em troca de compensação financeira.

Quando você subverte essa lógica básica tentando fazer seus funcionários trabalharem mais por incentivos que não sejam receber mais dinheiro pelas horas dedicadas ao trabalho, você está tentando, mesmo que sem perceber, mudar esforço por dinheiro para esforço por dedicação a uma causa maior.

Pelo menos as religiões tendem a te manter dentro de um grupo social de forma consistente. Empresas não fazem isso: elas podem falir, elas podem ter que reestruturar seu setor e te mandar embora, elas te julgam pelo quanto você entrega de resultados, e pior ainda, podem te mandar embora porque alguém com mais poder que você não foi com a sua cara.

A nova religião do Linkedismo – a crença na santidade da empresa com exigência de adoração de seus superiores – vende a ideia de que o funcionário tem que se motivar por fatores alheios à sua compensação financeira. Pudera, é bem mais econômico para quem está fazendo os cálculos de retorno sobre investimento.

Embora eu concorde com o argumento da Sally, eu acredito que a minha questão está bem mais na base do problema do mercado de trabalho moderno. Subverter a ideia de que o trabalhador tem que receber dinheiro pelo seu trabalho é um truque sujo que infelizmente pega muita gente.

Vejam bem, não estou dizendo que a empresa tem que ser um lugar cinza que não dá nada além de salários para seus funcionários, estou dizendo que incentivo de produção tem que estar relacionado com aumento de compensação financeira. Pode e deve fazer vários mimos para sua equipe, porque te ajuda na retenção de talentos e reduz problemas com estresse, mas isso não pode ser uma base de incentivo para aumento de produção, é mais para manter sua equipe funcional.

Quer tirar mais valor do tempo do funcionário? Faça o tempo dele valer mais. É claro que uma empresa focada em lucro vai fazer um cálculo para coletar uma parte desse valor, isso é do jogo. E sim, estou usando o contexto que a empresa já é funcional sem os incentivos e quer mais. Empresa que usa incentivos não-financeiros para voltar a ficar no azul é empresa que está fazendo algo errado muito antes de considerar a produtividade dos funcionários.

Digo faz tempo que motivação é um falso deus no mundo corporativo, as pessoas acham que é isso que a empresa tem que buscar, mas motivação é algo que depende do indivíduo, não do ambiente. Entregar um ambiente organizado e funcional vale mil vezes mais que qualquer incentivo como sala de jogos ou dia da pizza. A questão aqui é que as empresas calculam o quanto custa pagar mais para seus funcionários e quanto custa para fazer um “showzinho” e sempre descobrem que uma graça eventual é muito mais barata.

Todo esse discurso “religioso” do RH para no final das contas ser apenas a empresa tentando passar a perna no funcionário com o menor custo possível. Você não precisa estar realizado no seu trabalho de analisar planilhas de Excel ou servir sorvete num quiosque de shopping, você precisa receber um salário que te permita ter um mínimo de qualidade de vida. E se você quiser mais dinheiro, a empresa pode oferecer diversas alternativas para que você complemente sua renda trabalhando mais.

Porque aí seu trabalho tem cara de trabalho. Isso é importante até na mentalidade do funcionário, essa coisa infantilóide de querer mais esforço em troca de incentivos psicológicos muda a forma como ele enxerga sua missão. Se você quer colocar a ideia de que trabalho é diversão, não reclame quando seu trabalhador estiver sem ânimo para produzir. Foi você que enfiou isso na cabeça dele para tentar arrancar mais alguns trocados da forma mais barata possível.

A pessoa que sabe que se trabalhar mais vai ganhar mais dinheiro não é necessariamente uma pessoa mais feliz, porque dinheiro com certeza não é tudo na vida, mas é uma pessoa que entende claramente o que está acontecendo no seu trabalho e percebe meritocracia de forma clara. Repito que mimar funcionário pode ser muito positivo, mas não é uma ferramenta de aumento de produtividade, é para estabilizar o humor e o interesse do ser humano “obrigado” a trocar seu tempo livre por dinheiro para viver.

Mas não, os gênios do RH e os chefes sem-vergonha botaram na cabeça que é para tratar adulto feito criança e fazê-lo esquecer do valor do seu tempo, balançando coisas brilhantes na sua frente até ele distrair da exploração que recebe. Se você quer um adulto responsável trabalhando para você, trate-o como um adulto responsável. Ou, você vai ter um bando de bebês chorões que não sabem mensurar o quanto eles realmente entregam de valor, variando entre euforia e burnout sem entender por que está ficando cada vez mais difícil trabalhar.

Nem todo trabalho pode entregar momentos de criatividade e resultados claros para o esforço, é por isso que inventamos todo o sistema de compensação financeira. Se quer que alguém trabalhe mais, pague mais. Se você não tem condições de entregar mais dinheiro, baixe a bola em relação à produtividade do funcionário e descubra onde está o ralo de dinheiro na empresa. Não se pode colocar nas costas de alguém que não recebe os lucros da empresa a responsabilidade de gerá-los. Funcionário está lá para fazer o trabalho dele em troca de dinheiro. O resto é só manutenção.

Para dizer que eu sou o capitalista mais comunista que você conhece, para dizer que só um salário decente já resolveria tudo, ou mesmo para dizer que é linkedista e eu ofendi sua religião: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o pior suposto incentivo que empresas dão a seus funcionários?

Na minha opinião, o pior é estimular direta ou indiretamente a competição entre os funcionários. E isso vai desde premiações (premia quem foi melhor fazendo o resto se sentir inferior) até um ambiente que privilegia (seja por status ou qualquer outro motivo) quem leva mais dinheiro para a empresa. Parece incentivo, mas não é, é apenas uma estratégia ultrapassada que só gestor bosta usa.

No meu mundo, uma empresa ou qualquer unidade de pessoas que trabalhem juntas por um objetivo em comum tem que estar unidas e o clima tem que ser de cooperação, não de competição. Muita gente vai discordar, muita gente vai dizer que eu sou inocente e que eu não conheço o mercado. Em resposta eu digo a essas pessoas que elas não conhecem a vida.

Criar um clima de competição não vale a pena. Pode até, em um primeiro momento, estimular as pessoas a se dedicarem mais ou a produzirem mais, porém o custo disso é insalubre. E não digo apenas pela saúde mental dos funcionários (sim, funcionários, não aguento Millennial que chama de “colaboradores”), falo também dos desdobramentos disso na própria empresa.

Pessoas são capazes de muita coisa para conseguir aplauso, reconhecimento e dinheiro. E muitas dessas coisas não são nada boas. Pessoas tendem a perder a linha, chegam até a mentir, enganar e fazer artimanhas que até o diabo dúvida para se destacarem, para serem mais bem remuneradas, para sentirem pertencimento e validação. Jura que parece uma boa ideia brincar com o ego e com o bolso das pessoas dessa forma?

Eu sei que toda empresa faz. Mas também sei que ambiente de empresa não é saudável e que o lugar onde psicopatas melhor se destacam é no mundo empresarial. Então, um retumbante “foda-se” para esse “todo mundo faz”. Todo mundo faz e continua sendo horrível, contraproducente e pequeno. Coisa de gentalha que só pensa em lucro. Não dá para pensar só em lucro, se você não construir um ambiente minimamente decente, salubre e convivível, uma hora sua criação se volta contra você. E, cá entre nós, nem para aumentar o lucro a competitividade serve.

Ao contrário do Somir, eu não abomino premiações não-financeiras. No período da minha vida no qual geri pessoas em empresa sempre chamava para conversar e perguntava para a pessoa o que valia mais para ela: 1) dinheiro, 2) tempo ou 3) bens materiais (os bens que a empresa produzia, no caso) e recompensava a boa produtividade com isso.

A pessoa escolhia o que queria receber e eu respeitava essa escolha. Vocês ficariam surpresos com a quantidade de gente que escolhe tempo no lugar de dinheiro, principalmente aqueles que tem filhos ou alguém da família que precise de cuidados. A pessoa me dizia o que a estimulava e eu respeitava. E dava muito mais certo do que outros gestores que criavam ambientes competitivos. Comigo, todo mundo podia ganhar.

O grande problema não é a premiação não-financeira em si e sim empurrar forçosamente esse tipo de premiação para pessoas mal remuneradas que estão precisando desesperadamente de mais dinheiro – aí sim é ofensivo. O problema é achar que seu maravilhoso prêmio não-financeiro é muito bacana quando não passa de uma versão adulta da medalha de papelão que a escola dava por participar de uma corrida. O problema é empurrar um prêmio que você ache legal para pessoas que são bem diferentes de você (até hoje tenho uma semana em um hotel de praia não usado que uma empresa me deu).

O prêmio não-financeiro pode não ajudar em nada a pessoa, mas também não atrapalha. No máximo é um desaforo ridículo. Já viver em um ambiente que estimula a competição gerido por imbecilóides que acham que essa é a única ou mais eficiente forma de motivar alguém escorados no argumento que sempre foi assim e todo mundo faz é duplamente nocivo.

É nocivo por criar um ambiente hostil onde a mentalidade é se colocar contra seu colega e onde a competitividade escala e sai do controle gerando inúmeros problemas e também é nocivo por escancarar para o funcionário que ele é gerido por uma pessoa minúscula, desatualizada, que só pensa dentro da caixa e repete como um fantoche o que todo mundo sempre fez. Isso sim desmotiva alguém. Não tem pior desmotivador do que gestor bosta.

“Ain mas sem isso as pessoas não produzem”. Mentira. Em um ambiente seguro e cooperativo as pessoas produzem mais e melhor. Já foi provado por inúmeros experimentos. Somar é sempre melhor do que dividir. Mas o gestor bosta quer a equipe dividia, para ele liderar com tranquilidade e reinar soberano. Uma equipe unida é um perigo para pessoas minúsculas.

Em um ambiente cooperativo, cada um acrescenta seu grão de areia até construir um castelo. Em um ambiente competitivo todo mundo esconde seu grão de areia para tentar fazer tudo sozinho. As boas ideias vêm de ambientes cooperativos onde todos trabalham juntos.

E, francamente, se um funcionário precisa ser jogado contra outro funcionário, precisa da noção de “vencer” seu colega para produzir, demite esse merda, pois ele tem traços egóicos muito complicados que fatalmente trarão problemas nada agradáveis. Quero gente assim bem longe de mim!

Talvez em países civilizados, onde essa premissa da competitividade nasceu, a coisa seja menos tóxica. No Brasil? Insalubre. Não dá para pegar um costume de um país civilizado e jogar em um país de malandros, de jeitinho, de desonestidade, de hostilidade e agressividade. Não vai dar certo.

Deve ter muito empregador aqui pensando “foda-se que o empregado está infeliz, ele que lute, eu quero lucro”. Duplamente burro. Pessoas infelizes são bombas relógio que acabam explodindo na sua cara. E pessoas infelizes trabalham mal, trabalham menos, são menos criativas. Ninguém ganha mantendo esse ambiente escroto de competitividade.

Queria muito entender de onde saiu essa ideia arrombada de que para produzir mais as pessoas precisam de competição, de medo, de desconforto de estar sempre devendo e tendo que correr atrás de metas. É o oposto do que eu entendo um ambiente seguro e produtivo de trabalho.

E antes de me mandar à merda, observe como está o mercado de trabalho atualmente. Está inundado por pessoas doentes, com Burnot, com depressão, com síndrome do pânico, bebendo, usando drogas, tomando remédio tarja preta, brigando entre si, falando mal abertamente das empresas em redes sociais, descontentes, chateados. Parece estar dando certo para você?

Esse é o clima que a competitividade gera: esse cobra comendo cobra do mundo corporativo, esse todo mundo contra todo mundo falando mal de todo mundo. Esse ambiente NOJENTO de empresa, que mina a saúde mental de qualquer um. Não adianta meter mesa de sinuca, de totó ou fazer causal friday para parecer disruptivo, se a empresa estimula a competitividade, ela é jurássica e gerida por gestores bostas.

“Ain mas está dando certo para o patrão, pois ele tem lucro”. Não, não está. Ele poderia ter dez vezes mais lucro se promovesse um ambiente de trabalho digno, seguro e humano. Competitividade é um dos maiores atrasos de vida do mercado de trabalho.

Para dizer que quer trabalhar comigo, para dizer que brasileiro é o primeiro a tratar brasileiro como bicho ou ainda para dizer que vai enviar este texto de forma anônima para seu empregador: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (6)

  • Vou concordar com a Sally nessa, embora pareça bastante utópico, afinal, em todo lugar há competição, não adianta!

    Aliás, pegando o gancho, embora eu tenha lá sérias críticas à empresa que eu trabalho, nem por isso saio falando por aí abertamente em rede social, já que sei que isso pode pegar mal pra mim, e hoje em dia qualquer um tira print de qualquer coisa então…

    • “O print é eterno”, dizia aquele Delt4n, última vez em que tinha razão, contra aquele Fel1pe…

      Sobre o tema, Somir já me fez achá-lo menos utópico porque seria o início ou bastantes partes de fim de muitas pseudo intimidades laborais/mercadistas.

  • Todos os estudos apontam que manter os funcionários felizes e tratá-los como seres humanos traz mais lucros e resultados. Acho que tanto a Sally quanto o Somir estão certos hoje. Quanto mais engraçadinha é a recompensa, como a tal da sexta casual, pior é o pagamento. E a abordagem que me trouxe os melhores resultados até hoje foi “não tente competir comigo, eu quero que você também ganhe”.

    Em meu primeiro ambiente competitivo, uma pequena equipe de mulheres, nós nos sentimos tão ofendidas por algumas coisas que acabamos nos unindo contra a chefe e ela foi demitida. Foi uma experiência bem valiosa, agora todas as vezes que sinto que essa competição está sendo criada, tento criar alguma solução ganha-ganha. A maioria das pessoas acaba se unindo e quem perde é quem insiste em competir, até porque em equipes maiores sempre vai ter alguém assim.

    • Sim, bobo do funcionário que cai nessa pilha competitiva e fica contra o seu colega. Funcionários desunidos são fracos, funcionários unidos derrubam até chefe, muito melhor um clima cooperativo.

      • Sem dúvida, Sally. Quando há um clima de competitividade acirrada dentro de uma empresa, o ambiente fica péssimo. Porque o que não falta nesses lugares são futricas, maldizer constante e tramóias pelas costas. Não me admira que haja tantos funcionários infelizes, nervosos e eternamente de saco cheio de seus empregos. Ao mesmo tempo, eu também concordo com o Somir nas críticas que ele faz à “nova religião do Linkedismo” e à ideia de “vestir a camisa da empresa”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: