Sequestro atômico.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a antiga Liga das Nações foi reformulada como Organização das Nações Unidas. Três anos depois de sua fundação, em 1948, a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos como linha guia de suas ações. Era claro que o trauma das duas guerras anteriores estava presente na mente dos envolvidos e a ideia era criar um mundo onde isso não acontecesse de novo. Mas havia um problema fundamental: isso tudo foi construído na base da força dos vencedores da guerra que tinha acabado recentemente.

Se em 1945 só os EUA tinham provado capacidade de usar armas nucleares, poucos anos depois a maior parte das nações colocadas como “garantidoras” do acordo da ONU também tinham seus arsenais de bombas atômicas. Uma das ideias originais é que a ONU fosse capaz de mediar conflitos entre nações e eliminar guerras antes que elas começassem. Não precisa estudar muita história para saber que nesse ponto as coisas não funcionaram direito.

Como o poder mediador da ONU era baseado no poderio militar dos membros permanentes do Conselho de Segurança e como quase toda guerra desde então tem o dedo de algum desses membros permanentes, a entidade ficou bem desmoralizada nesse sentido. Os países que venceram a Segunda Grande Guerra criaram a ONU já prevendo que seus interesses não podiam ser impedidos, por isso cada um deles tem o poder de veto em qualquer decisão do Conselho de Segurança.

E antes de continuar o texto: a ONU não é um fracasso, longe disso. Suas entidades funcionam para ajudar em causas humanitárias no mundo todo. Longe de mim dizer que deveríamos acabar com as Nações Unidas, mas apenas apontar que tem uma parte dela que simplesmente não funciona. Uma parte que foi sequestrada pelas potências atômicas com o expresso objetivo de mantê-la incapaz de impedir guerras.

Numa análise mais realista da coisa, o mundo pode ter melhorado muito em questões de direitos humanos desde os tempos em que a ONU foi fundada, mas tem uma parte fundamentalmente travada no tempo: a lei do mais forte ainda é a base de toda ordem mundial. Obedecer a ONU pode ser questão de bom senso e respeito pela humanidade, mas em última instância, é a ideia de que os países com as bombas mais devastadoras estão bancando o que se diz lá.

E por uma consequência disso, se a ONU disser alguma coisa que não seja do interesse dos donos das bombas, é só uma sugestão. No fundo, no fundo mesmo… a ONU é um lugar para as nações com arsenal nuclear colocarem para fora incômodos pontuais e reduzir as chances deles se matarem por alguma falha de comunicação. Nós, o resto dos países, estamos lá mais para dar uma plateia e cumprir a função pra lá de humana de ouvir reclamação para aliviar um pouco a putez do outro.

Não funciona como entidade de mediação, é mais como se fosse um divã para os moleques violentos da turma terem uma chance de falar antes de efetivamente fazer. E mesmo assim, quando eles querem mesmo, eles saem batendo nas crianças menores. Aliás, deixa eu mudar a analogia, tem uma mais precisa: os outros países que não têm arsenais nucleares são mais como uma esposa presa numa relação abusiva, que por um motivo ou outro não tem como sair de casa (afinal a casa é o planeta) e que tenta, na medida do possível, entreter o abusador para apanhar menos.

Ainda apanha, ainda lida com abusos, mas achou um ponto mais ou menos estável onde consegue fingir que está tudo bem, que “ele é muito passional mesmo”. A verdade é que somos reféns de países que tem poderio militar para nos matar se quiserem. Podemos dizer o que quisermos para nos convencer que não é tão ruim assim, mas a Lei da Selva ainda é o que define a humanidade, pelo menos na questão de política internacional.

E como não é razoável esperar que quem tem o poder o ceda de forma pacífica, é difícil enxergar um futuro em que os países com mais potencial de destruição não tenham esse tipo de vantagem sobre os outros. Um mundo que segue regras combinadas com antecedência e no qual sua capacidade de matar milhões de uma só vez não seja o elemento definidor do seu poder de obedecer ou não essas regras.

Muita gente diz que o começo de um futuro utópico é o fim da escassez, ou seja, quando as pessoas não precisarem mais se esforçar para ter recursos básicos como comida e teto. Eu torço para que um dia tenhamos essa capacidade, talvez com mais automação e exploração em larga escala de recursos fora do planeta; mas isso não é o ponto onde o mundo vence a Lei da Selva. Porque os donos das bombas atômicas ainda podem matar metade do planeta numa pancada só.

E isso mantém o impasse que nos torna incapazes de tomar decisões contrárias à guerra. Historicamente, a maioria das pessoas não gosta de guerras e dada a oportunidade, evita sequer chegar perto dessa situação. Mas os líderes dos países onde essas pessoas moram raramente compartilham do sentimento, afinal, não são eles tomando tiro no campo de batalha.

Por isso que eu imagino que só vamos mudar de fase da história e pelo menos reduzir essa síndrome de refém quando tivermos tecnologias que consigam combater o arsenal nuclear de americanos, russos, chineses, europeus, etc. Formas de se defender de mísseis de longo alcance talvez seja a tecnologia mais importante para um futuro melhor para a espécie. Imagine o dia que um país vai poder mandar os EUA ou a Rússia à merda por não ter medo de um ataque nuclear?

Sim, ainda vai ter o risco muito real de invasão por terra, como estamos vendo nas guerras atuais, mas esse tipo de guerra é outro mundo em comparação com promessa de aniquilação total que bombas atômicas oferecem. Eu não sou de conspirações, mas acredito nessa: o desenvolvimento de defesas eficientes e baratas contras armas de longo alcance como mísseis, aviões de caça e bombardeiros não é o tipo de coisa que os atuais donos do mundo querem ver. Primeiro que mantém a ordem mundial sob seu controle, e segundo que seria um doloroso golpe em suas indústrias militares.

Ninguém parece muito animado em investir pesado nisso. Se alguma tecnologia autônoma conseguisse interceptar milhares de mísseis de longo alcance e/ou inutilizar forças aéreas, isso seria o golpe mais doloroso possível nos países que nos sequestram com suas bombas atômicas. Porque aí eles teriam que encarar suas guerras de acordo com a vontade do seu povo de ir se matar ao vivo e a cores no campo de batalha.

Se eu tivesse a capacidade de dirigir os gastos militares do resto dos países do mundo, eu sugeriria foco total em tornar inúteis as armas nucleares das nações nucleares. Mas é claro, como essas nações não são otárias, elas subornam metade do mundo para não se preocupar demais com isso. Tem um componente extra nos bilhões que americanos, russos e similares usam para financiar ditaduras das mais atrasadas ao redor do globo. Para eles é positivo que não se comece a tentar tornar suas armas mais poderosas em tecnologia obsoleta.

Evidente que não é algo fácil de fazer: Israel não consegue nem parar todos os foguetes de fundo de quintal que o Hamas usa, e não é como se os próprios donos das bombas atômicas não pensem em como se tornar virtualmente imunes às bombas dos outros, tem gente pensando nisso desde que aviões começaram a ser usados no campo de batalha. Mas será que algum deles quer achar mesmo a solução?

Imagine um sistema de drones que consiga infestar o céu do seu país e detonar todas as bombas do adversário longe do chão, imagine que esses drones também conseguem entrar na rota da maioria dos aviões e explodir na frente deles… isso faria com que várias nações atuais que se julgam intocáveis voltassem a ter que negociar sem o Super Trunfo que é a bomba atômica. Seria um desastre para superpotências nucleares autoritárias e democráticas do mesmo jeito.

E talvez um dos únicos cenários futuros em que entidades como a ONU pudessem realmente impedir guerras. As pessoas se concentram demais em ver conspiração e “corpo mole” em tecnologias que todo mundo ia gostar como cura do câncer ou energia barata (todo mundo ganha, até quem faz remédio e quem produz energia, porque eles são os primeiros a tirar vantagem disso), mas deixam de lado a ideia de que existem sim tecnologias que deveriam ser perseguidas com muito afinco, mas que são deixadas de escanteio porque os donos do mundo, os sequestradores atômicos, não enxergam vantagem nenhuma no mundo ter isso.

Duvido que a solução vai ser os países com as bombas desistirem de ter as bombas, os acordos do final do século passado só tiraram de circulação as bombas que eles mesmo achavam um exagero ter, porque custava muito caro manter cada uma delas funcionando. Eles não querem o fim dessa era, porque essa era é a que mais interessa para quem já está no controle. E se os outros países, especialmente os que se dizem pacifistas, não tomarem a dianteira para produzir tecnologia para esse fim, é claro que não vai acontecer nada. Só vão abrir tecnologias para impedir ataques nucleares quando tiverem outra arma melhor na mão.

E aí, a Lei da Selva continua, invalidando toda a lógica de se ter uma ONU para começo de conversa…

Para falar que adora uma conspiração, para dizer que tem buracos na minha teoria, ou mesmo para dizer que todos os países deveriam ter bombas atômicas (é a pior solução possível): comente.

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , ,

Comments (4)

  • Eu pessoalmente acho um absurdo não termos investido mais em tecnologia nuclear. Detonamos com todos os nossos rios importantes, quando meia dúzia de usinas nucleares teriam dado conta do recado.

  • Talvez assim como no caso da Conjectura de Collatz, a solução seja mais simples do que aparenta a primeira vista.
    A grande quantidade de satélites em orbita tende a tornar cada vez mais difícil um ataque nuclear em solo.
    Claro, isso NÃO evita guerras e NÃO é uma solução sem inconvenientes.
    Guerras não vão ser evitadas ainda assim. O que segura as aparências é o eventual temor de responder por crimes de guerra, que ironicamente é um medo maior no ocidente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: