Perdendo a cabeça!

Não importa quantas vezes eu veja, execuções na guilhotina sempre estragam meu dia. Hoje, dia 21 de Janeiro de 1793, marca a morte de nosso último monarca, Louis XVI. Eu sei que sempre dizem que a guilhotina corta a cabeça da vítima perfeitamente, mas não é verdade… sempre fica uma pele inteira na parte de baixo que faz a cabeça cair e ficar pendurada, enquanto o sangue jorra. Tivesse comido pães ou brioches, eles teriam voltado na hora. Por que fazemos isso mesmo?

Eu sou o primeiro a dizer que estamos melhores sem a realeza. Louis, Marie e aquela corja toda são representantes de uma mentalidade absolutista que nunca mais quero ver na França (embora vá esperar sentado por isso); mas isso tudo me parece um espetáculo sangrento sem grande substância. É cena para a plebe esfomeada esquecer dos roncos em seus estômagos? Precisávamos cortar-lhes as cabeças? Isso não soa revolucionário. Na verdade, é exatamente o que deveríamos estar enfrentando.

Eu sei que é impopular dizer que Louis não deveria pagar com a vida, mas não estamos culpando-o pelos erros de seu antecessor? O “desejado” (apelido mais irônico de um rei até hoje) assumiu uma nação quebrada, muito por culpa de Louis XV, mais preocupado em dar títulos para suas amantes e entrar em guerras inúteis do que qualquer outra coisa. Algumas de suas medidas foram bem vindas: o fim da servidão (pelo menos oficialmente, sabemos bem que continua tudo igual), o fim daquele maldito imposto resquício da Guerra dos Cem Anos (que só os pobres pagavam!), a diminuição da perseguição contra os não-católicos…

A maior prova de que ele fez algumas coisas boas foi justamente o resto da nobreza ficando contra ele. De uma certa forma, foi só ele tentar algo remotamente bom para nós, os plebeus, que perdeu força política o suficiente para ver a nossa Revolução dar frutos. Tivesse ele mantido os nobres felizes, talvez nunca tivéssemos conquistado o que conquistamos.

Sim, a França respira aliviada sem a necessidade de sustentar esses vagabundos reais, mas ao observar a Praça da Revolução explodir em felicidade com o sangue de Louis XVI sendo absorvido por lenços de revolucionários querendo uma recordação é difícil não se chocar com cena tão dantesca. Não há nada de iluminado na barbárie. Se o próprio Louis XVI não tivesse banido o uso da roda do despedaçamento, teria sido esse seu fim? Aposto que vocês já estão cansados de ler o que eu e Saline dizemos sobre penas capitais, mas mesmo entretendo a validade do conceito, não é irônico que o monarca que decidimos ser danoso demais para nossa sociedade foi justamente quem pelo menos reduziu o grau de crueldade das execuções?

Vocês lembram da roda, não? O condenado era preso a uma roda parecida com a de uma carroça, e seus ossos eram quebrados um a um até sua vida se esvair, lentamente. Ao ver os olhares de satisfação de nossos companheiros com os momentos finais de seu ex-monarca, fico imaginando se dada a oportunidade, gostariam de tê-lo torturado também. Se pregamos igualdade, fraternidade e liberdade, onde fica a selvageria que vi? Sim, dizem que precisamos de cenas grandiosas, marcos da Revolução, mas… a deposição de um rei por seus súditos não é a cena mais poderosa de todas? Nos próximos meses vão cortar as cabeças de outros nobres, e eu duvido que teremos algum resquício de justiça aqui. Vocês conseguem imaginar alguém perdendo a oportunidade de colocar o belo pescoço de Marie Antoinette para ser partido diante de uma multidão em catarse? Isso, meus irmãos de luta, isso é vingança, não justiça.

Passamos fome enquanto eles se refestelavam em seus palácios com o dinheiro dos nossos impostos, sua gula e luxúria financiadas pelo suor de nossas testas, mas estamos perdendo uma oportunidade de ouro aqui. E se ao invés de cortar-lhes as cabeças, fizéssemo-nos sentir na pele a vida que vivemos? Tirássemos deles os títulos, posses… e faríamos eles viverem nos recantos mais miseráveis de Paris. Imaginem Louis e Marie presos num beco infestado de ratos, obrigados a fazer tudo o que fazemos para garantirem sua próxima refeição?

Faríamos os nossos verem a igualdade. Um rei reduzido a plebeu, dependendo da fraternidade do povo que sua linhagem toda ignorou, com a liberdade de se reerguer ou de escolher terminar sua vida miserável. Passamos tanto tempo pensando em como tornar nossas punições mais humanas, e o máximo que conseguimos foi cortar cabeças de forma mais eficiente? Nada mais emblemático para o estado atual das coisas.

Não pensem que vencemos, me traz muita alegria ver o poder da Igreja Católica desabando a olhos visto em nossa nação, termos uma Constituição de verdade, sem resquícios de monarquia como a que veio antes; estamos sim num momento positivo, mas eu ainda sinto que a sede de sangue de um povo que mal saiu do feudalismo não foi saciada. E ao invés de começarmos a tomar medidas para carregar nossa amada França para um futuro realmente iluminado, estamos cegos com o ódio por séculos de exploração e injustiça. É compreensível, mas não pode ser incentivado.

Tivemos grandes momentos sim! A queda da Bastilha (mesmo que estivesse meio vazia no dia), nossas bravas mulheres tomando o castelo de Versailles – Saline, apaga isso quando for copiar, mas aquela história do seu vestido sair do lugar enquanto segurava a bandeira no dia da marcha já virou lenda aqui, daqui a pouco começam a aparecer as pinturas… tomara que a história morra logo… – e tudo mais o que vamos guardar com carinho nas nossas memórias, mas essa mentalidade de violência e fúria não me parece o caminho correto.

Daqui a pouco, no meio dessa confusão, algum militar com certeza vai tentar dar um golpe de estado. Eles estão loucos por isso, ficou um vácuo de poder sem realeza e sem igreja. Eu acredito que temos capacidade de resistir a uma simples troca de tirano, mas os próximos anos são de extremo cuidado. E, é claro, agora, mais do que nunca, os ingleses estarão baforando em nossas nucas. Tenho a impressão que quaisquer erros que cometermos agora vão causar ondas de impacto em todo o mundo.

Viva a Revolução, mas… sem cabeças rolando. Pelo menos temos um pouco de liberdade de expressão para poder distribuir esses panfletos. Tomara que nossos irmãos revolucionários não se voltem contra aqueles que apontam os erros nos seus caminhos… mas, chega de ser pessimista, o que poderia acontecer de pior depois de tantos anos de monarquia? Um imperador? Hahaha!

Saudações revolucionárias, impopulares. Eu, Somiré, despeço-me. Au revoir!

Para dizer que não entendeu nada de nada (não ensinam isso direito na escola, tem que correr atrás), para dizer que Somiré não ficou com a cabeça no lugar por muito tempo, ou mesmo para dizer que usar os nomes em francês foi bem afetado: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Muita boa esta coluna! Bacana sua forma de narrar a história. Eu não trocaria o DesAtualizados por uma novela de época.

  • Gostei do texto, no geral gosto muito dessa época que pintam como romântica mas sei que cheirava merda.
    Já que tem poucos comentários to postando pra dizer que você poderia ter incluído um parágrafo sobre a monalisa, que nessa época ficava pendurada em um banheiro da corte francesa.

  • Gosto muito do Des Atualizados, mas parece que quase ninguém entende, nem comenta…
    “Tomara que nossos irmãos revolucionários não se voltem contra aqueles que apontam os erros nos seus caminhos…” Tudo indica que Somire morreu pelos Jacobinos hahaha.

    • Sabe que eu acabo de ter uma ideia? Acho que no próximo eu vou começar a colocar links explicando as referências. Talvez não comentem do mesmo jeito, mas pelo menos não fica tão distante.

      Somiré perdeu a cabeça no dia que Napoleão deu o golpe, berrando “Je ne dis pas?” no meio da multidão.

    • Eu, pelo menos, (além de ter assinado para o e-mail) apenas gostei muito mesmo; do “lado B” do final do Antigo Regime a, principalmente, ter a (óbvia ?) identificação quanto a aquele quadro, a queda da Bastilha…e, agora a pouco, até reparei “na previsão” do iluminismo.

      =)

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