Transumanismo: Humanidade 2.0

No meu texto anterior, pintei um quadro depressivo sobre a capacidade da humanidade de manter uma sociedade onde a lei é universalmente respeitada. Mesmo se alcançarmos um nível alto de desenvolvimento social, o número de pessoas que simplesmente nasce com ou desenvolve problemas psicológicos graves é muito alto. Com o que temos à nossa disposição hoje, não dá para controlar tanta gente assim. Mas, com o tempo, talvez possamos mudar a essência do que é um ser humano.

Esta série de textos fala sobre o transumanismo, a ideia de que podemos transformar nossos corpos e mentes através da tecnologia em busca de uma existência melhor. Explico melhor sobre o tema no primeiro texto da série, por isso já vou pular algumas definições básicas nesse.

A seleção natural já não funciona tão bem assim com a humanidade. E não estou necessariamente achando isso um problema. A lei da selva é muito focada em capacidade física e habilidades sociais, afinal, num mundo sem as facilidades da tecnologia, o básico é conseguir alimento e se reproduzir para manter uma espécie viável. Enquanto a evolução natural cuidou da espécie humana, fomos selecionados entre aqueles cujos corpos melhor se adaptavam ao ambiente, e principalmente entre aqueles que melhor conseguiam se integrar ao grupo, trabalhando em conjunto para viabilizar a subsistência. Pessoas solitárias, confusas ou agressivas demais acabavam morrendo sem passar seus genes para frente, assim como os que tinham deficiências mais pronunciadas.

Mas, quando finalmente passamos pelo gargalo da produção de alimentos e pessoas conseguiram produzir mais do que conseguiam consumir com consistência, começa uma era de especialização do ser humano que desemboca no mundo moderno: algumas pessoas podem se concentrar mais em tarefas intelectuais e até mesmo mediar as relações entre outras pessoas. Coisas que não pareciam importantes para antepassados com medo constante de passar fome, mas que se tornaram muito valiosas com o passar dos séculos. A seleção natural colapsa: pessoas com características físicas ou sociais problemáticas para o grupo podiam compensar isso com produção intelectual. E como elas mesmas são resultado da seleção natural de seus antepassados, continuam com um desejo natural de reprodução.

O ser humano inviável na pré-história começa a ter filhos. E considerando o poder considerável que um intelecto avançado pode conquistar numa sociedade humana, começam a ter filhos que já nascem com vantagens e facilidades para eles mesmos se reproduzirem. Os genes que a seleção natural controlou quase todos os milênios de existência da humanidade voltaram com força nos últimos. E isso foi se estabelecendo na cultura humana: pessoas cuja produção intelectual é mais frequente mudam o paradigma para as próximas gerações.

Isso gera uma humanidade mais produtiva e acolhedora para todo tipo de pessoa, mas ao mesmo tempo gera um volume maior de seres humanos com dificuldade pronunciada de se adaptarem à sociedade: são naturalmente menos dóceis e aptos a se misturar, e existe cultura suficiente para entretê-los nesse meio tempo. Se a história não mente, todas as sociedades modernas saem de uma fase de barbárie, com muita violência e pressão seletiva baseada na lei da selva para uma fase de civilização onde a pressão começa a se esvair completamente, enchendo o mundo de pessoas pouco aptas a conviver com o outro, mas extremamente produtivas no campo cultural e intelectual. O problema é que a baixa capacidade de socialização pode guiar o cérebro humano para lugares perigosos: extremismos e desinteresse em obedecer às leis do grupo. Muita gente se torna individualista e agressiva.

A tecnologia que constrói nosso mundo traz muitos benefícios, mas não consegue enfrentar problemas oriundos dessa natureza humana, que depende inclusive de mutações aleatórias nos códigos genéticos e sua capacidade de passar pra frente para se regular. A tecnologia está lá fora reduzindo a pressão seletiva sobre a subsistência, mais ainda não consegue tocar no elemento mais básico: o ser humano. O transumanismo entre justamente aí, nesse ponto cego de nossas máquinas e computadores atuais. Precisamos começar a mudar o ser humano desde seus blocos mais básicos de construção para enfrentar os problemas da sociedade moderna e nos permitir pensar além do que já temos.

Uma das soluções é começar a mexer no ser humano antes mesmo dele nascer. O conhecimento sobre qual gene faz o quê no nosso DNA ainda engatinha, e os fundamentos genéticos do comportamento ainda não são bem compreendidos, mas a tecnologia de fazer mudanças deliberadas num código genético antes dele começar a se multiplicar já existe. Com certeza não deve ser seguro, ainda mais nesse estágio de desenvolvimento da tecnologia, mas não é como se a natureza fosse muito responsável nas mutações que gera também. Crianças nascem com doenças terríveis todos os dias. Quem teme que a ciência “brinque de Deus” ao editar o código genético humano claramente não sabe o trabalho que a natureza costuma fazer: puramente aleatório. Literalmente qualquer edição consciente do DNA humano é mais ética do que o processo natural.

O processo natural de mutações genéticas aleatórias que leva à evolução das espécies foi aperfeiçoado por bilhões de anos de seleção através de morte e reprodução, mas com certeza passa longe de ser um processo acabado: ainda existe muito espaço para melhorias. Sabemos que isso bate de frente com o consenso religioso, mas a verdade é que o ser humano passa longe de ser perfeito: quem já teve apendicite que o diga. Ainda temos ossos no nosso corpo dos rabos que nossos antepassados usavam para se pendurar nas árvores. O processo evolutivo nos colocou onde estamos, e por isso temos que agradecer, mas se quisermos resultados realmente bons, vamos ter que assumir o controle. Se você parar para pensar, se há alguma “intenção maior” na evolução humana, parece bem claro que deixar a gente no ponto onde conseguimos editar o DNA é uma indicação que esse é o objetivo final.

Eu adoro uma frase cujo autor nunca consigo definir: “Dado tempo suficiente, o hidrogênio começa a se perguntar de onde veio.” Hidrogênio sendo o átomo mais simples de todos, e o primeiro a surgir no universo. Desde o Big Bang, muita coisa teve que acontecer até aquele hidrogênio virar um ser humano consciente. Mas não se engane, tudo no seu corpo já foi um átomo de hidrogênio há alguns bilhões de anos atrás. Se você quer achar um senso de propósito na existência, a marcha da matéria até a consciência viva te dá um motivo poderoso. O hidrogênio só começou a pensar sobre sua existência depois de bilhões de anos de movimento e recombinações. O ser humano só começa a mexer no seu próprio DNA quando a tecnologia permite isso.

E como poderíamos fazer essas alterações? Bom, um dos caminhos é começar a melhorar nossas capacidades físicas e mentais. Algumas alterações genéticas criam pessoas com maior potencial físico. E esse potencial pode significar uma saúde mais resistente e uma maior propensão a se cuidar. Podemos definir uma faixa de altura ideal para que o mundo seja projetado com mais precisão (nada mais de ficar abaixando para entrar em porta ou pulando para alcançar prateleira de supermercado). Podemos melhorar os sentidos buscando as mutações mais eficientes, podemos trazer elementos da memória fotográfica que algumas pessoas possuem. Ou mesmo universalizar o acesso a mentes matemáticas poderosas.

Tudo o que um ser humano é capaz de fazer pode ser passado para próximas gerações, independentemente de parentesco. Claro que existem questões éticas aí: ninguém sabe o que a pessoa vai querer antes dela nascer, mas podemos presumir que no mínimo eliminar a chance de doenças genéticas horríveis vai ser algo bem-vindo pelas próximas gerações. Infelizmente é controverso, mas podemos eliminar coisas como nanismo ou Síndrome de Down quase que totalmente com edição de genes. Nada contra quem já tem, mas é um palpite pra lá de educado dizer que ninguém prefere ter uma condição dessas.

Podemos fazer ainda mais: se condições como sociopatia e psicopatia tem raízes genéticas e não são 100% derivadas do ambiente social, elas podem ser extirpadas da humanidade em algumas gerações. O que talvez tenha um risco, ainda não sabemos o quanto essas condições mexem com a evolução da vida em sociedade, perder psicopatas significa mexer muito na estrutura de poder da humanidade, por exemplo. Talvez eles realmente sejam os melhores líderes que tenhamos. Mas nada como a experimentação quando falamos de avanços científicos.

Tudo o que vem dos genes e não da sociedade pode ser alterado antes mesmo da pessoa nascer. Existe o risco dos padrões de beleza criados antes disso influenciarem o visual da humanidade depois da edição dos genes se tornar popular e barata o suficiente? Sim. Mas um bando de gente fazendo os filhos serem loiros de olhos azuis não causa um mal tão grande assim para a sociedade como um todo. Com a escolha da cor da pele e outras características puramente estéticas do ser humano sendo suficientemente popularizada, vai ficar bem difícil ser preconceituoso: você só vai saber a preferência estética dos pais daquela pessoa ao olhar para ela. O resto das opiniões que quase todos nós temos sobre raças vai começar a perder o valor. E podem ter certeza que se todos os pobres começarem a fazer os filhos serem brancos, a pele negra começa a se popularizar rapidamente. Provavelmente vamos ter modas acontecendo: ao invés de todos chamarem o filho de Enzo num período de uns 5 anos, todas as crianças vão nascer com a pele morena e o cabelo ruivo por causa de uma personagem de novela ou outra bobagem dessas.

A humanidade consegue se regular, as pessoas não costumam gostar de ser muito iguais umas às outras, o risco da humanidade se tornar um grande grupo homogêneo no DNA é muito pequeno. O que seria um problema de verdade: sem variação genética, todo mundo é suscetível às mesmas doenças e problemas. Uma humanidade de gêmeos idênticos morreria na primeira doença incurável. Mas é exagero pensar que editaríamos nossos genes para serem todos iguais, se podemos ver esse problema agora, vocês realmente acham que não vão ver no futuro? O problema de quase todas as histórias de futuros terríveis é que elas são baseadas na humanidade cometendo um erro tão gigantesco quanto previsível. Eu apostaria sem medo que desse mal nunca morreremos. Basta gerar alterações mínimas entre as pessoas se todas quiserem ser parecidas.

A tecnologia está só no começo, mas me parece óbvio que vai virar a norma em algumas décadas. Como quase toda tecnologia, precisa ser popularizada primeiro. Não digo que vamos estar criando superatletas com cérebros de gênio em 50 anos, mas com certeza já estaremos cortando fora algumas doenças genéticas (e para quem paga mais, um olhinho azul ou algo do tipo). E dado mais tempo, o novo ser humano vai usar uma seleção artificial ao invés da natural. Quem sabe quais caminhos poderemos seguir só usando o orgânico para evoluir? E embora absurdamente mais complexa, a edição de genes depois do nascimento pode ser possível: radiação já faz isso. Não sabemos como ainda, mas não sabíamos no passado muita coisa que fazemos diariamente agora.

O ser humano já deu o que tinha que dar na natureza. Está na hora de trazer a tecnologia para dentro, é um risco enorme deixar esse mundo cheio de máquinas e explosivos na mão de macacos pelados.

Para dizer que brincar de Deus é a brincadeira mais divertida, para dizer que os chineses já estão fazendo isso, e para dizer que os lacradores vão lutar até a morte para evitar que as pessoas possam ser bonitas e inteligentes: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Se não me engano os americanos já fazem filhos em laboratório já faz um tempo, só que não é muito popular devido a religião e por ser caro. Sou totalmente a favor das modificações genéticas, até porque se é possível melhorar o serumaninho médio, porque não fazê-lo? Acho que já chegamos num ponto da evolução onde precisamos cada vez mais de ajuda tecnológica pra avançar.

  • “para dizer que os chineses já estão fazendo isso” Eu me surpreenderia se não estiverem. País rico, que investe milhões em tecnologia, sem amarras éticas nem religiosas e sem ameaças de ser bombardeado por democracia americana.

  • Ainda tenho o pé atrás sobre o futuro e não ponho a mão no fogo pela humanidade, mas o Somir conseguiu me converter pra ser pró-edição genética. Anos atrás o Desfavor tinha debatido isso e me posicionei contra na época.

    E vamos combinar? Os mesmos que criticam o transhumanismo seriam os primeiros da fila pra encomendar filhos bonitos. Sem falar que eles ficam projetando as próprias inseguranças, nem todo mundo tem uma adoração por cabelo e olhos claros. Pra ser honesta acho mais provável as pessoas encomendarem filhas bronzeadas e bundudas, tipo Kim Kardashian, do que nórdicas “branquelas e sem graça”. De qualquer forma, seria divertido ver algumas pessoas tentando processar os próprios pais por não gostarem da aparência que eles encomendaram.

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