Rótulos desatualizados.

Eu tenho mais uma teoria: essa fase da humanidade de se prender em clubinhos ideológicos cada vez mais radicais vai ser apenas uma fase. Uma fase longa, mas uma fase mesmo assim. Por mais paradoxal que possa parecer, rótulos fazem menos e menos sentido com o passar das décadas, não é à toa que tanta gente está perdida e procurando qualquer porto seguro que puder encontrar.

Quando falo de rótulos, falo das mais diversas “tribos” nas quais podemos nos encaixar na vida. Alguns vem de fábrica, outros são mais dependentes de escolhas e circunstâncias da vida. Homem, mulher, branco, negro, hetero, gay, corintiano, palmeirense… todos rótulos. Categorias nas quais nos encaixamos e usamos para definir nossas relações com os outros.

Se você pensar no ser humano mais primal, não havia muita complexidade no seu ambiente. Nem mesmo muita diferença entre as pessoas. Demorou um bom tempo até mesmo para termos variações de cor de pele. Naquele tempo, o ser humano médio era bem mais médio. Tribos eram meio que indiferenciáveis da família, e essa era basicamente a diferença entre nós.

Por pressão seletiva, os humanos que se adaptaram melhor ao conceito de tribo acabaram sendo as bases para a população que viria depois. Tribos viraram cidades, nações… e ao mesmo tempo, descobrimos o valor da especialização. As tribos começavam a perder o sentido original, mas uma série de novos rótulos começaram a surgir, tanto que muitos sobrenomes ao redor do mundo são baseados em profissões. O que a pessoa fazia realmente impactava sua identidade.

Atravessamos os séculos, e esse modelo também começa a demonstrar sua fragilidade: a maioria das pessoas não é lá tão especialista. Talvez numa comunidade mais isolada ser carpinteiro criasse uma identidade sólida, mas numa cidade grande, você é só mais um entre centenas, quiçá milhares. Mas tudo bem, o estudo começa a ficar mais popular.

Pensadores deixam de ser raridade, e vivemos um avanço rápido no “pacote básico” de cultura do cidadão médio. Ideias políticas começam a invadir o campo dos rótulos intelectuais, criando mais e mais pessoas capazes de se identificar pelas teorias com as quais concordavam. Suas ideias podiam ser rótulos também.

E então, a humanidade passa por duas guerras terríveis e em questão de algumas décadas, evolui em todos os aspectos numa velocidade absurda. Se você olhar para o que a humanidade era e o que se tornou durante o século XX, talvez concorde comigo que a singularidade tecnológica já aconteceu: nunca a humanidade mudou e cresceu tão rápido.

Essa explosão de números, possibilidades, integração e comunicação também significou uma explosão de rótulos: no começo do século XXI, uma pessoa pode ser tantas coisas ao mesmo tempo que provavelmente explodiria a cabeça de um ser humano de alguns séculos atrás. Você pode ter uma profissão por ano, pode se dizer homem, mulher, pode aprender sobre basicamente qualquer coisa e discutir isso com gente do mundo inteiro.

Eu argumento que a geração dos Millenials foi a que mais ficou confusa com todas essas possibilidades. Seus pais ainda estavam resignados e/ou contentes com os rótulos de pai, mãe, católico, muçulmano, hetero, médico, pedreiro… coisas que consideramos mais tradicionais hoje em dia. Para quem veio antes dessa geração, havia um número limitado de rótulos para se identificar, e nem era tão opressivo assim porque faltava até a noção de outras possibilidades.

Cidadão nem considerava se assumir gay, cidadã nem se enxergava na vida sem ter filhos. Na melhor das hipóteses, podia escolher seu rótulo profissional, porque política e religião já estavam mais ou menos definidas pela família. O mundo explode em conexão e possibilidade em poucas décadas, e uma geração inteira (Millenials) dá de cara com um mundo que não é mais tão condutivo a ter os mesmos rótulos que seus pais e avós, além de serem criados num mundo com informação praticamente infinita.

Faz sentido que tenham pirado. O povo mais descompensado com questões de identidade está justamente nessa faixa etária de 20 e poucos até 40, tendo chiliques na rede social, tomando remédio faixa preta e morrendo de medo de ser cancelado. Tem tantos rótulos para chamar de seu que ficam nervosos com a escolha. Ninguém quer se colocar um rótulo do qual vai se arrepender depois, e pior, é uma geração que tem na cabeça a necessidade de se rotular, afinal, foram criados por rótulos ambulantes.

Mas vai ver como a Geração Z lida com isso: filhos de uma geração neurótica, já foram criados com informação ilimitada num mundo que nem sabe mais o que fazer com tantos rótulos. Se você fala com qualquer pessoa (criada em ambiente mais saudável) perto dos 20 anos de idade, vai perceber que vários dos rótulos que os Millenials ainda tinham na cabeça nem fazem sentido para eles. E daí ser gay, hetero, bi? Eles são as três coisas se quiserem. Seus amigos também.

Profissão? Sei lá, o que der na telha ou for necessário. Não pensam mais em termos de fazer uma coisa para o resto da vida, entendem que é normal ter várias formas de ganhar dinheiro ao mesmo tempo. Muita gente acha que essa geração herdou a lacração dos Millenials, mas não é assim que eu enxergo: apesar de alguns exagerarem, a maioria só considera que alguns comportamentos ruins que tínhamos antes não valem mais.

São menos racistas e homofóbicos, não porque eles são maravilhosos seres humanos, e sim porque quem veio antes se preocupava demais com esses rótulos. “Zoomer” ficando azedo com você por dizer algo que consideram transfóbico não está necessariamente querendo se exibir como uma pessoa superior, a pessoa simplesmente não entende por que você está cismando com uma bobagem dessas.

Nossa, Somir, então são todos melhores que a gente? Claro que não, são jovens idiotas que vão fazer idiotices como a gente fez também. Mas a neura com rótulos da geração anterior não “pegou” neles. E a geração que já está vindo depois da Z, que alguns já chamam de Alpha, é uma que eu estou curioso para ver: talvez todo o conceito de rótulos já não registre na cabeça deles. Talvez uma fase “tribal” ou outra como todos temos na adolescência, mas sem essa pressão social de sempre estar dentro de uma caixinha de elementos de personalidade.

Eu imagino que o caminho da humanidade vai desembocar numa total falta de compromisso com rótulos. Imagine o seguinte: você está no ano 2290, boa parte da sua vida acontece dentro da realidade virtual, não porque o mundo está horrível, mas porque a economia foi pra lá e as pessoas tiveram que seguir. Fazer uma cadeira virtual dá mais dinheiro que fazer uma real, por exemplo.

Seu corpo, suas opiniões, sua personalidade… todas coisas que podem ser alteradas com um clique. Faz sentido pensar em termos de homem, mulher, hetero ou gay se você passou sua criação brincando de trocar de sexo no mundo virtual? Como ser racista se todo mundo pode ser da cor que quiser, e mudar a hora que quiser? Como fazer senso de profissão se é basicamente sua criatividade que define quanto valor você consegue tirar de produtos e serviços virtuais?

As coisas não têm mais o peso que tinham. A sua imagem e a tribo que você pertence não têm o significado emocional que teriam para uma pessoa do mundo de hoje. O cidadão pode avatar humano ou mesmo ser um peixe com asas. O próprio rótulo de ser humano pode não ser relevante. E se inteligências artificiais dentro da simulação forem difíceis de diferenciar de outra pessoa? Talvez nem ter um corpo seja um rótulo útil.

Eu dou esse salto no tempo para dar um exemplo extremo de onde vejo a humanidade nas próximas décadas: rumo a um mundo onde quase todos os problemas que temos hoje com diferenças de pensamento e comportamento não sejam mais problemas. Eu imagino gente cada vez menos comprometida com um modo de ser, até porque a seleção natural deve dar conta de quem ficar muito travado.

A minha teoria vem da realização que os dias atuais, com tanta gente brigando por opiniões e filosofias (que mal entendem) é resultado direto do modelo de rótulos acabando. Quando as pessoas começam a perceber que não há mais a estabilidade de se permitir ser rotulado e tocar a vida assim, sem muito estresse, começam a se agarrar nos rótulos que ainda parecem ter força.

É o conservador que não quer casar dobrando a aposta na identidade do conservadorismo ao negar a ciência, é a lacradora desesperada por um relacionamento colocando fantasia de promiscuidade… é gente que perdeu a segurança sobre o que são por não ter mais pressão externa para ser de um jeito ou de outro e foi procurar por um rótulo bem forte para colocar no lugar.

“Posso não saber o que estou fazendo, mas pelo menos sei que voto no Lula ou no Bolsonaro.” Melhor do que nada para elas, presumo eu. E isso é só um exemplo superficial, de gente se agarrando a rótulos políticos para ter algo com o que se definir. Sei que soa intolerante hoje em dia, mas eu também enxergo rótulos pegos por desespero em muita gente que está trocando de sexo, como se isso fosse dar alguma certeza do que se está fazendo na vida.

Pode ser meu otimismo incorrigível, mas isso me soa como “dores do crescimento”. A humanidade mudou de estágio faz muito pouco tempo, e as pessoas não tiveram tempo de acompanhar. Do nada, quase tudo que era certeza para nossos antepassados não faz mais tanta diferença no presente. E tudo indica que vai fazer menos e menos sentido daqui pra frente.

Dada a possibilidade de usar rótulos como se fossem roupas, trocando de acordo com a vontade sem gerar muita reação externa, as pessoas tendem a seguir por esse caminho. Eu desconfio que os Millenials sejam a última geração dependente de rótulos, e, goste você ou não, logo logo eles começam a dar lugar para os Zoomers nas estruturas de poder.

Não sei quanto a você, mas eu realmente quero ver que bicho vai dar. Gente cada vez menos fanática, porque fanatismo não vai ter mais o mesmo valor para esse povo que vem por aí. Se eu estiver certo, é só aguentar o tranco por mais uns vinte anos…

Maldita geração, a minha. Mas, se eu não compreender os problemas deles, quem vai? Somos mais que um rótulo, e toda vez que você se vir preso a um deles, lembre-se que esse é um comportamento que já teve seu prazo de validade vencido. O mundo vai ser herdado por quem não se importa com as tribos que pertence, e tudo bem com isso.

Para me parabenizar por me assumir (eu me assumo lésbico), para dizer que é Millenial e se sentiu ofendido, ou para dizer que é Zoomer e mandar só um “meia hora” pra mim: somir@desfavor.com

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Comments (18)

  • Existe a possibilidade de que os rótulos estejam bagunçados por que para exercê-los conscientemente é necessário algum estudo e capacidade cognitiva.

  • Bacana tua análise, Somir, mas não sou tão otimista como tu não, até porque mesmo que se passem tantas gerações, a tendência natural do ser humano é se rotular, se agrupar, rolar identificação com algum grupo, trino, enfim.

    Pode ser que essa geração de milenals tenha lá outros rótulos diferentes da gente, pode ser que até mudem a forma com que interpretam os rótulos, mas nem por isso eles deixam de existir, mesmo entre eles. Exemplo básico disso é essa coisa de eles chamarem a geração anterior de “cringe”. Se isso não é rótulo, já não sei mais o que é.

  • Até mesmo a noção de “mente aberta” logo perderá o sentido. Mente aberta do quê? Com o que ela estava presa antes? Vão te encarar perguntando “do que você está falando?”.

  • Tomara que você esteja certo, mas se parar pra analisar as estatísticas, a população fanática (leia-se reliosa) é a que mais cresce se a gente for analisar pelos rotulos atuais (relioso, ateu e atoa).
    Para cada Sally e Somir que não tem filhos, tem 10 Djennyfer e Isaías procriando.
    Talvez demore muito mais do que 20 anos.

    • Olha para as igrejas evangélicas que mais ganham seguidores… Igreja do Sagrado Shortinho Enfiado no Cu e Bebedeira Toda Noite dos Últimos Dias. Religião está se degenerando em busca de lucros. Eu aposto que logo logo os muçulmanos caem também.

  • Sei não, hein. O que mais vejo no Linkedin é jovem engolindo essa bullshit de “cultura corporativa” e se rotulando como se o emprego definisse sua vida inteira, como se a empresa fosse uma família, e não apenas um meio de pagar as contas em troca de dar o seu tempo e sua força física e mental.

    • Porque eles ainda tem chefes no mínimo Millenials. Demora um tempo para os Zoomers chegarem nas posições de poder e começarem a bagunçar essa lógica. O movimento “antiwork” está crescendo a olhos vistos…

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