Pílula azul.

Redpill, blackpill, sbrublespill… uma cena interessante do filme Matrix deu nome para vários movimentos culturais com base na internet, cada um pregando que o mundo é na verdade de um jeito e que o certo é adaptar suas atitudes e opiniões de acordo com ele. E como já estamos em estágio terminal de mistura entre cultura online e offline, vale muito a pena discutir o problema fundamental de todas essas teorias de funcionamento da realidade: no final das contas, todo mundo está escolhendo a pílula azul da alegoria do filme.

No filme, o protagonista escolhia entre enxergar o mundo como ele realmente é com a pílula vermelha ou voltar à ilusão do mundo virtual com a pílula azul. Sair da Matrix ou ficar nela. Sair significava quebrar com sua visão de mundo e ter que aprender tudo de novo num mundo que estava sendo escondido dele pelas máquinas.

Eu já expliquei antes aqui que lá nos primórdios dessa história de redpill era uma coisa bem nazista de “enxergar que os judeus controlavam o mundo”, mas que a coisa foi se transformando de tal forma a significar o que a pessoa quisesse. Hoje em dia pode ter esse significado para um grupo específico, mas vemos isso muito mais relacionado com interesses mais banais do ser humano: redpill virou meio que sinônimo de homem reclamando que mulher não presta.

Cultura é algo em constante transformação, cada pessoa que participa dela acaba colocando suas ideias no meio da confusão. Num mundo com tantas ideologias disponíveis e tanta gente com voz para difundir conteúdo, era esperado que as coisas começassem a ficar mais e mais genéricas. Como fazer uma teoria que explica o mundo todo sobreviver à visão de milhares de pessoas?

Bom, a natureza encontrou um jeito: eu estou percebendo que no final das contas, todo tipo de teoria de funcionamento da realidade que se espalha pela internet e por tabela, a vida real, acaba tendo a mesma característica: reforça a ideia que a pessoa já tinha antes de lidar com ela. Tem problemas com o sexo oposto? A culpa de tudo é do sexo oposto. Tem dificuldades de lidar com o choque cultural vindo dos jovens? O mundo está ficando degenerado e precisa de mais *insira sua religião aqui*. Tem dificuldades de adaptar suas vontades ao que a sociedade espera? O mundo é feito de opressores.

Se a sua ideologia de estimação é baseada na percepção que você já tinha sobre o mundo, isso não quer dizer que no final das contas você tomou a metafórica pílula azul? Se você não precisa lidar com uma nova realidade a partir dessa escolha, você continua dentro da Matrix. Se acordar para a realidade é acreditar nas mesmas coisas que você já estava inclinado a acreditar, a pílula que você tomou era de açúcar… um placebo.

Conveniente demais que o “mundo real” seja um reflexo perfeito das crenças que você já tinha, não? Esses papos de redpill, blackpill e afins são continuações óbvias de ideias preconcebidas sobre as coisas ruins que acontecem na vida serem: 1 – culpa dos outros, 2 – inevitáveis. Se for culpa dos outros, sejam os outros mulheres, judeus ou reptilianos, você não fez nada de errado. Se as desgraças forem inevitáveis, as suas decisões tiveram menos peso no estágio atual da sua vida.

Dois conceitos, que por mais derrotistas que sejam, tem seu apelo em reduzir o incômodo comum que sentimos com a vida. As coisas dificilmente estão do jeito que você queria que estivessem, e é atraente a ideia de uma explicação simples para isso. Mas ao mesmo tempo, é uma grande armadilha: achar que descobriu como o mundo funciona com a sua nova ideologia é mais do que arrogância de explicar a infinita complexidade da vida humana em algumas frases de efeito, é uma forma de se manter dentro de qualquer ilusão que você criou.

A imensa maioria das teorias de como a sociedade é como é circulando pela internet não passam de formas de pegar toda a realidade e moldar ela ao redor do que você já está vendo. Ou, numa expressão popular: para quem só sabe usar martelo, todo problema é um prego. Desde a mais rasa pílula vermelha na rede social até a mais complexa teoria de interseccionalidade acadêmica, a ideia é que o universo gira ao redor do seu umbigo.

Você está sendo enganado e/ou oprimido. E o mundo todo funciona de forma a manter as coisas dessa forma. Até por isso da mais extrema direita à mais extrema esquerda, existe uma ideia de revolução violenta com a instalação de um governo totalitário, perfeito e inquestionável.

Mas, pensando bem… qual é a probabilidade de mais de 8 bilhões de pessoas estarem vivendo num sistema que combina exatamente com a sua percepção das coisas? A tal da pílula mostrou o mundo como era ou mostrou o mundo de uma forma que combina com o que você já esperava que fosse? É por isso que eu digo que a partir do momento que você começa a pensar em escolha entre pílulas coloridas, todas são azuis.

A realidade é o que você faz dela, e isso é mais prático do que um conselho de guru: a realidade é o resultado da sua capacidade de percepção dela. Se você expande sua percepção, ela expande junto. Se você acredita que já resolveu como tudo funciona, o universo fica daquele tamanho indefinidamente. A própria ideia de uma informação específica ser a resposta de tudo é uma forma de colocar limites na realidade.

Repito: todas as pílulas são azuis. Não tem atalho para fazer senso de tudo o que acontece com você e ao seu redor. Quanto mais você estuda sobre os mais diversos campos de conhecimento humanos, mais percebe que a complexidade é interminável. Você responde uma pergunta só para descobrir mais dez delas. Não estou advogando que você desista de encontrar essas respostas, apenas que não caia na armadilha de acreditar que finalmente chegou na última delas.

Se realmente fosse possível encontrar alguma situação em que uma percepção específica sobre o mundo fosse a chave para entender tudo, os cem bilhões de macacos pelados que já passaram pela vida antes da gente teriam achado. E isso teria se espalhado sem parar entre as pessoas. Estar certo sobre algo verificável é a base da nossa tecnologia e muitos dos nossos costumes. Podemos fazer várias besteiras, mas a base do conhecimento humano passada de pais para filhos está cheia de informações básicas que seriam muito complicadas de aprendermos sozinhos.

Em média, as coisas mais simples sobre o funcionamento do planeta e da nossa sociedade já foram aprendidas e adicionadas ao conhecimento compartilhado da espécie. Estamos numa fase de problemas muito complexos em ambas as áreas de tecnologia e comportamento, mas com a expectativa irreal de pílulas mágicas que nos abram a cabeça para a realidade.

Já estamos na realidade. É isso aqui. Se ela vai além do que vemos agora é toda uma outra discussão, mas achar que o mundo no qual você vive não é parte dela beira à insanidade. Tem muita coisa para aprender e experimentar nesse mundo, e – com a graça da liberdade que nem todos podem ter, mas acredito que muitos de vocês tenham – se você quiser. Bizarro colocar tanta energia em tentar fazer senso da realidade com respostas enlatadas e não se tocar que está só pintando as paredes da sua prisão mental com outras cores.

É complicado, é confuso, tem milhões de caminhos diferentes que ninguém tem certeza se são os certos, só fingem que tem. E é assim mesmo. Curiosamente, fora do filme a resposta mais lógica é não tomar pílula nenhuma. Primeiro que ambas são a mesma coisa com alegorias diferentes, e segundo que tomar a pílula te coloca obrigatoriamente numa ilusão de respostas simples e controle sobre tudo o que acontece ao seu redor.

Se você tomou a pílula, ela era azul.

Para dizer que eu estou ficando bom nisso de fingir que sei do que estou falando, para dizer que nunca viu o filme e acha que redpill é coisa de homem que não transa, ou mesmo para dizer que sua pílula não é azul porque você acredita que não é azul: somir@desfavor.com

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