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Colunas

Trabalho hardcore.

Elon Musk mandou um e-mail carinhoso para seus funcionários do Twitter, dizendo que quem não estivesse disposto a trabalhar de forma hardcore e fazer jornadas longas poderia pedir demissão ali mesmo. Ao que tudo indica, os funcionários não só não toparam fazer um juramento de esforço total como ainda parecem estar dispostos a aceitar a oferta de demissão. Quem está certo?

Está certo quem você quiser que esteja.

Mas, se eu tivesse recebido um e-mail desses, eu acho que no mínimo começaria a procurar outras oportunidades. Sim, o Twitter é um antro de pessoas de cabelo colorido que vão morrer jurando que Elon Musk é literalmente o Hitler; mas mesmo não sendo um completo retardado nesse nível, eu entendo o incômodo com a mensagem recebida.

Porque, cá entre nós… pau no cu do Elão! Pessoas são contratadas para exercer uma função, e essas funções são baseadas em tempo disponibilizado para o trabalho. Qualquer problema que pode ser resolvido com horas extras é um problema do empregador, não do empregado. É função do gerente garantir que os processos sejam realizados dentro das horas contratadas da força de trabalho.

Tanto é problema do empregador que hora extra é sinônimo de pagamento extra para o funcionário. Quer dizer, era… enquanto o culto do Linkedismo se espalha por aí, virou até sinônimo de orgulho para o cidadão médio dizer que trabalha muito mais do que o horário comercial. “Olha como eu sou superior, estou trabalhando de graça e abdicando da minha vida!”

O triste é que muita gente cai nessa. Acha que dedicação total e escolha por mais e mais horas de trabalho é elemento de autovalorização. Triste porque trabalhar demais não é mais meio para um fim, é o fim. E como eu sinto que essa recente onda de conservadorismo está contaminando demais a sociedade, acho saudável repetir algo que seus antepassados já sabiam: gaste a energia que você tem. Não trabalhe à toa.

Virou moda repetir aquele mantra da direita americana de que quem trabalha mais é uma pessoa melhor, que querer férias e descanso é coisa de comunista que vai falir seu país. E do outro lado, uma visão infantilóide sobre o trabalho, como se o universo tivesse obrigação de dar dinheiro para você fazer o que gosta de fazer. Como sempre, falta representação para a parcela moderada da população.

Como hoje eu estou mais puto com a turma do “trabalhe até morrer pelo seu chefe”, estou focando mais no meu lado comunista. Mas calma, podemos fazer isso sem atacar a burguesia (diretamente). É muito importante entender por que estou dizendo que essa coisa de exigir dedicação hardcore é uma bobagem: quem está trabalhando num ambiente organizado entrega muito mais resultados do quem está trabalhando numa empresa toda bagunçada.

Essa mentalidade de achar que as pessoas precisam trabalhar mais e com mais afinco é o típico caso de tapar o sol com a peneira. Vivemos num mundo assustadoramente desorganizado, mesmo quando falamos do chamado primeiro mundo. Empresas vivem com sistemas desatualizados, mecânicas improdutivas, pessoas em posições erradas… todas as coisas que esticam o tempo de produção de valor.

Até mesmo indústrias muito mecanizadas sofrem com erros de gestão e manutenção, produzindo as coisas de forma muito mais lenta e confusa do que precisariam. Como publicitário, eu olho para dentro de várias delas, e há muitos anos. A coisa que eu mais vejo é desorganização básica. A empresa até consegue entregar produtos e serviços, mas você percebe que os processos dentro dela ficam enroscando em problemas o dia todo.

Cadeias de produção com gargalos, onde um setor mal administrado atrasa todo mundo; coleguismo colocando gente incapaz em posições de poder; egos, teimosia e falta de respeito… e algo que me incomoda mais do que tudo: incompetência dos processos de RH. Sim, os sacerdotes e sacerdotisas do Linkedismo precisam receber sua parcela de culpa.

Muita gente é contratada para realizar trabalhos que precisa descobrir como funciona na hora de trabalhar, outros são contratados com salários ridiculamente incompatíveis com as responsabilidades, são colocados numa armadilha de improdutividade assim que chegam na empresa.

Mas arrumar seus processos e dar atenção para a definição das competências exigidas de cada função parece muito trabalhoso. A solução é esse câncer ideológico de “trabalhar duro”. A pessoa tem que se matar de trabalhar em longas horas para dar conta de expectativas completamente erradas. O chefe médio tira da cartola uma meta de desempenho e vive puto da vida porque não consegue bater.

Via de regra, a pessoa que está trabalhando muito está trabalhando errado. Como eu sou meu chefe, eu vejo os dois lados da moeda: trabalhos para os quais eu tenho o conhecimento e as ferramentas certas saem em poucos minutos, trabalhos que exigem conhecimento extra ou ferramentas que não tenho se arrastam por horas e horas, especialmente por causa do desânimo natural que a percepção da própria incompetência gera. Trabalhar mal demora mais também por motivos psicológicos.

Como precisamos das coisas prontas, dá-se um jeito de entregar. Sem conhecimento e ferramentas certas, todo trabalho vira um esforço enorme para passar um quadrado por um buraco redondo. A pessoa que se esforça muito pode ser tanto alguém disciplinado como um imbecil teimoso. A linha é tênue, e num mercado de trabalho onde muita gente enche a boca para falar mal da ética de trabalho alheia, é fácil se confundir.

Pode ter vácuo dentro do crânio, mas se pagar o preço de passar a vida enfiado num escritório, se torna valioso no mercado de trabalho. Não que não tenhamos espaço para gente muito disciplinada e raçuda no mundo, dependemos delas, mas ao ficar glorificando hora extra não remunerada, estamos dizendo que só elas servem.

Não é verdade. Elas têm que ter o suporte de gente que tem horror a ficar um minuto a mais no trabalho do que o necessário, gente que fica pensando em formas de acelerar o trabalho, de tirar obstáculos, de otimizar tudo para não trabalhar demais. A humanidade cresceu unindo mentes, não gerando um exército de clones obedientes.

Os funcionários do Twitter, por mais que você não goste deles, foram contratados para trabalhar no horário deles e recebem por isso. É meio como vender uma casa para alguém e depois a pessoa dizer que quer um carro na garagem também para fazer o pagamento. É injusto. Quem quer horas extras de trabalho tem que pagar por elas, e dentro das regras do mercado de trabalho. Mais: tem que definir jornadas de trabalho maiores para todo mundo saber onde está se enfiando. O golpe está aí, cai quem quer.

Empresa que diz para o funcionário se esforçar mais do que o combinado é empresa de explorador. E talvez mais triste: é empresa mal administrada. Empresa que gasta tempo em coisas desnecessárias, que perde o foco. As empresas de Elon Musk são grandes e chamativas, mas tem problemas como todas as outras. Não tem nada de mágico na figura do bilionário sul-africano, ele é um chefe exigente que vai até o limite do possível para arrancar mais valor de cada funcionário.

Só que vai pelo caminho do esforço extra. Pode até funcionar, mas faz todo um negócio funcionar sob pressão, faz com que o exagero seja a norma e que os defeitos de organização fiquem escondidos atrás do suor de uma parcela muito esforçada de pessoas. Sim, o mercado é livre, trabalha quem quer, mas se todas as empresas ficarem nessa fixação dos 110% de empenho, não vamos nos esforçar para simplificar processos e reduzir a taxa de problemas.

O que no final das contas é dar muita atenção para a última parte otimizável do trabalho. Você só tenta aumentar a eficiência de uma peça depois que a máquina toda está bem configurada, senão aquela pobre engrenagem vai superaquecer sem ganhar quase nenhuma velocidade no processo final. Se você não consegue gerar lucro seguindo as regras que combinou na contratação dos seus funcionários, você é uma merda de um empresário, isso sim.

Tem que arrumar um monte de coisa antes de ir exigir de pessoas aleatórias que abdiquem do seu tempo livre para te dar mais dinheiro. Mas como não falta otário nesse mundo para defender bilionário, eu sou pior que o Stalin ao dizer que o dono de empresa tem que ser mais competente e esforçado antes de encher o saco dos funcionários que ganham muito menos.

Essa ética de trabalho doentia é exigência de gente escrota ou acostumada a trabalhar com baixo grau de eficiência. O que você faz bem você faz com uma boa estrutura e regras claras, e o que você faz bem você faz muito mais rápido. Ética de trabalho hardcore é golpe.

O pior é que gente que entrega ideias de como acelerar, otimizar e simplificar processos ou é tratada como preguiçosa, ou é punida com mais e mais responsabilidades, afinal, o imbecil que quer trabalho hardcore dos outros morre por dentro se vir um funcionário rendendo bem sem refletir o seu próprio grau de estresse inútil.

Sim, eu sei que o Twitter deve ter muito encostado e gente em comitês de valorização de muçulmanos transexuais da Rússia, mas é o trabalho da gerência cortar funções inúteis e perceber quem está trabalhando menos do que o combinado. Tocar o terror em todo mundo é se livrar da própria responsabilidade institucional, com o custo de emputecer muita gente que provavelmente faz certinho o que lhe é cobrada de fazer.

Como sempre, serviço malfeito sempre volta para dar mais trabalho no futuro. Agora ele que aguente a revolta da equipe do Twitter.

Para dizer que eu odeio os ricos, para dizer que o texto está atrasado, ou mesmo para dizer que ainda é fã do Elão: somir@desfavor.com

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Elon Musk, mercado de trabalho

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