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Colunas

Pipocando.

Outro dia desses eu fui apresentado à obra de MC Pipokinha. Para quem não sabe, é uma funkeira que ganhou fama recente por ser ainda mais ousada que suas competidoras. Letras mais pornográficas, danças ainda mais sugestivas, shows ainda mais selvagens… aonde isso vai parar?

Não… sério… aonde isso vai parar? Não é aquela pergunta retórica tradicional, de gente que está reclamando por ter seu senso de moral confrontado, é uma dúvida honesta sobre o que o futuro do entretenimento tem a nos oferecer. A bola da vez nada mais é do a culminação de um longo processo de “despuritanização” da sociedade ocidental.

Lembra do “É o Tchan”? Aquilo era a baixaria das baixarias no final dos anos 90 do século passado. E eram duas mulheres de shortinho rebolando pra cima e para baixo. A cena do funk em 2023 faz aquelas danças e trocadilhos baianos do passado parecerem música sacra em comparação. Não tem mais Cumpádi Whashington gritando “olha a cobra”, as letras de músicas cada vez mais populares entre diversas faixas etárias são indiferenciáveis de um roteiro de filme pornô.

Nem é um juízo de valor, é uma constatação. Isso aconteceu. Primeiro nas periferias cariocas, e agora nos fones de ouvido de adultos e crianças espalhados por todo o Brasil. Se você conhece menores de 18 anos, eles provavelmente lidam com naturalidade com as maiores baixarias cantadas, afinal, cresceram ouvindo isso. Eu acho que musicalmente é uma porcaria, mas aí é questão de gosto. Meus pais gostavam de músicas diferentes das que eu gosto. Vida que segue.

O que me chama atenção é um ponto de não retorno na apelação desse tipo de música e artista. A MC Pipokinha está perigosamente perto de ser uma atriz pornô, por exemplo. Novamente, sem juízo de valor: não é sobre virar uma atriz pornô ser o problema, é sobre a fina linha que a separa atualmente. Ela vai precisar cruzar essa linha para continuar fazendo sucesso? O que mais você tem a oferecer quando sua música depende de performances altamente sexualizadas para chamar atenção?

E mais: agora que ela está tão perto de cruzar a linha, como fica o mercado para outras mulheres querendo usar o ângulo da sexualidade para formar sua imagem comercial? Faz muito tempo que estamos vendo mulheres ficando famosas por dar um passinho a mais nesse sentido. E mais um, e mais um, e mais um…

Tudo sob a presunção de liberação sexual feminina. Claro, homens fazem funks muito pornográficos também, mas não tem uma imagem de empoderamento para aliviar o impacto das críticas e deixar portas abertas na grande mídia. Só que eu começo a desconfiar que não tem muito mais para onde ir, pelo menos para elas, nessa sequência de sexualização da música e das danças antes de cair em outro mundo, o da exploração sexual explícita. Esse, com suas próprias regras e virtualmente nenhuma exposição midiática.

Reforço que a pergunta não era retórica: eu não sei o que vai acontecer nesse mercado da nova música popular brasileira. Porque se aprendemos alguma coisa com o mercado do sexo nas últimas décadas, é que ele parece não ter fim: assim que os estúdios de pornografia começaram a fechar, iniciou-se a era do OnlyFans e similares. A demanda por mulheres dispostas a vender seu corpo ou a imagem do seu corpo não encolhe, mesmo com toneladas de conteúdo grátis disponíveis pela internet.

O que acontece com as gerações criadas nessa transição entre um estilo musical e pornografia? Elas vão entender música como nós, mais antigos, entendíamos? Não se esqueça que se você vive na bolha da classe média ou alta, não está vendo a prevalência absurda da música pornográfica entre a maioria da população brasileira. O grau de apelação é altíssimo e não acho que tenha muito mais o que fazer dentro do universo da música.

O que uma menina que cresceu com funk proibidão e “packs de nudes” ao seu redor vai entender do mundo do entretenimento? Especialmente num mundo onde as sociedades mais avançadas já estão alérgicas a qualquer repressão à liberdade de expressão ou sexualidade femininas. Podemos até imaginar que o crescimento do fanatismo religioso tenha alguma coisa a dizer sobre isso, mas até onde eu sei, esse povo mais pobre tem os hinos evangélicos e os funks baixaria no mesmo pen-drive. Depois do culto, o baile.

Eu acho que vamos ver coisas impressionantes nesse sentido de mistura entre música e pornografia nos próximos anos. Quando o jogo é jogado na base da apelação ilimitada, faz muito sentido unir as duas coisas. Melhor do que um hit de verão é um hit de verão com mulher pelada. Vende-se som, imagem e experiências sexuais no mesmo pacote. Complicado concorrer só com um violãozinho, não?

Vejo dois cenários: no primeiro, a inevitável pornografia musical pega todo o estigma da pornografia habitual e o mercado precisa se reinventar com músicas e artistas menos explícitos; ou o estigma é derrubado pelo poder e popularidade da música popular. Ao invés da pornografia sujar a música, a música “limpa” a pornografia. E com a carreira de modelo de OnlyFans se tornando tão válida para tantas mulheres, o que as próximas gerações vão entender dessa bagunça toda pode ser bem surpreendente.

Eu gosto de ver o circo pegar fogo, não tenho filhos para sofrer com consequências negativas, então vou observar isso com curiosidade. Tem algo de inerentemente bom em desfazer essa relação doentia da humanidade moderna com sexo, ranço de fanatismo religioso que nem é tão antigo assim, pouco mais de dois ou três séculos. Historicamente o ser humano sempre foi bem mais desencanado com nudez e sexo do que é agora. Tem espaço para muita coisa deixar de ser problema. O puritanismo foi um erro.

No sentido oposto, tem algo de inerentemente ruim em deixar instintos humanos primais correrem totalmente soltos. A gente ensina criança a não ser compulsiva com o que gosta por um motivo. Primeiro porque frita os receptores de dopamina do cérebro e te leva para um caminho terrível de saúde mental, e depois porque o vício leva a todo tipo de comportamento perigoso em geral.

Não estou pensando apenas numa possível degeneração da moralidade média do ser humano do futuro, e sim no resultado prático de perder o senso de moderação. Uma sociedade sem tabus sexuais, mas que ainda prega autocontrole, ainda tem tudo para funcionar direito. Mais peitos e bundas de fora, mas pelo menos uma ideia ainda saudável sobre não viver em função de um instinto ou outro. Eu não vejo nada de terrível numa relação mais relaxada do ser humano com o sexo em geral.

Dito isso, se o exemplo que vier da indústria do entretenimento for esse de acabar com os limites do “aceitável” na sexualidade em busca de mais cliques, ingressos e assinaturas, ainda mais com uma justificativa ideológica de liberação sexual feminina, será que a sociedade vai perceber a armadilha na qual está se enfiando?

Porque de uma forma ou de outra, temos suporte científico na luta contra os excessos em relação a alimentos e drogas danosos ao corpo humano. Tem gente lutando contra o açúcar, contra as gorduras, contra estimulantes e relaxantes… tudo com base na ideia de que o corpo e a mente precisam de regulação para se manterem saudáveis.

Quem está lutando contra os excessos no campo da sexualidade? Religiosos e conservadores. Gente que faz isso por motivos tortos. E enquanto for essa a resistência à “pornografização” do entretenimento, é bem provável que ela continue acontecendo. Lembrando que muitas vezes isso é um ponto cego na visão até mesmo de evangélicos hardcore, que viram a chave entre repressão e indulgência sem pensar. São contra quando acham que vão ser julgados pelos seus gostos, são a favor quando sentem que não vai ter repercussão.

Nessa insanidade entre um puritanismo monoteístico relativamente recente e os números do sucesso de entretenimento cada vez mais pornográfico, o tema passa abaixo dos radares da maioria de nós. A repressão pelos motivos errados não só é fraca demais para gerar resultados reais, como também tira o foco da parte prática. Tem motivo para achar esse caminho à lá MC Pipokinha problemático, e não tem nada a ver com querer que mulher use burka. É o mesmo motivo de termos aprendido a controlar o açúcar ou reprimir o uso de tabaco, por exemplo. Se ignorarmos os resultados práticos desses comportamentos, eles levam a uma diminuição generalizada da saúde do ser humano.

Não acho que essa realização vem tão cedo assim, a humanidade parece que vai chafurdar muito mais na sexualização excessiva da indústria do entretenimento, especialmente para cima de pessoas mais vulneráveis como os pobres, e eu vou observar isso espantado. A linha que eu previ que seria cruzada alguns textos atrás sobre esse mesmo tipo de tema está prestes a ser cruzada. Deram mais um passinho.

Depois disso, vai ser fascinante ver o caos da indústria pornográfica vindo feito um tsunami para cima da cultura humana em geral. E algo me diz que as mulheres vão ser as maiores vítimas… espero estar errado, pelo bem delas (e da humanidade em geral), mas não acho que esteja.

Enquanto isso, vou ver o fascinante mundo do funk imaginando um narrador de documentários sobre a natureza na minha cabeça.

Para dizer que esse foi um texto raiz meu, para dizer que eu devo ser um incel por não achar tudo isso lindo (eu acho curioso, serve?), ou mesmo para dizer que o patriarcado vai se vingar com força: somir@desfavor.com

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comportamento, música, pornografia, sociedade

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