Desfavor de Carnaval

Para comemorar o Dia do Axé na República Impopular do Desfavor, Sally e Somir passarão uma semana reclamando do Carnaval. E hoje já começamos com uma discussão profunda: de todos os desfavores dos quais a data é feita, um deles incomoda mais cada um dos autores. Os impopulares desfilam suas opiniões.

Tema de hoje: qual é o pior desfavor do Carnaval?

SOMIR

Talvez eu já tenha falado isso em algum momento, mas não custa repetir: o pior do carnaval é a bebedeira. Provavelmente, o pior da humanidade, disputando de perto com a religião. Álcool é a droga mais usada no mundo, a com mais viciados e que mais contribui para mortes e sofrimento até hoje.

Meu argumento aqui não é defender a proibição de bebidas alcoólicas, mesmo que não tivesse uma simpatia pelo libertarianismo, ainda acharia que não é uma boa estratégia resolver o problema com uma canetada. O ser humano precisa aprender a lidar com a substância, e não se aprende nada com leis aleatórias. Existem níveis relativamente saudáveis de consumo da substância, e bebedeiras esporádicas não são sinônimo de alcoolismo. Eu entendo tudo isso.

Mas continuo achando que a glorificação da bebedeira carnavalesca é um dos maiores desfavores da sociedade brasileira. Outros países têm suas datas de “desculpa social” para se embriagar, mas que o desfavor da Alemanha lide com a Oktoberfest, estamos na versão tupiniquim e o principal culpado por aqui é o Carnaval.

Porque não é só sobre a substância, é sobre a mentalidade que vem antes, durante e depois do seu consumo. É um péssimo sinal que tanta gente precise estar com o cérebro entorpecido para se divertir, um misto de repressão de fundo religioso com algo ainda mais terrível: falta de imaginação e capacidade de encontrar passatempos. Quanto mais limitada sua mente, menos coisas você consegue fazer com ela, simples assim.

Uma pessoa que está com o cérebro suficientemente desenvolvido pode escolher encher a cara para curtir a sensação e a desinibição, mas o brasileiro médio parece depender do abuso de álcool para não se afundar no tédio do vazio mental. Não vou negar que, eventualmente, eu gosto da sensação de beber um pouco mais. Mas jamais fiquei sem alternativas. Sempre foi uma opção entre várias.

Me preocupa sim que a cultura carnavalesca reforce a ideia de que a pessoa depende de bebida para se divertir. Coloca diversão numa caixinha muito específica de torpor mental, promiscuidade e redução de senso de perigo. Como se só isso pudesse te fazer esquecer os problemas da vida. Por sorte, o álcool não é viciante o suficiente para tornar a maioria da humanidade em alcoólatras, mas a quantidade de gente que usa a bebida como muleta para distrair a mente é preocupante sim.

Se você passar a vida acreditando que bebida e diversão são uma combinação obrigatória, provavelmente não vai desenvolver mais capacidades mentais, ou vai ficar achando que pensamento, concentração e aprendizado são as partes “chatas” da vida. Não é nem uma coisa, nem outra. Ninguém é obrigado a beber ou a não beber, mas é terrível que alguém não perceba que tem opções.

O Carnaval é tão baseado na ideia de se deixar levar pelo momento que a indústria da bebida conseguiu misturar o conceito de embriaguez e felicidade na mente da maioria do povo. Especialmente nas pessoas mais pobres, com menos acesso a outros tipos de entretenimento. E não é como se as pessoas abusassem do álcool só no Carnaval, essa mentalidade se espalha ao redor do ano, com essa data servindo como reforço da mensagem.

E é claro, temos o problema do durante: gente bêbada é um imã de tragédias. Ficam mais violentas, mais irresponsáveis… tudo sob a presunção social de estarem se divertindo. O número de acidentes de trânsito dispara no Carnaval, e isso é totalmente relacionado ao número de motoristas embriagados nas ruas. Eu entendo o que a Sally vai dizer sobre a questão da aglomeração, mas eu acredito que estar alcoolizado vem antes de tudo na hora de definir o problema fundamental com o Carnaval.

Seria muito mais chato sóbrio? Provavelmente. Mas isso meio que mostra como é um festival chato de gente fedida escutando música ruim. Ficar bêbado para encarar um programa é sinal de que é um bom programa? Tire a bebida do brasileiro e ele morre de desgosto, pelo visto. Estão se espancando, matando, passando doenças e engravidando por aí porque o entretenimento preferido deles é tão merda que precisa estar fora de si para curtir…

É um ciclo de insanidade que mantém muita gente presa na ideia idiota que as pessoas precisam de muletas para tocar sua vida. Uma indústria inteira baseada em tolerar na base da embriaguez o que se vende como diversão. O bêbado (e cada vez mais a bêbada) fica perdido da multidão, se aliviando no meio da rua, lambendo pessoas aleatórias… e não consegue enxergar nenhuma outra forma de estimular mente e corpo.

Bebida é um problema social, a substância inanimada não é a culpada. O álcool não se força goela abaixo das pessoas, mas as pessoas ao seu redor sim, talvez morrendo de medo que alguém esteja se divertindo de outras formas. Afinal, se alguém pode se divertir sem bebedeira, quer dizer que pode se divertir em diversos outros ambientes e situações que o bebum habitual não consegue.

Perceber essa limitação deve ser assustador. Mais gente deveria tomar esse choque de realidade, mas infelizmente ainda temos datas como o Carnaval para enfiar isso debaixo de um tapete de felicidade etílica e reforçar a ideia de que só o escapismo químico pode tornar essa vida mais tolerável.

O povo tem muitos ópios. Será que não é hora de começar a olhar para a fonte dessa dor toda?

Para dizer que vai ler quando passar a ressaca, para dizer que somos chatos, ou mesmo para dizer que percebeu a nova desquete: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o pior desfavor do carnaval?

Tantas opções, fica até difícil escolher. Na minha opinião o pior é o aglomeramento.

Apesar de achar um grande desfavor qualquer coisa relacionada ao carnaval, acredito que o que potencialize tudo seja o aglomeramento. Um cecê é ruim, 10 mil é pior. Um bêbado é ruim. 30 mil é pior. Percebem o raciocínio? A coletividade amontoada torna tudo muito mais insuportável, inclusive algo que já é insuportável por si só, como é o caso do carnaval.

Se fosse um ou dois de cada desfavor (fedor, bebedeira, etc.) seria desagradável, porém tolerável. Mas como vem em massa, fica potencializado. O carnaval é, em essência, um desfavor massivo, em bando, coletivo. Uma pessoa urinando na rua é desagradável, 50 mil pessoas urinando na rua é insuportável.

Se você pensar bem, verá que não acontece nada muito fora do comum no carnaval: no Brasil, o ano todo tem promiscuidade, bebedeira, baixaria, falta de respeito, barulho, música ruim, traição e calor. Não é algo reservado para apenas uma semana do ano. Mas, na semana do carnaval, isso se torna aberto, ostensivo e coletivo.

O que torna a data especialmente hedionda é que todos estes desfavores vêm na forma de aglomerações: muitas pessoas sendo promíscuas, muitas pessoas bêbadas, muitas pessoas fazendo baixarias, muitas pessoas faltando com o respeito, muitas pessoas fazendo barulho, muitas pessoas escutando/cantando música ruim, muitas pessoas traindo e muitas pessoas potencializando o calor.

Além disso, tem o efeito manada. Pessoas fazem coisas escrotas quando estão em bandos, coisas que dificilmente teriam coragem de fazer se estivessem sozinhas. E quanto maior for a manada, maior o efeito. Como carnaval é praticamente uma festa nacional, temos um bando muito expressivo e em um contexto muito nocivo: sexualidade aflorada, bebedeira e um sentimento de ser permitido o desrespeito às regras.

Em bando as pessoas perdem a inibição, se portando de forma vexatória. Em bando as pessoas têm uma falsa sensação de poder/impunidade, que as leva a fazer coisas que dificilmente fariam sozinhas. Em bando as pessoas tendem a deixar de tomar decisões racionais e agem por impulso, seguindo a multidão. Tudo isso aplicado a um povo que, normalmente, de forma individual já não tem muita inibição, medo ou racionalidade gera essa massa animalesca e indigna que se vê na folia.

Para vocês é normal, mas quando tento explicar para a minha família que é preciso criar uma multa e fiscalizar para que as pessoas não urinem nas ruas, vejo olhares de espanto e até dificuldade de compreensão: “Mas por qual motivo as pessoas urinam na rua?”. O Brasil é muito difícil de explicar, seja pela incoerência, seja pela vergonha.

E sabe o que é pior? Em bando essas pessoas são maioria, portanto, você, que quer levar uma vida digna com requisitos básicos, como por exemplo excrementos dentro do vaso sanitário e silêncio para descansar, acaba calado na base da força ou da intimidação. Quem não adere ao bando é chato, é esnobe, é babaca. Bom mesmo é urinar no meio da rua. Brasil-il-il!

Então, além todos os efeitos nefastos sobre os quais já conversamos, o fato de ser uma aglomeração significa que você terá que respirar fundo e aturar, afinal, o brasileiro não é conhecido por seu respeito e pela forma civilizada que reage quando é contrariado. Se você reclamar de qualquer ato carnavalesco, provavelmente será hostilizado e até apanhe. Isso mesmo, tem que deixar as pessoas urinarem na porta da sua casa – e calado.

E confrontar não é apenas impossível para você, é impossível para qualquer um. Minha experiência com carnavais do Rio provou que contra aquela multidão, ninguém pode, nem mesmo a polícia. Vira um ser gigante, amorfo e fedido que se torna impossível de enfrentar. O que quer que aconteça é problema seu e dificilmente alguém vai conseguir ajudar.

Outro ponto negativo da aglomeração é que ela vai até você. Mesmo que você não queira pular carnaval, fatalmente o carnaval vai até você. Vai até a sua rua, até a porta da sua casa. O barulho, a sujeira, a bagunça. Não existe opção de não participar, ao menos como ouvinte (e cheirante) você participa.

Quando é uma baguncinha isolada você tem, como último recurso, a possibilidade de sair, ir para outro lugar, ir para um hotel que seja e se poupar. Carnaval não. Ele está por todos os lados, tamanha a aglomeração.

O que nos leva a outro ponto: a aglomeração faz com que a dinâmica normal da cidade seja modificada. Ruas são cortadas, comércios são fechados e transtornos ainda maiores te afetam para permitir que a aglomeração passe fazendo o menor estrago possível. É um transtorno oficial, institucionalizado. É o Poder Público dando aval para desordem, sujeita, violência e confusão. Se tem coisa mais aviltante do que isso, desconheço.

Felizmente, agora moro bem longe de tudo isso. Carnaval é apenas uma lembrança desagradável. No momento estou no meu quintal, com temperatura de 8°, escutando apenas passarinhos. Meus mais sinceros pêsames para você que será sequestrado por essa data subdesenvolvida e que será exposto a esses símios.

E, que fique claro, não há discordância entre os dois textos de hoje. Eu acho um desfavor tudo que o Somir vier a citar e mais um pouco. Só acho que o fato de tudo isso ser coletivo é o maior desfavor de todos.

Para dizer que gosta de carnaval, para dizer que se for feriado e você não tiver que trabalhar podem até fazer rinha humana ou ainda para nos parabenizar por 15 anos seguidos falando mal de carnaval com argumentos diferentes: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: ,

Comments (18)

  • Fico com a Sally nessa, de acordo com a proposta do texto. Mas o pior pra mim mesmo é barulho! Urgh! Odeio essa gentalha que faz barulho em qualquer lugar, não há um minuto de paz nesses dias! E não há como lutar contra, tem que se isolar com isolamento acústico máximo.

  • Nessa estou com Somir. A aglomeração ocorre por outros motivos também, mas essa apologia ao alcool (e consequente empobrecimento cultural) está matando qualquer interesse possível no ser humano.

  • Fico com a bebedeira nessa, se bêbado faz algo errado vc não pode dar o devido esporro pois “poxa ele não sabe o que tá fazendo” deixa pra lá. Minha cidade todo ano tem homem que cai no rio (perigoso e poluído) pq vai mijar na beira e sim já tivemos mortes por isso.

  • A aglomeração, com certeza. Putaria, bebedeira, mijação e perda de dignidade tem pra dar e vender no RJ o ano inteiro, mas o Carnaval potencializa tudo

    • A diferença entre carnaval e um dia comum no Rio é que no carnaval todo mundo sai ao mesmo tempo na rua, pois o comportamento nem muda muito…

  • Carnaval é tempo de samba, suor e cerveja. Samba repetitivo e iritante pessimamente tocado, suor cujo fedor nauseabundo faz nossos narizes arderem e cerveja em excesso que leva uma quantidade enorme de gente sem nada na cabeça a perder a dignidade fazendo merda atrás de merda em estupor alcóolico. Honestamente, não sei nem dizer o que é pior, se a bebederia ou a muvuca. Mas pelo menos eu vivo em um lugar onde esse feriado é meio “morto” e ainda consigo passar ao largo de tudo isso.

  • Acho que o pior é a bebida mesmo, pois ela faz o cidadão mijar em qualquer lugar. Lembro de uma vez que estacionei o carro e, quando fechei a porta, veio uma infeliz de mini saia e mijou a poucos centímetros do meu pé. Eu vi a bunda de fora e o líquido escorrendo e fiquei horrorizada. Detalhe que a criatura segurava uma lata de cerveja na mão e parecia estar sem calcinha. Após mijar se desculpou e voltou pra folia.

  • O pior são ruas fechadas, trânsito mais caótico que o habitual e as mijadas no chão. Agora inventaram um cone pras mulheres mijarem em pé, então elas agora podem mijar nas ruas igual aos homens e igual a cachorros. Sábado precisei pegar onibus pra chegar no metrô e depois o metrô pra chegar ao Centro do Rio porque a porra da via principal av Presidente Vargas tava fechada a parir da Central. Perda de tempo e prejuízo. Por que durante o carnaval não chove pra alagar esses FDP? Esse papo que traz dinheiro pra cidade é balela, só se for pra político embolsar porque a população não vê benefício, só prejuízo.

  • Aglomeração, porque isso potencializa tudo o que há de pior no nosso país do batuque, suor e mijo.

    Macaco bebe e faz merda, quando está em bando, bebe mais e faz mais merda.
    Macaco rouba, quando está em bando, rouba mais ainda porque sabe que não vai ser pego.
    Macaco faz barulho, quando está em bando, faz mais barulho ainda.
    Macaco mija em qualquer muro e canto escuro, quando está em bando mija até na porta de carro estacionado.

    Fora que a festa em si é um misto de enaltecimento de pobreza e lavagem de dinheiro de tráfico nojenta.

    • Tem, mas é completamente diferente. Para começar, a celebração não está vinculada a putaria, é algo mais família, com crianças brincando nas ruas. E depois, é algo muito pontual, um ou dois dias de comemorações em lugares determinados e só. Mal é feriado, quase tudo abre e tem pouquíssima relevância para a população e para a cultura do país. Seria algo similar ao dia do amigo no Brasil: todo mundo sabe que tem, mas quase ninguém faz ou deixa de fazer algo por causa dele.

      • Por aqui ainda tem uns bloquinhos de rua exclusivos pra crianças, bem family friendly mesmo, não sei a realidade de outros estados. Mas a bestialização tende a piorar, o Carnaval foi totalmente apropriado por gente violenta e promíscua, quem vai querer levar seus filhos pra um evento assim? Além disso, brasileiro mal tem filhos hoje em dia, não tem mais motivo pra fazer coisas seguras pra crianças.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: