Dia 10 de julho é o Dia do Nerd aqui na República Impopular do Desfavor, e resolvemos comemorar com uma semana temática sobre o que significa ser nerd atualmente. Sally e Somir concordam que a definição é mais complexa hoje do que já foi em décadas passadas, mas não sobre a verdadeira alma da nerdice. Os impopulares interrompem para nos corrigir.

Tema de hoje: o que faz de uma pessoa nerd?

SOMIR

No Dia da Consciência Nerd, eu quero explorar as raízes do meu povo e entender de onde vem essa nerditude fundamental. Somos perseguidos há muitos anos e já fomos considerados cidadãos de segunda classe, mas com muita luta chegamos a posições de destaque na sociedade. Nossos antepassados criaram o mundo da internet e as gerações atuais aparecem nas listas dos mais ricos do mundo.

Nossa cultura fez tanto sucesso que até começaram a se apropriar dela, mas sobre isso eu falo num texto especial durante a semana. Hoje eu quero buscar o fator comum que une meu povo: o hiperfoco. O nerd é senhor e escravo de seus interesses de uma forma que não pode ser replicada nos cidadãos comuns. Hiperfoco é uma capacidade de dar atenção imensa a um tema, um comportamento que beira à obsessão e faz com que a pessoa acumule uma quantidade imensa de conhecimento sobre o assunto desejado.

O nerd, em sua essência, é alguém que consegue apontar toda sua atenção para um campo de conhecimento com tamanha força que começa a perder a capacidade de gastar energia com o resto, especialmente com socialização. Não tem mágica nesse mundo: você não consegue gastar seu tempo com todas as coisas, precisa priorizar. Pessoas mais normais podem seguir seus instintos básicos e deixar que a natureza os faça pular de foco em foco para levar uma vida mais balanceada.

O nerd não. Quando ele entra em contato com o buraco negro de seus interesses, nem a luz consegue escapar. E percebam que eu estou separando hiperfoco de interesse: não é sobre gostar de uma série, filme ou mesmo campo de estudo como física ou história, é sobre a forma como o nerd faz isso. Todo mundo tem interesses, todo mundo tem um ou mais desses interesses que chama mais atenção, mas o nerd pega essa característica normal e a eleva ao cubo.

Faz tempo que eu digo que todo mundo é nerd para alguma coisa, sempre tem um campo do conhecimento humano que atrai uma pessoa. Isso, claro, é uma alegoria: as pessoas podem parecer nerds para alguns temas, mas não quer dizer que são o pacote completo. Quando eu falo disso, eu só estou tentando explicar para pessoas mais bem ajustadas que eu qual é a sensação de ser nerd em tempo integral. Ou, pelo menos, o que deveria ser a definição de nerd.

Imagine que o seu maior interesse nessa vida fosse basicamente… tudo. O hiperfoco pode acontecer (de forma mais saudável) em todo mundo, tem gente que é nerd para biologia, para economia, para maquiagem, para corrida, para cozinha… mas o nerd completo vive com o hiperfoco esperando para atacar a qualquer momento.

O hiperfoco saudável escolhe suas batalhas. O hiperfoco nerd é um companheiro constante: e o fato de que o nerd clássico tem interesses considerados mais elitizados e/ou diferentes da média é apenas um resultado desse fio desencapado no cérebro. Interesses mais populares fatalmente te colocam em posição de socializar, e infelizmente, outros seres humanos são difíceis de se lidar quando você quer manter o hiperfoco.

O escravo do hiperfoco não deriva prazer de ser interrompido na sua obsessão, por isso é natural que os interesses do nerd pareçam tão difíceis. Quanto menos gente e necessidade de interação social para perseguir seus interesses, melhor. “Mulher atrapalha na mesa de RPG” porque faz com que os jogadores fiquem sendo retirados do seu mundinho paralelo constantemente. Não á toa, muitos dos heróis nerds pouco se importavam com mulheres: não porque não tinham interesse instintivo nelas, mas porque elas os forçavam a voltar para o mundo real. A natureza é poderosa.

Não quer dizer que só homem pode ser nerd, é só um exemplo. Pode ser o contrário também, e qualquer outra combinação de preferência sexual. Nunca foi sobre querer fazer sexo ou não, sempre foi sobre o custo do comportamento “normal”: diluir o hiperfoco. Eu sugeri a data que usamos como Dia do Nerd por causa de Nikola Tesla, que não foi um virgem, mas que notadamente evitava mulheres para se dedicar mais aos seus interesses científicos.

É sobre o efeito que socializar causa no hiperfoco: ou o nerd ignora o outro, ou faz tudo nas coxas para voltar logo ao seu estado preferido. Alguns nerds se viram relativamente bem nessa parte, fazendo até filhos ou criando empresas quando encontram pessoas compatíveis (vulgo gente que consegue acompanhar esse ciclo de obsessão e desligamento sem se chatear). Mas a norma é hiperfoco colocando tudo em segundo plano.

Uma coisa é entrar nesse estado de interesse absoluto por uma necessidade momentânea (Sally), outra é ficar sendo bombardeado por essas obsessões constantemente (Somir). E calma, eu não estou dizendo que sofro terrivelmente por isso, agora que eu estou acostumado é até divertido. Mas exige atenção para não entrar num caminho sombrio de ressentimento com outros seres humanos. Eu aprendi a abraçar a minha chatice com meus interesses hiperfocados e até achar engraçado quando deixo outras pessoas entediadas com minhas manias de momento.

O nerd não é seu conteúdo, é sua forma de lidar com isso. Hiperfoco não é a mesma coisa que estudo e dedicação, hiperfoco é um defeito que por vezes gera resultados interessantes. Muita gente pode se especializar e aprofundar em qualquer tema, mas o nerd nem sempre encontra valor “do mundo real” nesses interesses. Eles podem mudar de tempos em tempos e o hiperfoco pode morrer bem na hora que a coisa ia começar a ter possibilidade de sucesso e dinheiro. Eventualmente, o nerd inventa o computador ou desenvolve uma teoria da física que muda o mundo, mas muitos acabam apenas entendendo profundamente como funcionava a nave da série Jornada nas Estrelas.

O hiperfoco é aleatório, ele só acaba fazendo com que os nerds escolham alguns temas em detrimento de outros porque são as vias de menor resistência: quanto menos socialização, mais eficiente o processo de acumular conhecimento (útil ou não). Quanto menos distração melhor. Por isso hiperfoco tem essa característica de empoderar e escravizar ao mesmo tempo.

Existe um jeito bem melhor de ser inteligente num tema, e é estudar com propósito. Hiperfoco é algo que “sem querer” pode acabar no mesmo lugar, mas é muito mais sorte que juízo. O nerd de verdade não tem escolha. É algo que é para a vida e só te resta aprender a conviver com isso para não acabar sozinho e maluco, como vários nerds famosos acabaram.

Para dizer que é aliado do meu povo, para dizer que a nerditude é oprimida, ou mesmo para dizer que agora entendeu que nerd é uma forma de enfeitar sociopatia: somir@desfavor.com

SALLY

Para celebrar a Semana Temática do Dia do Nerd, começamos pela base: o que faz de uma pessoa nerd?

O conceito de nerd foi mudando ao longo dos anos e ficou tão diferente que hoje chega a ser difícil classificar o que é um nerd. Minha opinião é a de que o que torna uma pessoa nerd são seus interesses, que são predominantemente questões mais complexas como ciência, tecnologia e outros temas que “pessoas comuns” tendem a não querer aprofundar por incapacidade ou desinteresse.

Sim, o hiper foco é uma característica dos nerd, mas não apenas deles. Por exemplo, existem pessoas com hiper foco em pornografia e não necessariamente são nerds. Existem pessoas com hiper foco em saber tudo sobre seu ídolo e não creio que por saber tudo sobre Anitta ou Thiaguinho alguém seja nerd. O foco desse hiper foco, ou seja, os interesses da pessoa é que são determinantes para classificá-la como tal.

Vejamos exemplos de casa: Somir e eu. Na pandemia, eu estudei tudo que pude sobre covid e vacinas, tanto é que eu fiz a cobertura do assunto no Desfavor. Isso faz de mim uma nerd? Acredito que não. Meus interesses não são esses, eu estudei sobre o assunto por achar fundamental para proteger as pessoas que amo, incluindo aí os nossos leitores. Não é como se por prazer eu mergulhasse no universo do vírus SarsCov.

O que quero dizer é que hiper foco vem de diferentes motivações. Pode ser motivado por idolatria (quem nunca decorou todas as entrevistas e preferências do ídolo na adolescência?), pode vir do desejo de cuidado, pode vir de pagamento (muita gente faz isso por trabalho) ou por muitas outras formas. O hiper foco é uma forma de funcionar que não é exclusiva dos nerds.

O que é exclusivo dos nerd é onde esse hiper foco é aplicado em temas que os fazem sentir diferentes, superiores, elite. Tanto é que quando algum desses temas se populariza, o nerd torce o nariz para eles, como aconteceu com Star Wars. É sobre os interesses e não sobre como se lida com esses interesses. É sobre usar esses interesses para se isolar socialmente – e para isso bem é necessário aprofundar muito neles.

Tanto é que existem nerds que nem sequer tem capacidade de aprofundar nos seus interesses. Sim, o Brasil tem a figura do nerd burro, imagino que alguns de vocês já devem ter experimentado algum contato com esta fascinante criatura. Se abraçam a temas desconhecidos, complexos ou obscuros e fazem disso o que eles são, como escapatória para uma vida social plena.

O grande lace do nerd é ter alguma dificuldade, algum obstáculo físico ou emocional interno, que o impede de socializar com normalidade e, como mecanismo de defesa, ele cria uma persona elitista para si mesmo, que gosta de coisas que quase ninguém gosta, de modo a justificar seu isolamento como opção ou como mera questão de afinidade. Talvez o nerd em si nem exista, seja só uma camuflagem para problemas emocionais ou sociais.

De qualquer forma, o critério mais preciso para reconhecê-lo continua sendo seus interesses. Você não verá um nerd cujo principal foco de interesse é o Flamengo. Se o principal foco de interesse é o Flamengo, é apenas um torcedor fanático. Não dá para chamar de nerd qualquer pessoa obcecada por um assunto. Aprofundar qualquer assunto não é nerd, nerd é se dedicar a assuntos que poucos dominam ou se interessam para se sentir diferentão.

E é isso que vem mudando ao longo dos anos: quais interesses são considerados nerds. Computação era um interesse nerd, hoje em dia é um interesse geral. Popularizou? Deixou de ser nerd, por um motivo muito simples: não serve mais como justificativa para isolamento social, se todo mundo gosta, o nerd perde seu álibi para se isolar e não socializar e torce o nariz para o assunto. Nerd hoje foca em IA, em robótica e em outros assuntos mais elitizados. Montar computador e configurar impressora deixou de ser nerd no minuto em que popularizou.

O nerd quer se sentir superior, quer se achar parte de uma elite intelectual, quer buscar conforto por conhecer o que outros não conhecem. No mundo pré-internet estudar era de fato mais desafiador e só se aprofundava em um assunto quem queria muito, mas hoje qualquer curioso pode saber tudo que existe para saber sobre a maior parte dos temas. Então, o grande desafio não é saber muito e sim saber mais do que a média sobre temas que a maioria não sabe nada.

A gente consegue ver essa escolha estratégica não apenas no foco de estudo do nerd, mas em suas preferências no geral: só gostam de música que não é popular, não costumam se vestir da forma mais comum, quase todas as suas escolhas são no sentido de se excluir, de se separar, de se colocar de forma diferente do resto do mundo, como se uma alegoria como cabelo ou música pudesse fazer de alguém uma pessoa especial…

Vamos sair da abstração e pensar em exemplos práticos? Arnold Schwarzenegger é um dos maiores fisiculturistas que o mundo já viu e não é por acaso: sua dedicação, sua obsessão (tanto pela parte prática como pela teórica), a forma como dedicou anos da sua vida a isso o tornam nerd? Depois resolveu que queria ser o ator mais bem pago de Hollywood e novamente meteu as caras: estudo, cursos, aprendizado. Chegou lá. Isso faz dele um nerd? Depois queria ser político e novamente estudo, leitura, aprendizado. Chegou lá. Isso faz dele um nerd?

Ninguém chega aonde ele chegou sem muita dedicação, interesse e estudo. Ele mesmo conta em sua biografia as longas e desumanas horas de imersão em estudo que tinha por dia. Mas Schwarza é nerd? Nem um pouco. Por qual motivo? Por seus interesses não serem nerds. Ele queria ser sarado, ele queria ser ator, ele queria ser Governador.

É sobre os interesses, sobre os temas que eles escolhem estudar, aprofundar ou levantar como bandeira. Pode observar: surgiu algo novo que ninguém entende bem? Vai juntar nerd envolta. Algo que era complexo popularizou e está ao alcance de todos? Os nerds vão debandar.

Para dizer que o que o que configura o nerd é inaptidão para relacionamentos amorosos, para dizer que Arnold Schwarzenegger é nerd ou ainda para dizer que esta semana temática vai ser um saco: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • “É sobre os interesses, sobre os temas que eles escolhem estudar, aprofundar ou levantar como bandeira. Pode observar: surgiu algo novo que ninguém entende bem? Vai juntar nerd em volta”.

    Aqui não seria propriamente o tema, mas utilizar uma mesma ferramenta para qualquer que seja o tema. Aí não sei se isso é ser nerd, autista, TDAH ou maluquice mesmo.

    Sempre aplicava estatísticas em tudo. Desde pequena, ficava na janela fazendo testes randômicos (desde quantos carros com placa final 1 e azuis iriam passar em frente de casa até não corrigir o inglês do chefe em um documento oficial cheio de erros em um dia qualquer para ver o quanto do tratamento dele poderia melhorar ou piorar comigo).

    Daí fui também para regressões a fim de testar hipóteses (se na praça de alimentação o cliente na minha frente na fila xingar o atendente, meu lanche vai ficar com gosto de merda – e aí saio da fila, ou qual a correlação de ter encerrado algum relacionamento quando o outro lado disse “asterístico” na frente da minha mãe…)

    Essa mania até ajudou no trabalho (menos com o chefe) e no lazer (interpretar estatísticas de esportes para jogar melhor), mas no dia a dia era um inferno ver hipóteses e regressões em tudo. Tanto que em formei em duas faculdades de humanas para tentar escapar disso.

    Sorte ter tido covid, pois reduziu meu cérebro ao modo economia de bateria.

    • Tamo junta na névoa mental!
      O cérebro humano tem uma compulsão por procurar padrões, em algumas pessoas isso é mais exacerbado do que em outras. O lance é trabalhar a mente para que nós a controlemos e não para que ela nos controle.

  • Eu tive uma ligeira sensação de déjà vu nesse texto, parece que vcs já escreveram algo do tipo sobre o que caracteriza um nerd…

    • Eu já li muita coisa sobre dopamina, até pensei em falar sobre isso, mas tem algo que me deixa desconfiado nessa história… o dia que eu descobrir o que está me deixando estranhado sobre explicar esses comportamentos por dopamina, eu solto um texto.

  • Concordo com a Sally. O que faz alguém ser nerd não é apenas hiperfoco, mas o interesse em temas complexos e ainda pouco conhecidos pelo público em geral.

  • Somir, me afirmaram que o hiperfoco (ou podemos dizer “hiperfoco nerd”?) é sintoma/ parte integral de ADHD, vc acha que é “medicalização” excessiva ou faz sentido? Eu fiquei fascinada, achei que explicava tudo.

    • Quando eu comecei a pesquisar sobre TDAH (inclusive com muita ajuda da Sally) a palavra hiperfoco entrou no meu vocabulário e explicou muita coisa. Fui procurar médicos: um disse que eu tinha e deu remédio, outro disse algo que funcionou bem melhor pra mim, que é normal ter mais energia e foco para fazer o que gosta e menos para fazer o que não gosta, não precisa tratar TDAH com remédio sempre, só quando começa a atrasar sua vida e criar outros problemas psicológicos como depressão. Hiperfoco está nesse barco sim, mas não quer dizer que SÓ quem tem TDAH tem hiperfoco, e como eu descrevi com meu exemplo, muitas vezes dá para se adaptar a isso.

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