Diablo IV

Diablo 4 foi lançado pouco tempo atrás com uma das maiores campanhas publicitárias para um jogo até hoje. Bateu recorde atrás de recorde de vendas, e teve milhões de pessoas jogando ao mesmo tempo na primeira semana. Pouco tempo depois, o número de jogadores online caiu mais de 90% e os streamers tiveram que parar de jogar por falta de plateia. O que aconteceu?

Como estou no Desfavor, melhor situar: Diablo é um dos jogos mais famosos para computador, num estilo chamado RPG de ação, que tem elementos de construção de personagem, mas como o próprio estilo sugere, é mais focado em pancadaria virtual mesmo. Você cria seu herói e clica em monstros até eles explodirem. Uma fórmula de sucesso inventada pela franquia e aperfeiçoada por vários “imitadores” desde então.

Um deles, Path of Exile, até foi tema de texto aqui em 2021. Foi um misto de review com análise sobre o que é diversão: o diferencial do jogo era pegar a fórmula de Diablo e tornar tudo absurdamente mais complexo, tanto que muitos jogadores de PoE ficam com um arquivo de Excel aberto ao lado para poder tabular os dados necessários para ser mais eficiente na jogatina. A “moral do texto” era que diversão é algo muito pessoal, e não fazia sentido cagar regras sobre o que os outros gostam ou não de fazer. Diversão não é fazer o que te dizem ser divertido, é fazer o que você acha divertido.

Continuando a saga dos RPGs de ação e a ideia de diversão, Diablo 4 é um bom indicativo sobre como a imensa concorrência por tempo livre das pessoas em 2023 muda até mesmo o que consideramos divertido. Apesar do terceiro jogo da saga ter vendido bem, foram os dois primeiros que realmente fizeram a fama de Diablo. Diablo 2, por exemplo, é considerado um dos melhores jogos de todos os tempos e tem muita gente jogando até hoje o jogo que foi lançado no ano 2000.

Na hora de desenvolver a quarta entrada na série, os desenvolvedores quiseram trazer de volta o estilo mais sério e sombrio de Diablo 2. E no sentido da direção de arte, foi muito bem feito: o jogo é lindo, todos os detalhes visuais são caprichados. As mecânicas obviamente foram adaptadas para as novas gerações, mas sem quebrar muito o espírito do que sempre foi Diablo. Some-se a isso campanhas publicitárias gigantescas com diversas celebridades e temos uma receita de sucesso, não?

Bom, aqui temos dois ângulos para analisar: realmente, o número de vendas inicial foi estrondoso, talvez até suficiente para pagar o custo astronômico de produção e lançamento de um título AAA (é a sigla que usam para definir jogos muito grandes, blockbusters). Mas se você for olhar o tamanho da queda entre o número de jogadores no primeiro mês e os que continuaram jogando até hoje, pode-se considerar um fracasso espetacular. Um RPG de ação não é feito para ser “terminado”. Espera-se que as pessoas continuem jogando indefinidamente, tentando melhorar seus heróis e enfrentar inimigos mais e mais difíceis.

Então, por um lado, propaganda e hype funcionam. Por outro, a maioria dos grandes jogos dos dias atuais esperam faturamento por muito mais tempo do que o período de lançamento. É por isso que quase todos os jogos das grandes empresas tem uma tonelada de coisas para comprar com dinheiro real depois de comprar o jogo, as chamadas microtransações. Seja algo puramente estético ou algum benefício prático para o jogo, é de praxe ter uma forma de arrancar mais dinheiro dos seus clientes por meses ou anos a fio.

Tem muita gente falando sobre como as práticas predatórias das grandes empresas produtoras de jogos estão desanimando o jogador médio. Tem produtora sendo literalmente processada por viciar crianças em jogos de azar com itens aleatórios de jogo comprados com dinheiro real. E sim, a ganância dessas empresas está absurda, mas eu tenho dificuldade em acreditar que as pessoas estão se posicionando sobre o tema, especialmente no caso de Diablo.

A maioria tende a não fazer esse tipo de coisa: se acha uma coisa divertida ou valiosa, raramente vai se furtar do prazer para mandar uma mensagem. As pessoas não param de comprar produtos de marcas que usam trabalho escravo, vão parar por causa de uma crítica ao modelo de negócios de um jogo? Eu enxergo outro fator nessa queda vertiginosa de jogadores de Diablo 4: competição selvagem pelo tempo livre do cidadão médio.

Meu primeiro videogame – isso é, o primeiro que eu realmente sabia como ligar sozinho – foi um Mega Drive. Junto com ele veio um jogo de avião, daqueles que você vai da esquerda para a direta atirando em tudo. Eu lembro do nome, lembro de cada uma das fases, lembro até da música que tocava quando aparecia o chefe. Eu joguei aquele jogo por sabe-se lá quantas horas, tinha memorizado cada movimento dos inimigos e sabia quais eram os caminhos ideais para cada fase. Quer dizer que era um jogo fenomenal? Uma obra de arte dos games que me cativou e ficou tatuada na minha memória por décadas?

Não. Era o único jogo que eu tinha.

E isso tem um impacto enorme no quanto você se dedica a uma atividade “não-essencial” como um jogo. Diablo e Diablo 2 foram lançados num tempo em que a competição pelo tempo livre da pessoa em casa era muito menor. Menos internet (ainda não era muita gente que tinha), menos canais de TV, menos comunicação com outras pessoas… a pessoa tinha só alguns jogos no computador e muito menos distrações.

E num jogo baseado em repetição e ganhos cada vez menores como Diablo e similares, isso muda como e quando viramos a chave de tédio para entretenimento e vice-versa. Serve para tudo na vida: imersão numa atividade permite que não só sejamos mais eficientes nela, como por tabela a torna mais interessante. Faz bem fechar a mente às vezes, ter menos possibilidades do que fazer.

Em 2023, com mais 400 jogos na sua lista do Steam, dez serviços de streaming diferentes te esperando com conteúdo novo e a internet oferecendo informação infinita a todo momento, custa muito mais caro ficar horas e horas clicando em monstros e torcendo para eles te darem um item valioso. Custa tão caro que a imensa maioria dos milhões de compradores de Diablo 4 foram achar mais o que fazer. O jogo tem problemas? Tem sim, eu sou do time Path of Exile e acho Diablo 4 muito raso, mas não é o cidadão médio reclamando da falta de mil opções de personalização do seu boneco no jogo, é a dura realidade de que atualmente é praticamente impossível fazer um jogo de nicho ser interessante para grandes públicos por muito tempo.

Isso até podia colar décadas atrás, porque a pessoa comprava um jogo na loja e não tinha mais muitas opções. Todo mundo pode achar graça numa atividade considerada chata se for a única coisa para fazer. Os primeiros canais de TV exibiam gente tocando piano por horas e funcionava. Vai fazer isso hoje em dia? Cinco espectadores, quatro deles dormindo. O simples fato de não ter que levantar para trocar de canal com o controle remoto já mudou drasticamente como a TV funcionava.

Pensa em como fica o cenário do entretenimento em casa quando a pessoa tem na sua frente uma máquina mágica que traz todo o conteúdo do mundo em milésimos de segundo? É aqui que o ser humano vai precisar aprender a fazer uma coisa que o mundo fazia por ele em décadas anteriores: priorizar seu consumo de entretenimento. Quando eu decidi que não ia comprar mais jogo nenhum no Steam, de repente os jogos que eu já tinha ficaram muito mais interessantes.

Quando eu mudei o plano de TV para só os canais básicos, a TV virou um lugar para ver notícias e esportes. Quando eu cancelei todos meus serviços de streaming, os meus vídeos de nerdices no YouTube ficaram mais interessantes. Muito do que eu imaginava ser estar ficando velho e chato era sobrecarga de possibilidades mesmo. Tudo fica mais maçante quando você sabe que tem mais mil outras coisas que poderia fazer ao mesmo tempo.

E isso ajuda a mudar a forma como você lida com entretenimento caseiro. Não é sobre ser estoico ou fazer jejum de dopamina, é só sobre perceber a obviedade que seu tempo é limitado e escolhas são inevitáveis. Cortar opções de filmes, séries, jogos e tudo mais que eu posso acessar hoje em dia deixou quase tudo o que eu ainda consumo muito mais divertido.

O interessante é que eu tinha essa memória daquele jogo de Mega Drive para puxar e fazer o teste. Tenho dúvidas se com o passar das gerações as pessoas vão ter essa informação. Parece algo óbvio, mas você tem que pensar nisso pelo menos uma vez: o que acontece com quem já nasceu e cresceu num mundo de overdose de possibilidades? Será que eles vão perceber que o jogo não é necessariamente ruim se eles estiverem pensando em outras coisas para fazer ao mesmo tempo?

Ou que qualquer pessoa fica mais “chata” se você tem mil outras opções de conversas no seu app de mensagens ou na rede social? Que é parte integrante de toda nossa forma de lidar com o mundo focar numa coisa, atividade ou pessoa para aquilo ter mais graça? O cérebro precisa de ajuda para entregar a satisfação máxima, se você mantiver ele num estado constante de ansiedade pela pressão de ocupar seu tempo com a “melhor coisa”, vai tudo começar a ficar mais chato. Porque vai gerar gasto de energia extra fazer qualquer coisa, mesmo que seja jogar um videogame.

Quem vai dizer para os jovens que simplesmente funciona ter só um jogo para jogar? Ou ter só uma pessoa para conversar? Não estou dizendo que a vida tem que ser sempre assim, mas que é uma fórmula de sucesso ancestral que as pessoas precisam conhecer. Uma hora ou outra a pessoa vai se sentir cansada, sem vontade de fazer nada mesmo com mil opções, e não vai saber como resolver isso. Talvez até ache que está depressiva.

Muitas vezes não é o caso, é só que o excesso de escolhas cansou a mente. É um músculo dolorido que só precisa relaxar por um tempo, só isso. Relaxar não é necessariamente ficar olhando para o teto (ou enchendo a cara de bebida ou remédios), é só botar o cérebro num caminho e deixar a coisa fluir sem ficar sem preocupando com o que mais você poderia estar fazendo. Diversão pode ser sair para dançar ou fazer gráficos no Excel, como eu disse no texto original, mas eu complemento: diversão pode ser o que você quiser, e fica muito melhor se você estiver em paz com a sua escolha.

A indústria dos games está chegando no limite do potencial desses megalançamentos com orçamentos bilionários, o investimento cada vez menos lucrativo por causa da luta pela atenção ficando cada vez mais difícil de ganhar. Se você não conseguir montar uma base de jogadores que continua jogando porque é o que eles querem fazer e não o que a campanha publicitária disse que é o que eles deveriam estar fazendo, você vai ter esse tipo de queda mesmo. As pessoas consomem, se livram do desespero criado pelo hype, acham o jogo uma porcaria por causa de expectativas irreais, e continuam todas neuróticas com mais e mais hype se formando no horizonte.

Ninguém vai precisar pensar em punir esse modelo baseado em ansiedade para baixar os lucros das grandes produtoras, isso vai acontecer naturalmente. Se a indústria do entretenimento achou uma forma de ganhar bilhões deixando todo mundo ansioso com volume de lançamentos e pressão psicológica de não “ficar para trás”, essa forma acaba tornado o que deveria ser diversão em algo menos… divertido.

Para dizer que odeia meus reviews de jogos, para dizer que só de não falar sobre representatividade no Minecraft eu sou seu jornalista de games preferido, ou mesmo para dizer que só lê o Desfavor por que é de graça: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • caraca, sobre isso de focar melhor o tempo e como as infinitas opções tornam tudo muito chato, era literalmente o que eu tava precisando ouvir (no caso ler mesmo), obrigado por isso

  • Os jogos são lançados e em duas semanas, saem da lista de vendas (se for algo Nintendo, costuma ser mais persistente). Dá pra reparar nesse “desinteresse” generalizado quando até as fanarts e pornôs parecem menos frequentes.

    Eu como gosto de jogar os mesmos jogos por anos a fio, um ou outro que minha atenção de tempos em tempos. E como esse ano um lançamento que chamou minha atenção, vi bem de primeira mão como funciona o hype: povo se emociona com um teaser, joga a demo e alega que é possível GOTY, o jogo é lançado, faz um gamerun ou um gameplay porco dividindo tempo com outros jogos lançados na mesma época, termina e repete o ciclo com outro jogo. Claro que tudo parece mais do mesmo.

    Até as thumbs e títulos dos vídeos dos caras que fazem gameplay dos jogos parecem os mesmos, mas não posso culpá-los, é o trabalho deles, afinal.

    E não me é raro ver desabafos de pessoas que não acham os jogos atuais divertidos, mas, eu discordo em partes. Vi alguns títulos só de 2023 mesmo e alguns me chamaram bastante atenção mesmo que eu só estivesse aguardando um em específico, que inclusive me fez manter esperando por ser menor (em termos de espaço e tempo) e ter mecânica que me interessou (às vezes a pessoa nem sabe direito o que curte, só vai aderindo na base do FOMO ao que ESTÁ popular, por isso também se satura).

  • Nah, o que ocorreu com Diablo é o mesmo do MCU: roteiro de merda e foco só no visual. As pessoas podem até dizer que querem é um jogo lindo, mas um jogo lindo e retardado só satisfaz por algumas horas.

    Concordo que ninguém está boicotando pois o pessoal da Blizzard achou legal passar o piru na cara dos outros, mas estão deixando de consumir pois é um jogo chato e custoso. Não vale a pena.

  • Estou curioso sobre a eventual longevidade do GTA 6, diante do que ocorre com o 5 (relativamente poucas microtransações nele, diga-se).
    Talvez poderia ter sido feita uma análise um pouco mais profunda no texto sobre os efeitos da expansão da possibilidade de jogar contra outros seres humanos e do quanto isso revela sobre o comportamento deles.

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