Os Estados Unidos vetaram, nesta quarta-feira (18), a resolução costurada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU sobre a guerra entre Israel e o grupo radical islâmico Hamas. A votação do texto elaborado pelo Brasil foi adiada duas vezes nos últimos dias, enquanto os Estados Unidos tentavam intermediar o acesso da ajuda à Faixa de Gaza. Rússia e Reino Unido se abstiveram da votação e outros doze membros foram a favor da resolução. LINK


A resolução proposta pela diplomacia tupiniquim (enquanto Lula dormia) foi neutra o suficiente para ter a maioria dos votos. Uma rara bola dentro. O problema é que a ONU não funciona de verdade. E isso diz muito sobre como o mundo funciona. Desfavor da Semana.

SALLY

Eu sei que dá muita vontade de ficar apontando o que cada lado fez de errado para que a situação culmine nesta guerra e que também dá muita vontade de ficar apontando o que cada lado está fazendo de errado durante a guerra. Dá uma sensação de que, em algum ponto, toda essa violência é justificável e, em certa medida, tranquiliza: “vivo em um mundo onde acontecem coisas justas, onde tudo isso é consequência justificável por aquilo que a outra parte fez”.

A má notícia é: não é verdade. Este mundo, tal como o conhecemos, é injusto, escroto e desproporcional. E tentar tapar o sol com a peneira fazendo ginástica argumentativa para explicá-lo é um tremendo desfavor que leva à estagnação na merda na qual nos encontramos.

Não importa a justificativa que você use, desde injustiças em divisão territorial até karma de vidas passadas que está sendo resgatado agora, todos levam para um caminho: o que está acontecendo tem uma explicação válida. Não tem. Nosso cérebro ficaria muito mais tranquilo se tivesse, se fosse um mundo preto no branco, se fosse um mundo de causa/consequência. Mas não é.

A partir do momento que se respira fundo, se retoma a lucidez e se diz “nada justifica isso, isso não deveria estar acontecendo, não importa quem tenha feito o quê”, surge um enorme problema: se nada justifica isso e isso não deveria estar acontecendo, como impedir que isso aconteça agora e no futuro? Esse problemão ninguém quer. Muito mais fácil acreditar que tal lado “mereceu” ou “fez por onde” e seguir com sua vida.

Para nós que já entendemos que nada justifica isso que está acontecendo, nos resta lidar com o problemão. E certamente não será em um texto de duas páginas que vamos resolver a questão. Nem em um ano de discussões. Nem em dois. Mas, quanto antes de começar a olhar para isso, antes se resolverá.

Não existe hoje um mecanismo eficaz para coibir atrocidades frutos de guerra ou de disputas territoriais entre nações. Por falta de coisa melhor ou por erro de cálculo a ONU não é suficiente e a falha está clara: quando você diz que algo não é permitido, a norma só será cumprida se existirem consequências negativas para o seu descumprimento que sejam maiores do que os benefícios desejados com esta ação.

Se existe uma proibição, mas nada realmente impactante acontece quando ela é violada, a ONU vira aquela mãe passiva que apenas fala “João Vicente, não bota fogo na cortina que a mamãe fica triste”. Patético. Faz sentido gastar bilhões de dólares para manter um organismo internacional como esse? Mais fácil pegar todo o dinheiro que a ONU gasta para existir e usar com as vítimas dos crimes de guerra.

Para que esse tipo de coisa não aconteça seria preciso estipular punições que afetem os Chefes de Estado que de alguma formam comandam, ordenam ou endossam o cometimento de crimes de guerra, sem punir os civis desse país que não tem qualquer culpa sobre o que seu Chefe de Estado está fazendo. Pois é, receber voto popular não é aval para cometer crime de guerra.

Poderíamos passar muitas páginas aqui conjecturando medidas que evitariam que cheguemos nesse patamar de violação aos direitos humanos por ambos os lados, por exemplo, remover todo mundo da Faixa de Gaza e construir uma estátua de um jumento gigante no lugar com os dizeres “por burrice, ninguém fica aqui”, mas não vem ao caso. O ponto do texto é: o primeiro passo para tentar sair dessa merda é admitir que o que temos hoje não resolve e começar a debater sobre algo novo.

É mais ou menos o que acontece com a situação carcerária do Brasil: soltam o preso com pouco tempo de pena cumprida com o discurso que é um sistema que ressocializa, mas na prática, sabemos que não ressocializa porra nenhuma e se devolve um monte de bandido para a rua. E em vez de olhar para isso, as pessoas estão tão putas com o criminoso que ficam berrando “tem que prender!”, sem perceber que, no longo prazo, isso vai acarretar uma merda ainda pior: em algum momento você pode cruzar na rua com um desses “ressocializados”.

O problema é: para mudar o sistema penitenciário e o tempo de prisão seria preciso fazer uma nova Constituição e ninguém quer mexer nisso, por todo o trabalho, por todo o risco, por toda a confusão que seria. Daí ficam berrando que tem tanta violência no Brasil pois se “prende pouco”. Não se prende pouco, é um dos países do mundo que mais prende. Se prende errado. Mas vai tentar convencer cidadão médio disso… Tudo que você vai conseguir é escutar o mantra “tem que prender, tem que arrebentar, tem que torturar”.

O que nos leva ao seguinte ponto sobre guerra e direitos humanos: como está não funciona e o ser humano médio não tem a sutileza, a percepção ou a coragem de admitir isso, portanto, vai continuar como está. Talvez, no máximo, possamos gestar uma semente de mudança que, quem sabe um dia, se houver terreno fértil, irá florescer (tentamos deixar várias aqui no Desfavor). Mas agora? Agora o que tem é isso aí.

Então, como faz? Como faz para viver em um mundo de barbárie, injustiça e violência? Trabalha a tua cabeça. Você não pode mudar o mundo, só pode mudar a forma como vê o mundo. Isso que estamos passando é uma fase muito ruim da humanidade que, esperamos, leve a uma melhora eficiente no futuro para que isso não aconteça mais. Coube às nossas gerações passar por isso. Passemos com a maior dignidade possível, fazendo a nossa parte para que em um futuro existam sementes melhores para germinar.

Em bom português, estamos dizendo que acreditamos que a melhor forma de passar por isso e manter sua saúde mental é não tomar lados, não se deixar sugar pelo conflito, não ser voyeur de desgraça e não colaborar para um aumento ainda maior de ódio, raiva e violência.

Isso quer dizer que você tem que ser um “alienado isentão desinformado”? Claro que não. Você pode se informar, você pode ter opiniões, você pode falar sobre o assunto. A grande sacada é: desde que lugar você o faz: para tomar lados, sentir raiva e polarizar ou para tentar plantar uma semente de solução, se manter do lado de direitos humanos e despolarizar?

A guerra está aí. Participa quem quer, e quem participa colabora para que ela aumente e continue. Não participe dessa guerra. Colabore com seu mísero grão de areia para tolerância, evolução e despolarização.

Para dizer “Mas o Hamas…”, para dizer “Mas Israel…” ou ainda para dizer que se antes você queria sair do Brasil, agora quer sair do mundo: sally@desfavor.com

SOMIR

Contexto, contexto, contexto. Quase tudo nesse mundo depende de contexto para ser compreendido. A ONU, em tese, é uma das melhores ideias da humanidade até hoje. Um organismo imparcial que cria algumas regras do jogo geopolítico para os países seguirem, e que consegue fazer ações humanitárias em qualquer lugar, independentemente da política interna de cada um dos seus membros.

É também quem define a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma espécie de linha divisória entre o mundo antigo e o mundo moderno. Na parte tecnológica podemos falar sobre a Revolução Industrial, mas a declaração é o que muda a “alma” do mundo. A difícil ideia que todos nascemos com direitos fundamentais ainda é desrespeitada nos quatro cantos do planeta, mas tem algo muito importante na ideia de ter o que desrespeitar.

E aí entra o contexto: ela realmente começa a funcionar depois do final da Segunda Guerra Mundial, quando até uma humanidade acostumada com barbárie há milênios sente que a coisa foi longe demais com o Holocausto e as bombas atômicas. E quem dá o suporte para as nações unidas são as nações vencedoras da guerra. Daí que surgem os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China. Os países mais relevantes do lado vencedor.

Seus poderes sobre a ONU são diferentes do resto, eles podem vetar resoluções que não gostarem. Foi uma espécie de condição para eles garantirem a validade do organismo: todo mundo respeita porque os países que podem bater mais forte estão do lado dela. O Brasil fez uma resolução que não era perfeita, mas era o que dava para entregar nessa etapa da guerra entre Israel e Hamas, quase todo mundo aprovou, Rússia e Reino Unido deixaram passar, mas os EUA bateram o pé.

Da mesma forma que a Rússia travou todo tipo de resolução em apoio ao país que estava invadindo pouco tempo atrás. A ONU é uma organização humanitária teoricamente neutra, mas seu contexto de poder é totalmente relacionado com o poderio militar dos “donos do mundo”. É o porco da Lei da Selva maquiado para parecer consenso global. Não é.

E mesmo que eu não defenda o fim da ONU, até porque organismos puramente humanitários como Unicef, Acnur e OMS dependem dela para salvar milhões de vidas todos os anos, eu não posso deixar de notar como a parte do gerenciamento das relações entre países é falha por esse motivo de suporte baseado em exércitos poderosos de alguns membros. Decisões da ONU são tão fortes quanto o poderio militar de quem estiver por trás dela, e assim que uma das potências entra em discordância com a outra, tudo fica travado.

Não é defeito, é como a coisa foi feita para funcionar. No final das contas, a ONU foi feita para empurrar o que os maiores exércitos concordavam em empurrar. A imensa hegemonia americana no pós-guerra, exacerbada a cada década até o fracasso da União Soviética, nos deu a impressão de que a ONU tinha mais poder do que realmente tinha. Quando as coisas voltam para algo mais normal como os EUA tendo que dividir mais o bolo, vemos a falha fundamental no processo.

E aí as soluções são muito complicadas. Temos uma organização que tem poder apenas sobre os países que os vencedores da Segunda Guerra Mundial decidirem que ela tem. Os membros permanentes do conselho de segurança são basicamente imunes, e seus aliados idem. Israel não tem que se preocupar com consequências de seus atos enquanto os EUA quiserem que ela seja imune. E para falar a verdade, entre as intrigas entre EUA, China e Rússia, nem mesmo alguns dos grupos radicais que lutam contra Israel.

São muitas imunidades para funcionar. A parte da ONU que funciona, funciona nos espaços livres entre os interesses dos grandes exércitos. Você só não sabe o que é varíola na prática porque a OMS conseguiu colocar o mundo para trabalhar em vacinação algumas décadas atrás. A mortalidade infantil seria muito maior sem Unicef, o número de imigrantes incontrolável sem Acnur… não é que a ONU não serve para nada, é que ela é fundamentalmente furada no processo de gerar pressão sobre seus “donos” e os amigos deles.

A humanidade precisaria dar um passo enorme para fazer isso funcionar de verdade: os exércitos mais poderosos deveriam colocar em suas constituições alguma forma de punição para os líderes que forem contra resoluções humanitárias da ONU. Mas todos ao mesmo tempo, porque se um ficar de fora, em pouco tempo a entidade fica desmoralizada de novo. E para isso começar a ser factível, todos esses países precisam se mover para democracias reais.

E isso só acontece num mundo onde polarização não seja a norma. Onde as pessoas sejam menos histéricas com suas posições políticas e por tabela, menos propensas a abrir mão de democracia para impor suas vontades radicais. Em tese a ONU é uma excelente ideia, na prática, interesses pessoais impossibilitam sua aplicação. É uma espécie de comunismo nesse sentido. Eu realmente acho que se for para ser desse jeito, é melhor parar até de fingir que pode tomar resoluções sobre conflitos entre países e focar 100% em ajuda humanitária. É melhor ficar só com a parte que todo mundo consegue respeitar do que essa vergonha constante de não conseguir aprovar nada por não ter poder real.

Até porque isso pode ajudar no estado mental da humanidade: ao invés de ficar vendo a “organização mundial” ser só uma briga inútil de potências, focariam apenas na parte onde a ONU não morde a isca de entrar em guerras e só foca em ações humanitárias. Precisamos de mais exemplos disso: de gente que NÃO quer entrar na guerra.

Para dizer que não vai funcionar, para dizer que quer entrar na guerra porque é só na internet pra você, ou mesmo para dizer que a ONU é o Suplicy do mundo: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • A intenção foi escrever UNutil?
    UN é um prefixo que na língua inglesa dá sentido contrário a palavra que é antecedia por tal prefixo.
    E também é a sigla para nações unidas na língua inglesa.

  • Pessoalmente, acho que a humanidade já deveria ter superado guerras como um todo, não tem absolutamente nada no mundo que justifique esse grau de violência. Mas precisamos de um sistema inteiramente novo para sequer cogitar algo assim, as próprias bases da existência e da manutenção de um Estado Soberano são feitas considerando que todos os outros são inimigos e ameaças em potencial. É uma das poucas coisas que não muda conforme o sistema de governo.
    ONU tem poder para, no máximo, dar uma de Rodrigo Maia e soltar notas de repúdio.
    Não há nenhum Estado Soberano disposto a abrir mão de parte da soberania no contexto de uma organização como a ONU… o mais próximo que temos disso são os países da União Europeia abrindo mão de parte da sua soberania ao adotar o Euro e o Acordo de Schengen, por exemplo. Ainda assim, é polêmico. E boa parte da população não vê com bons olhos.
    O maior problema de se tentar liderar grandes grupos é que isso exige boa-fé e alto grau de instrução e civilidade de todos os seres humanos envolvidos, ou pelo menos da grande maioria deles.
    Sally e Somir, vocês não acham que seria interessante um Flertando com O Desastre sobre a formulação de alguma OI que servisse para arbitrar essas questões? Algo que tivesse uma chance de funcionar melhor do que a ONU?

    • Eu acho que não resolveria. O macro é o somatório do micro. Enquanto as pessoas tiverem essa mentalidade, o mundo continuará sendo esse caos. Não se pode obrigar uma pessoa a evoluir, tem que partir dela. O que talvez desse algum resultado seriam ações realmente eficientes tentando trazer consciência à humanidade, mas sabemos que não vai acontecer…

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