Desinteligência.

A Polícia Federal (PF) cumpre, nesta segunda-feira (29/1), mandados de busca e apreensão em nova fase da operação contra a “Abin paralela” do governo Bolsonaro. Entre os alvos, estão o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do ex-presidente, e assessores dele. Mandados de busca e apreensão são cumpridos na casa de Carlos Bolsonaro e também no gabinete dele, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. LINK


A gente quer ver todos eles se fodendo pelos crimes que cometeram? Claro. Mas tem algo perigoso no foco ser esse. Desfavor da Semana.

SALLY

Espionagem, troca de informações, chantagem e outras coisas no estilo, pagas com dinheiro do contribuinte. Um tremendo desfavor. Mas, sobre ele, todo mundo está falando. Por isso, resolvemos trazer um outro ponto de vista que não está sendo muito debatido: a forma como se está divulgando este desfavor também é um desfavor.

A forma como o escândalo foi divulgado conseguiu a proeza de ser prejudicial para todo mundo, inclusive para os próprios imbecis que optaram por fazer essa divulgação. Além de glorificar o idiota do Bolsonaro (assunto que será aprofundado pelo Somir), erraram feio em outros aspectos.

Vamos inverter para ficar didático? Faça o seguinte exercício de imaginação comigo: a Jovem Pan publica que o filho do Lula está envolvido nesse escândalo e afirma que ele está de posse do computador da ABIN. Ela continua afirmando isso mesmo depois do filho de Lula e outras pessoas desmentirem. Esta informação é verificável, pois existe um controle de onde estão os bens públicos e um rol de objetos que são alvo de busca e apreensão. A Jovem Pan só se retrata muito tempo depois, dizendo que o computador da ABIN estava, na verdade… com um funcionário da ABIN.

Qual vocês acham que teria sido o discurso do Lula e toda a esquerda em massa?

Isso aí. Necessidade de PL das Fake News, Jovem Pan mente, Jovem Pan é tendenciosa, a direita tem um gabinete do ódio para difamar e destruir a oposição pois eles alimentam a polarização e por aí vai…

Aconteceu exatamente o oposto. A Globo afirmou que o computador da ABIN estava com Carlos Bolsonaro, e continuou afirmando isso, mesmo ao se deparar com a negativa de várias pessoas. Quando finalmente veio à tona que não estava, ninguém viu problema algum, foi apenas um “equívoco”, não foi notícia falsa.

Vamos lá, a gente nem quer discutir se é notícia falsa ou não, inclusive por sermos terminantemente contra esse lixo de PL da Censura que chamam de PL da Fake News. O ponto é: o que é crime, notícia falsa, abuso para um lado, pode ser praticado livremente pelo outro.

É preciso decidir: ou ninguém pode, ou todo mundo pode. Qualquer um dos dois que escolham me deixa conformada. O que não pode é um lado ser açoitado sob acusação de notícia falsa e o outro sempre cometer um “equívoco”.

Isso mostra que a aprovação do Projeto de Lei não adiantaria absolutamente nada: um lado poderia continuar a propagar notícias falsas, que continuariam sendo chamadas de “equívoco”.

E, vejam bem, eu não estou dizendo que a Globo deliberadamente inventou algo para difamar o Bolso-Filho. Provavelmente essa informação chegou e não foi bem checada, algo que PL das Fake News expressamente prevê como ilícito. Segundo sua redação, se, na data da divulgação da informação falsa existia uma forma de checá-la e descobrir que ela não é verdadeira, mas quem a divulgou foi negligente nessa checagem, a pessoa ou empresa é passível de punição. Então, pelo próprio conceito que eles defendem, foi notícia falsa sim.

Com quem está um computador de propriedade do Estado não é uma informação subjetiva. Cada vez que alguém pega um computador do Poder Público e leva para casa, isso fica registrado no órgão (ou deveria), dia da saída e dia da devolução. Bastava verificar. “Mas Sally, e se o órgão não controlar essa entrada e saída?”. Controlam sempre, mas se não controlar, basta noticiar que segundo documentação apresentada, não há registros de entrada e saída.

É concreto. É palpável. É verificável. A Polícia Federal certamente tem uma lista para busca e apreensão. Estamos falando de processos e procedimentos que precisam ser muito bem documentados e com autorização judicial.

Então, sim, era verificável que o computador não estava com o Megamente Retardado. A Globo optou por mentir ou não verificar (o que, aos olhos do querido projeto de lei que eles defendem, configura igualmente Fake News). Só que não vai ter comoção, não vai ter decisão do STF, não vai ter nem clamor por esse lixo de PL que eles tiram da cartola cada vez que uma notícia falsa aparece.

Além de mostrar que PL de Fake News é para censurar desafeto, ainda fizeram outro desfavor: minaram a credibilidade de tudo que é e será apresentado. Assim como a cantora negra que mentiu sobre revisarem seu cabelo no aeroporto minou a credibilidade de qualquer outra acusação de racismo que ela possa ter sofrido no dia, essa mentira do computador vai acabar desacreditando todo o resto.

Você e eu sabemos que esse escândalo envolve questões muito graves, que, pelo visto, parecem ser prática no Brasil faz tempo. Mas você e eu não somos a média. A média está dividida em dois gados: um gado vai ficar gritando “GLOBOLIXO MENTE” e desacreditando qualquer coisa que a mídia diga que não lhes agrade” e a outra metade vai ficar gritando “NÃO FOI NADA, APENAS UM EQUÍVOCO E QUEM DIZ O CONTRÁRIO É FASCISTA E A FAVOR DA DITADURA”.

Com esta cagada, conseguiram, de uma tacada só, reforçar a polarização, a raiva e o descrédito do brasileiro. E deram um baita tiro no pé, pois por mais que se seja camarada e se aceite que foi um “equívoco”, esse “equívoco” também mina a credibilidade.

Por fim, um último, mas não menos importante desfavor: Por qual motivo todo mundo parece se concentrar em imputar a ele tudo quanto é acusação ao Bolsonaro, menos a principal, a mais grave, a que pode trancar ele na cadeira por 30 anos? Quase um milhão de mortos, caralho. Mil mortos por dia! Já esqueceram? A gente não esqueceu, nem vai.

Queremos ver Bolsonaro preso pela forma como conduziu a pandemia: atraso na compra de vacina, recomendar remédio sem eficácia e que ainda faz mal, permitir e estimular que sejam feitos experimentos em seres humanos, em sua maioria idosos e todo aquele combo que passamos quatro anos batendo.

Mas, se fala de tudo, do Rolex, das informações da ABIN, de tudo menos das vidas dessas pessoas, que morreram de forma indigna, sofrendo, sufocando, tendo veneno enfiado em suas veias para ver se funcionava ou não.

Francamente, eu não entendo como o brasileiro ou a oposição ainda não puniram o Bolsonaro por isso. É imoral, é indecente, é inaceitável.

Para dizer que se punir um por atraso na compra de vacinas vai ter que punir o outro também, para dizer que simplesmente não se importa ou ainda para dizer que a globo mente ou que foi apenas um equívoco: comente.

SOMIR

Trump estava meio no limbo cultural após sua derrota nas urnas nos EUA. Fora do cargo mais poderoso do mundo, muita gente achou que era hora de pegar ele pelos crimes que tinha cometido. Vários processos avançaram e o político/celebridade americano ganhou muita atenção na mídia pelos processos virando julgamentos. Teve que se apresentar e até tirar foto oficial de acusado pela polícia. Isso virou um fenômeno publicitário e o fez disparar para a liderança nas pesquisas para ser o próximo presidente do país.

Quem conhecia o público-alvo do trumpismo já deveria saber que ele só ganha com atenção, positiva ou negativa. Se queriam derrubar o Trump, o segredo era e continua sendo deixar ele definhar longe dos holofotes. Mas não se aguentaram, fizeram ele voltar à vida pública com barulho e fanfarra, agora com muito mais força na imagem de rebelde antissistema.

Como peido que peida lá fede cá, estamos vendo um processo parecido com Bolsonaro. Só que aqui estão criando um processo que vou chamar de “putinização do Bolsonaro”. O ser humano é fascinante no sentido do que acha admirável, tolera muita coisa que acha incorreta se a imagem da pessoa acusada tiver algum ganho secundário para ele.

Nem tanto tempo atrás, Bolsonaro estava enfrentando uma CPI que o chamava de maluco e incompetente na lida com a pandemia. Mesmo que a militância do seu lado tentasse pintar isso como resistência a uma conspiração maligna de Bill Gates e Leonardo DiCaprio para implantar o comunismo através de um vírus, não colou o suficiente. Perdeu a eleição por pouco, mas perdeu.

Aquele era o Bolsonaro das tentativas patéticas de demonstrar poder e dos erros bisonhos em questão de saúde pública. Os tanques fumacentos só faziam o ex-presidente parecer um fracasso. No fundo, o povo bolsonarista queria aquela imagem de líder forte, autoritário e duro contra os adversários. Uma boa parte da direita mais radical broxou com a realidade do seu governo. Eu gostaria de imaginar que as decisões terríveis que ajudaram a matar centenas de milhares de brasileiros fossem o fiel da balança na eleição passada, mas tem muito mais cara dele ter passado uma imagem fraca como líder capaz de tomar o poder absoluto.

Os paralelos com os EUA continuam: assim que Bolsonaro perdeu o seu cargo, muita gente que queria pegar ele se viu livre para começar a acusar e avançar processos. Ele perdeu os direitos políticos (que deveria ter perdido mesmo) e começou a ver seu entorno atacado pelos anos de bravatas e planos de implementar uma ditadura militar.

Só que isso provavelmente vai gerar o mesmo efeito que gerou em Trump: vai tornar Bolsonaro mais forte na mente do seu público-alvo. O caso da ABIN faz o povão presumir que Bolsonaro estava armando um esquema avançado de espionagem, usando militares para controlar adversários e aliados com inteligência e tecnologia avançada.

De uma certa forma, aproximando sua imagem de políticos/bandidos como Putin. Boa parte da mitologia de força do ditador russo tem conexão com seu histórico na KGB. As pessoas enxergam Putin como um paranoico com mil planos para acabar com a raça de qualquer um que cruzar seu caminho. E isso é verdade. Mas a diferença entre verdade e percepção de verdade é muito mais sutil do que gostaríamos: se Bolsonaro parecer que tem essa alma de Putin de líder que espiona e manipula o sistema, o povo que gostava dele pela imagem de agente infiltrado no “sistema” só vai gostar mais dele.

Como disse antes, o ser humano é fascinante, ele tolera muito comportamento ruim se achar que fazer coisa errada o beneficia de alguma forma. Faz parte da fantasia de “papai no governo” ter um presidente firme nas suas decisões e que cuida de tudo para o povo não precisar se preocupar com os rumos da nação. Quando você empurra essa imagem de espionagem avançada para cima do bolsonarismo, você está dando mais subsídios para a crença que ele realmente é esse homem forte que resolve os problemas do povo.

O que na prática não é, Bolsonaro é o tiozão do colo cheio de farofa que dá cloroquina para a ema e seus filhos são no máximo macacos de imitação dos malucos americanos e suas conspirações infinitas. É um erro publicitário soltar do osso dos erros da pandemia para tentar morder eles por causa da espionagem. O povão acha espionagem chique, coisa de gente inteligente. Isso melhora a imagem do clã Bolsonaro e seus asseclas, assim como o mugshot de Trump melhorou sua imagem de rebelde perseguido nos EUA.

Quanto mais se coloca essa imagem de Putin sobre Bolsonaro, do homem duro na queda que usa todo tipo de ferramenta para se manter no poder, mais uma boa parcela de brasileiros que só enxerga absolutismo como solução para os problemas volta a se encantar por ele.

E isso não quer dizer que somos contra pegar e punir quem tenha usado recursos públicos da ABIN para ganho pessoal ou que tenha violado direitos fundamentais enquanto estava no poder. Sim, isso tem que ser investigado até o final; mas estamos vendo o alto custo de não termos pressionado suficiente o sistema para fazer Bolsonaro pagar pelos crimes cometidos na pandemia. Uma pessoa descontrolada e incompetente não foi exposta o suficiente por causa disso, e o tempo passou até o grupo bolsonarista ser acusado de algo que no fundo o brasileiro acha um símbolo de poder.

E aí ficamos sem o quadro completo. Deixaram-no escapar dos crimes mais horrendos que poderiam acabar com sua imagem e vão correr atrás dele pelos crimes que o fazem parecer, de novo, um homem forte que pode controlar um país descontrolado. Ele pode até estar inelegível, mas vai continuar tendo poder para indicar um fantoche. Com o Lula não deu muito certo porque seu fantoche estava enfrentando Bolsonaro no auge da popularidade, mas quando o fantoche de Bolsonaro aparecer, vai enfrentar um Lula muito desgastado (e merecendo isso).

Qual a dificuldade de não fazer a gente ter que escolher entre Lula e Bolsonaro pela terceira eleição seguida? Pelo visto, dificuldade demais.

Para dizer que eu sou comunista, para dizer que eu sou fascista ou só para assumir que não entende nada do que lê mesmo: comente.

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Comments (6)

  • “Para dizer que se punir um por atraso na compra de vacinas vai ter que punir o outro também”

    Eu queria querer muito no cível contra toda a extrema polarização também, tanto Globobice quanto qualquer enorme irresponsabilidade da J0vem P4n e por aí vai…

  • Bolsonaro não é nem o líder fodão que a ala mais radical de sua mitância esperava e nem o chefe astuto cheio de esquemas e subterfgios que tentaram pintar com o que o Somir chamou de “putinização”. Trata-se apenas de um inepto e tolo deputadinho do “baixo clero” que, mesmo percebendo tarde demais que mordera mais do que podia mastigar, pegou gosto pelo poder que experimentou como presidente. Um panaca que, como todos os que o antecederam, também vai fazer tudo ao seu alcance – ainda que de forma tosca – pra não largar o osso.

  • Querer derrubar adversários políticos fazendo escarcéu por mixaria enquanto crimes muito mais graves não geram a mesma indignação e relativizar quando é o “seu” lado que faz as mesmas merdas que o inimigo são especialidades do brasileiro…

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