Realidade básica 2 – Cooperação.

Na primeira edição do realidade básica, tratamos do conceito de “mágica”: o suposto eternamente inexplicável. Argumentei que o inexplicável é um estado transitório: as coisas estão inexplicáveis até termos os recursos (tempo, dinheiro ou avanço tecnológico) para fazer senso delas. Mágica então seria apenas uma forma psicologicamente mais agradável de dizer “eu não entendo como isso funciona por ser limitado”. E não é surpresa nenhuma que a humanidade tenha ficado totalmente viciada em enxergar mágica nas coisas, não? “Se eu não compreendo, ninguém compreende e ninguém jamais vai compreender”. Mas isso é compreensível, é natureza humana até. O que nos leva até a segunda afirmação dessa série:

2) Controlar pessoas é uma tarefa quase impossível.

Parece simples, mas tem implicações imensas. Pessoas tem vontades próprias, e pior, vontades que vem e vão de acordo com o seu cotidiano. Toda vez que mais que uma pessoa precisa entrar em acordo para decidir algo, surge um grau de complexidade novo. Você consegue escolher facilmente um sabor de pizza, por exemplo. Mas se precisar escolher um sabor que agrade duas ou três pessoas, vai começa a ter cada vez mais dificuldades. Uma pessoa gosta de uma coisa que a outra detesta, outra começa a pensar em pedir outro tipo de comida no meio da conversa… tem quem queira impor sua vontade, tem quem deixa passar e fica ressentido… claro que nem sempre é essa loucura toda, mas humanos tendo que agir em conjunto tendem à confusão.

Não estou falando nenhuma novidade, né? Todos sabemos que até escolher um prato vai ficando mais e mais complicado de acordo com o número de pessoas envolvidas nessa escolha. Se você está numa posição gerencial no trabalho, por exemplo, deve saber muito bem que não importa o trabalho realizado ali, a parte mais difícil sempre são as pessoas envolvidas. Poucas coisas são mais complicadas nessa vida do que coordenar outras pessoas e fazê-las agirem em prol de um objetivo comum.

O problema aqui é: parece que essa noção extremamente comum é seletivamente esquecida quando recebemos informações sobre conspirações e planos secretos em geral. Cidadão sabe que pessoas vivem discordando entre si, que é extremamente comum que alguém resolva remar contra a maré sem aviso prévio… e por algum motivo, acredita nas conspirações mais mirabolantes possíveis. É aqui que o bom senso te economiza muito tempo nessa vida: toda vez que receber uma informação sobre várias pessoas agindo em conjunto para chegar num objetivo, basta aplicar a ideia deste texto.

Na maior parte do tempo, seres humanos não estão agindo de acordo com um plano muito maior do que “o que eu vou almoçar hoje”. E não é sobre as pessoas serem burras, é sobre a nossa natureza. Cada cabeça, por mais vazia que te pareça, está cheia de informações únicas que podem e serão usadas ao analisar a realidade ao seu redor. Duas pessoas podem ver o mesmo fato e o interpretarem de forma totalmente diferente. Mesmo que os “inputs” tenham sido idênticos entre um grupo, cada um vai ter que passar isso pelo próprio cérebro e gerar relações entre o fato novo e tudo o que já estava ali (que, por sinal, é como geramos as memórias).

Quanto mais pessoas precisarem entender e agir de acordo com uma informação, maior o potencial de confusão e “traição” do propósito. O que eu noto como uma falha na lógica de muita gente e não contabilizar o quanto isso se torna mais e mais complicado de gerenciar a cada pessoa que entra na jogada. A dificuldade de sincronizar três pessoas no mesmo objetivo é exponencialmente maior do que com duas, por exemplo. E a cada pessoa a mais nessa situação, mais incontrolável se torna. Cada pessoa quer uma coisa, cada pessoa pode se sentir de inúmeras formas a partir dos estímulos do ambiente e das interações com outras pessoas, cada pessoa tem uma forma de lidar com seus sentimentos, cada pessoa tem seu próprio grau de inteligência e capacidade de compreender as informações que recebe… não é só adicionar uma pessoa, é multiplicar a complexidade das interações para cada uma das que já estavam lá.

Uma grande conspiração para matar um presidente, para derrubar um prédio, para fingir o pouso num lugar longínquo, sociedades controlando todos os governos mundiais… existem inúmeras dessas histórias por aí. Muitas com defensores ferrenhos, supostas evidências e eventualmente até argumentos muito razoáveis. Mas, quase todas com um problema sério: a quantidade de pessoas que precisariam se organizar sem falhas para algo do tipo dar certo torna tudo muito difícil de acreditar. É quase impossível manter um segredo entre mais de duas pessoas, imagine só se você tem dezenas, centenas ou milhares de pessoas envolvidas?

Não estou argumentando que as pessoas são boas demais para querer enganar todo mundo, estou argumentando que é virtualmente impossível conseguir esse grau de coordenação. Alguém vai estragar tudo. E curioso que a maioria das conspirações envolve governos de alguma forma: justamente os governos que sofrem horrores para entrar em acordo sobre qualquer tema. Por mais que você ache que todos em Brasília estão lá com o único propósito de enriquecimento pessoal (e não é verdade, a humanidade nunca é tão simples assim), não faz sentido achar que todos trabalham juntos. Por mais que uma mão lave a outra eventualmente, são muitas pessoas com objetivos próprios e conflitantes para uma cooperação continuada.

As pessoas tem todas as características podres que se atribui às conspirações, mas não todas ao mesmo tempo e não todas sincronizadas num objetivo único. E mesmo quando um sistema ditatorial consegue usar a força e o medo para controlar uma população, nunca é sua totalidade: sempre aparece alguém que peita o poder constituído e joga contra o que acha errado. Pessoas também tem características muito nobres, não todas, mas o suficiente para sempre ter um ponto fraco numa mega conspiração. O problema não é o teor da conspiração, o problema é a base dela.

E se a sua base presume cooperação perfeita ou quase perfeita de mais do que algumas poucas pessoas, sua base já começa bem mal.

Pessoas são pessoas, e isso é muito complicado.

Para dizer que eu estou sendo pago para escrever isso, para discordar de mim e provar meu ponto, ou mesmo para dizer que estão atrás de você: somir@desfavor.com

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Comments (1)

  • Errado de novo, somir.
    Talvez controlar cada passo de várias pessoas sim seja quase impossível, mas controlar num nível básico e totalmente acessível, quase FÁCIL, quando se tem o conhecimento necessário.
    O marketing está aí provando isso.
    A maioria das nossas decisões são inconscientes.

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