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Colunas

A re-revolta da vacina.

Nos EUA, ganha força um movimento contrário à aplicação de vacinas, principalmente em crianças. Segundo os detratores da prática, vacinas não protegem de verdade e até causam efeitos colaterais como o autismo. Hoje eu quero falar um pouco sobre vacinas, mas principalmente como o ser humano tem uma habilidade incrível de interpretar mal estatísticas e estudos.

Provavelmente todo mundo aqui já sabe, mas só para garantir: vacinas são versões enfraquecidas ou inativas das doenças injetadas no corpo de uma pessoa para que ela desenvolva os anticorpos específicos e possa combater o problema por conta própria se for infectada pela doença de verdade. As primeiras foram desenvolvidas por Edward Jenner no final do século XVIII, combatendo a varíola. Pasteur desenvolveu vacinas contra novas doenças mais de um século depois, e a partir daí a vacinação passou a ser parte integrante da luta humana contra as doenças contagiosas.

Apesar da considerável evolução no quadro da saúde pública humana desde seu advento, a vacinação passa longe de ser perfeita. Diversos fatores influenciam sua eficácia, e como cada organismo reage de uma forma, as vacinas podem funcionar mal em algumas pessoas, não funcionar de vez ou mesmo causar danos para o paciente. A história nos conta que na média funciona muito bem, tanto que quase erradicamos (em países com melhores condições) a maioria das doenças que aterrorizavam nossos antepassados.

Mas não é como o caminho tivesse sido tranquilo até aqui: em outros tempos a informação não navegava tão bem assim entre as pessoas. E como vamos ver na sequência do texto, vacinação é uma coisa que depende muito de ‘cobertura’. Adianta pouco vacinar só alguns membros de uma população. Como os governos de antigamente precisavam vacinar muita gente e não havia capacidade (ou vontade) de fazer campanhas de conscientização, a história está cheia de reações negativas à imunização em larga escala.

Temos uma famosa aqui no Brasil, inclusive. O objetivo era muito nobre: erradicar a varíola. Para quem não sabe muito bem o que é varíola (e agradeçam às vacinas por isso), é uma doença que matou centenas de milhões de pessoas só no século XX. O último caso (natural) registrado foi em 1977, na Somália. Está oficialmente erradicada do mundo. De qualquer forma… Oswaldo Cruz convenceu o congresso a tornar a vacinação contra a varíola obrigatória. E as autoridades brasileiras fizeram isso com todo o cuidado e sensibilidade que lhes são peculiares.

Invadiram casas, espancaram pessoas, fizeram o diabo. E como as condições de vida do brasileiro médio em 1903 eram terrivelmente piores do que são atualmente (e bota terrivelmente piores nisso), o povo estava sem a menor paciência para levar agulhadas. Muita informação errada e muita truculência depois, o povo se ergueu contra a vacinação, e por consequência, o Estado. Não foi só pela vacina, mas ficou conhecida como a Revolta da Vacina. Depois de uma pequena guerra civil nas ruas do Rio de Janeiro, finalmente conseguiram vacinar o povo e a varíola foi erradicada da cidade.

Isso não é só para relembrar você daquela aula de história que você passou dormindo na carteira, é também para situar como vacinas tem sim sua dose de controvérsia. Quase tudo que depende de maciça participação popular tem. Sempre vai ter quem não concorde em ser imunizado, seja lá por qual motivo tiver. Entramos aqui no complicado equilíbrio entre bem comum e liberdade pessoal… alguém vai precisar engolir sapo se precisarmos que todos obedeçam as mesmas regras.

Eu normalmente pendo mais para as liberdades pessoais nas minhas opiniões, mas no caso das vacinas há um complicador: a imunidade do grupo. No caso das vacinas, não é exatamente o indivíduo imunizado que faz as coisas funcionarem, é o conjunto deles. E é aqui que eu trago à tona vários dos argumentos dos que são contra a vacinação obrigatória para explicar melhor esse conceito de imunidade do grupo.

Nem vou ficar discutindo fontes nesse ponto, vamos tratar esses argumentos como bem fundamentados (até porque são) no tange seus dados e estudos. O problema de muita gente ao analisar estatísticas é querer tirar conclusões precipitadas em cima delas.

Os modernos detratores da vacinação citam vários casos de epidemias onde: a vacinação não impediu o surgimento da doença na população; onde a doença se espalhou mais entre os vacinados da população, e por fim, onde os que não foram vacinados não foram afetados. São análises sérias de casos reais e os dados não parecem ser fabricados. Como vacinas podem funcionar de verdade se casos assim acontecem até com alguma frequência?

Vamos então à imunidade do grupo. Existe um certa porcentagem de uma população que precisa estar vacinada contra uma doença contagiosa para que a população inteira se beneficie dela. Doenças diferentes exigem proporções diferentes, até porque elas podem ser espalhar por meios diferentes e ser mais ou menos propensas a se manifestar nos infectados.

Quando uma população atinge a imunidade do grupo, temos tantas pessoas com os anticorpos adequados para uma doença que ela simplesmente não consegue ir muito longe. Uma pessoa vacinada não está 100% imune, até porque 100% é o tipo da coisa que só existe no campo das ideias. Até quem toma a vacina corre o risco de pegar a doença, mas é claro, uma chance bem menor. E por mais contagiosa que seja, não é 100% de chance de infectar ou se manifestar numa pessoa não vacinada.

Do ponto de vista da doença, a chance de se espalhar para uma pessoa vacinada é de 10% (por exemplo), e para uma que não foi, de 90% (novamente, por exemplo). A chance dela de acertar entre os 90% seguidas vezes é imensamente maior do que de acertar os 10% seguidas vezes. A doença precisa de uma sorte absurda para se espalhar entre uma população bem vacinada, o que não significa que um indivíduo qualquer dessa população não tenha no mínimo os 10% de chance de pegar a doença.

Por isso: vacinação não impede mesmo que uma população sofra com uma doença (a não ser que a imunidade do grupo seja tão grande como é no caso da varíola – quase todo mundo nesse mundo tomou a vacina), mas isso não quer dizer que não estejamos MUITO mais seguros com a aplicação em larga escala da vacina. A doença pode aparecer, mas não consegue ir longe, e é justamente isso que se quer conseguir antes de uma possível erradicação.

O outro engano dos anti-vacinas: é claro que em muitos casos os vacinados vão morrer em maior número do que os não-vacinados. Estamos em pleno século XXI, os vacinados são a maioria. É a mesma coisa que metralhar um grupo de presos e chegar a conclusão que ser corintiano aumenta suas chances de morrer metralhado. Evidente que a maioria vai continuar sendo maioria num caso desses. Vacinas não tornam ninguém 100% imune à uma doença.

E para completar: evidente que muitos não vacinados não vão pegar a doença. Imunidade do grupo protege inclusive quem não tomou vacina. Se você está cercado de pessoas que são vacinadas, a doença tem uma chance muito menor de chegar até você.

Aposto que deve ter muito babaca aqui no Brasil que também se reserva ao direito de não acreditar em vacinas, mas provavelmente ainda não é um problema de saúde pública como está ameaçando ser nos EUA. As pessoas tem seu sagrado direito de não entender como as coisas funcionam e tirar conclusões estúpidas dos dados a que são expostas, mas elas jamais podem colocar todo o grupo em risco por isso. Se bem que foi justamente isso que fizeram na eleição passada por essas bandas…

Analfabetismo científico é um problema sério para a sociedade humana. Já fizemos até um texto inteiro sobre isso num desfavor da semana, mas não custa reforçar. E ainda tem um agravante nesse caso dos EUA: não são só os muito pobres e/ou ignorantes que estão caindo nessa onde de revolta da vacina moderna, é gente com estudo e capacidade de buscar e exibir fundamentos para suas opiniões.

Uma coisa é saber ler um texto científico, outra completamente diferente é entender o que se demonstra ali. Ciência boa oferece dados e não fica forçando conclusões sem embasamento. Números podem ser usados para tirar praticamente qualquer conclusão que você quiser, por isso é essencial ter alguma base de conhecimento prévio sobre o assunto para interpretá-los.

Gente que nem sabe como uma vacina funciona está citando dados e fontes como se fossem experts no assunto, forçando uma conclusão onde ela não existe e ainda passando a impressão de algo sério e responsável para os incautos que entram nesse fogo cruzado. Eles acreditam que estão sendo muito lógicos, mas na verdade estão apenas dizendo “tens aquário em casa?”.

Temos que tomar cuidado: contra burrice não existe vacina.

Para dizer que eu estou sendo pago para dizer isso, para dizer que não precisa de vacina porque tem a homeopatia, ou mesmo para dizer que até os burros de lá se esforçam mais: somir@desfavor.com

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ciência, vacina

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