Dia do Axé 2015

Boa noite a todos, vamos dar início à nossa palestra. Sei que muitos de vocês estão surpresos por me ver falar em público, mas somente agora consegui, após muitos anos de estudo, compreender totalmente a Teoria do Axé, responsável pelo mundo como o conhecemos hoje. Compartilho com vocês minhas descobertas.

O Axé era um ritmo musical muito popular entre nossos ancestrais. Consistia basicamente em batuques permeados por letras de música repetitivas rudimentares. Quando digo “rudimentares”, não estou exagerando, o refrão de algumas era composto apenas por vogais. Não raro as letras continham vulgaridades de todos os gêneros. Esta peculiar demonstração cultural dos nossos ancestrais nasceu na região que hoje utilizamos como depósito de lixo do planeta, outrora conhecida como Salvador.

O papel deste obscuro gênero musical na civilização como a conhecemos hoje era pouco conhecido, mas após quase dez anos de estudo, colhi provas suficientes para desvendar os desdobramentos e os danos causados à raça humana.

O gênero inicialmente ficava restrito a uma área pequena, mas depois de quase cinquenta anos de uma mesma facção no poder, o nível cultural da população decaiu drasticamente e o gênero se popularizou. A civilização retornou à barbárie, gerando um cenário caótico, fruto de falta de educação, infraestrutura e segurança pública. A facção que estava no poder exauriu todos os recursos e, devido à sua má gestão, faltaram fundos para custear o auxílio mensal destinado à população, que por tantas décadas os manteve no poder.

Após anúncio do fim desse auxílio mensal, a população explodiu em um surto de raiva, destituindo seus líderes e depredando todo o entorno. Um cenário de devastação caótico que se deu ao som de uma música do gênero Axé. De forma incidental, uma música despretensiosa que relatava o drama de um homem de pênis pequeno que contraía conjunção carnal com uma mulher de vagina excessivamente larga foi mal interpretada por uma população carente de estudo e sua letra foi interpretada como um hino revolucionário.

O povo enfurecido depredava tudo ao seu alcance entoando esta música vulgar, de refrão repetitivo, fazendo brotar uma cidadania equivocada. A música impulsionou a destituição da facção que governava por décadas e ecoou em todos os cantos do país.

Porém, quando tudo acabou, uma população emburrecida se viu diante de um país destruído, sem qualquer perspectiva. Precisavam de um ídolo, de um líder, de um salvador. Em um grande mal entendido, erro de interpretação, patrocinado pelos anos de ensino público deplorável, depreenderam que o nome da cidade onde nasceu o Axé, Salvador, significava que seu salvador deveria sair dali. Para concluir que o autor da música que se tornara o hino da revolução deveria ser seu novo líder, foi um passo.

Foi então que subiu ao poder este novo líder, graças a uma série de equívocos e falta de cognição. Pouco se sabe sobre ele, já que até mesmo a escrita foi abandonada no período em que ele esteve no poder. Sabemos apenas que era conhecido como “Brown”. Brown conseguiu ser ainda pior que seus antecessores, acabando com o que restava de educação pública, estudos científicos e qualquer investimento intelectual. O analfabetismo atingiu 99% da população, a expectativa de vida caiu para 25 anos e o Axé era o único ritmo musical permitido.

A população passou a se comunicar através de batuques e pequenos gritos de ordem. Brown fazia longos discursos, todos sem nexo, sem qualquer coerência, mas o povo aplaudia, pois não tinha discernimento para perceber o aglomerado de imbecilidades que eram ditas. Organismos internacionais começaram a tentar interferir, mas Brown era querido pelo povo, que não aceitava outro líder no comando.

Os métodos anticoncepcionais foram banidos, a população triplicou de tamanho em poucos anos. As aulas de matemática e português foram substituídas por aulas de percussão. As poucas cabeças pensantes que ainda restavam, se exilaram em outros países, caso dos meus ancestrais. O povo, apesar de sofrer todo tipo de privação, não se revoltava contra seu líder, parecia enfeitiçado por aquele toque de tambor.

Duas grandes potências mundiais perceberam naquela situação uma oportunidade. O país tinha muitos recursos naturais, dentre ele um muito valioso, que já havia desencadeado guerras antes.

Simulando uma falsa preocupação com o bem estar da população, uma das potências se propôs a invadir o país para livrá-los daquela situação degradante, enquanto que outra grande potência instalou ali suas tropas a título de garantir a soberania e o direito ao livre exercício cultural do país. Ambas as potências planejavam o mesmo: se apoderar do país e de seus recursos naturais.

O que muitos ignoravam, ou chamavam de mera crendice, é a “Maldição de Brown”. Desde os tempos mais remotos, Brown carregava consigo uma maldição: tudo onde tocava gerava falha, erro, destruição. As grandes potências mundiais subestimaram A Maldição de Brown, pensaram que seu poderio bélico era invencível e iniciaram uma guerra sem precedentes nas terras de Brown. Os poucos que conheciam a força da Maldição de Brown, dentre eles meus ancestrais, começaram a construir bunkers, estocar comida e se preparar para o pior, mesmo estando do outro lado do mundo.

Brown, alheio a tudo, continuava com suas pregações sem sentido e o povo o seguia. Iniciou-se uma guerra no território nacional e a população não parecia se importar, continuavam saindo às ruas, em manifestações comemorativas conhecidas como “micaretas”, mesmo durante bombardeios. Aos poucos, foram sendo dizimados como Dodôs. As duas potências mundiais começaram a ganhar aliados, que se juntavam à guerra com promessa de parte dos recursos em caso de vitória.

Não demorou para que o mundo se divida em duas facções, guerreando a título do bem estar de um povo que eles mesmos estavam dizimando. Brown finalmente percebeu que algo estava errado e correu para as florestas. Lá era imbatível, se escondia, se camuflava, era impossível encontra-lo dada sua desenvoltura entre as árvores, seu habitat natural. Não foi visto por muito tempo. Mas a maldição de Brown nunca falhava.

Tropas da ambas as potências mundiais caçavam Brown pela selva, uns para mata-lo, outros para protege-lo. Começaram a deslocar armas no meio da vegetação, para atacar uns aos outros. Em pouco tempo aquela densa floresta virou centro de lançamento de mísseis e todo tipo de armas, inclusive nucleares. Era um ponto estratégico: de lá se poderia atacar qualquer parte do país e a densa mata encobria seu esconderijo.

Foi quando a Maldição de Brown deu as caras. Após muito tempo isolado na selva, Brown acordou de um cochilo no topo de uma árvore e viu o que lhe parecia ser um instrumento de percussão no chão. Tomado por uma reação instintiva, desceu da árvore com pressa, sentou-se à frente do artefato e começou a batucar nele, para desespero de tropas que assistiam tudo à distância gesticulando. Brown não compreendia, mas presumiu que estava sendo aplaudido. Continuou a tocar, cada vez com mais força. Um dos soldados tentou correr em sua direção, mas era tarde. Uma grande explosão, seguida de um clarão e uma nuvem em forma de cogumelo se formaram.

O artefato estava sendo transportado pelas tropas para outro lugar. Sua explosão acidental ali foi catastrófica, pois ele se encontrava próximo a outros artefatos, gerando uma detonação em cadeia. As explosões se seguiram, uma a uma, em sequência, até chegar à parte da selva ocupada pelos rivais e detonar seus artefatos também. Centenas de bombas explodiram, centenas de mísseis foram lançados por engano, acreditando que as explosões fossem um ataque deliberado. O caos se instaurou. Uma grande nuvem negra cobriu o planeta por meses. Cerca de 95% da população mundial não resistiu.

Os poucos que sobreviveram se encarregaram de repovoar o planeta, e graças a seus esforços, aqui estamos nós. Esta é uma história que merece ser contada, para que não cometamos os mesmos erros novamente. Fica a lição para a sociedade que estamos reconstruindo: muito cuidado com o batuque que hipnotiza um povo, as consequências podem ser muito piores do que se imagina. Todo cuidado é pouco, instrumentos de emburrecimento de massa podem sair do controle.

Para dizer que como escritora de ficção eu sou uma bela bosta, para dizer que foi uma história com final feliz porque Brown morreu ou ainda para não entender porra nenhuma e provar que de ficção esta história tem muito pouco: sally@desfavor.com

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