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Uma pitada de histeria.

Uma pitada de histeria.

| Desfavor | | 47 comentários em Uma pitada de histeria.

+Comentários pedófilos no Twitter durante “MasterChef Júnior” geram revolta. Durante estreia do programa, na terça-feira (20), perfis fizeram comentários criminosos em relação a uma das participantes. Nas redes, revolta e ameaça de linchamento.

Pedofilia? Nós achamos os comentários péssimos, mas… pedofilia? Talvez a verdadeira tara aqui seja a do linchamento. Desfavor da semana.

SALLY

Um reality show de culinária estrelado por crianças causou a polêmica da semana. Uma participante chamada Valentina, de apenas 12 anos de idade, foi vítima de comentários inapropriados em redes sociais e o que seria apenas uma imbecilidade foi amplamente divulgado como crime. Gente, crime é coisa séria, babaquice ainda não é crime no Brasil. E se querem repudiar algo, o jeito mais inteligente não é divulga-lo.

Quando Valentina foi eliminada do programa e despertou comentários como “perdeu o programa mas ganhou um namorado” ou “se ela consentir, é crime?” ou coisas piores como um comentário sugerindo que ela poderia ser atriz pornô se quisesse. São comentários bacanas? Não, não são. São péssimos e retratam o quanto vivemos em uma sociedade doente, sem respeito e machista. Mas… crime de pedofilia? Menos, gente. Bem menos.

Esse grupo de pessoas peculiares, que esculhambam reality show mas assistem Master Chef, inflacionaram uma mera babaquice de internet (muitos comentários tinham gargalhadas ao final, indicando claramente ser uma piada, por mais infeliz que fosse) e começaram campanhas, ameaças e histeria coletiva. Pedem que os responsáveis pelos comentários sejam processados. Isso é um desfavor em diversos aspectos.

Primeiro que por mais nojento, babaca e escroto que seja, não se pode comparar uma pessoa que faz um comentário infeliz, muitas vezes brincando, a uma que estupra uma criança. Há sim uma escala de reprovabilidade que deve ser respeitada, sob pena de banalizar pedofilia. Se muitos virarem pedófilos (e, não se enganem, muitos fazem comentários inapropriados de todos os gêneros), acaba que a pedofilia não fica tão grave. Soa mais comum. Pior: acusação de pedofilia perde força, como perdeu a de racismo, por causa de histeria e com isso as acusações não são mais levadas com a seriedade necessária. Nada pior para as vítimas que ter acusações desacreditadas.

Também é um desfavor por fomentar a sensação de impunidade. Essas pessoas não serão condenadas por crime de pedofilia. Legalmente, não é pedofilia, desculpa. Muito vai se falar, nada vai se fazer. Isso vai gerar, para os leigos, a sensação de que crime de pedofilia não tem punição no Brasil. Esse enfraquecimento da credibilidade do Judiciário, que já não está essas maravilhas, é um baita incentivo para que quem se segurava para não cometer crime por medo de ser punido, não segure mais.

O que fica na cabeça do povão é: “pedofilia não dá em nada no Brasil, não aconteceu nada com os caras que falaram da menina do Master Chef”. Em vez de combater a pedofilia, com esse circo que armaram, a longo prazo, acabarão por fazer aumentar o numero de casos. Basta estudar um pouquinho de criminologia para compreender o que eu estou falando. Mas quem quer pensar a longo prazo? Não, não. Vamos ser imediatistas e deixar nossa raiva tomar conta das nossas ações. Parabéns.

Sempre vai ter aquele ser humano com uma severa falha cognitiva, que eu apelidei de “Quer Dizer”. O ser humano “Quer Dizer” depreende algo absurdo do que você disse, em uma falácia muito da mal feita. O ser humano “Quer Dizer” vai argumentar da seguinte forma: “Quer dizer que você defende o que esses caras fizeram?”. Depois que a pessoa planta a primeira conclusão falsa, ela vai ser perdendo e piorando o argumento (reductio ad absurdum): “Quer dizer que você acha aceitável fazer isso? Quer dizer que você gostaria que fizessem isso com a sua filha?”. É muito cansativo argumentar com gente assim.

Não, eu não acho bonito nem aceitável o que fizeram. Eu acho babaca, nojento, medonho, reprovável, tudo de ruim. Mas isso não torna o ato crime. O crime é algo muito mais grave do que isso. Mania de brasileiro de querer reprovar tudo como sendo crime. Existem coisas horrendas que não são crimes, custa tanto assim aceitar? Certo ou errado, é assim que as coisas são. E divulgar esses babacas é iluminar quem deveria morrer na escuridão.

Outro ponto relevante: isso é um espelho da nossa sociedade. Se você não gosta da imagem refletida, não adianta chutar o espelho. Nossa sociedade é assim. A regra é essa: comentários infelizes o tempo todo. Isso se resolve com educação, e não com linchamento de quem os faz. Muita gritaria, pouca atitude. Não se muda uma sociedade com gritaria. Não se muda uma sociedade como a nossa com leis, pois aqui existem leis que “não pegam”. Se existe alguma forma de forçar uma mudança social é com reprovação.

No dia em que for socialmente reprovável dizer barbaridades sobre uma menina de 12 anos, aí as pessoas vão refrear seus instintos asquerosos e calar a porra da boca, por medo de terem sua imagem arranhada. Imagem é tudo hoje em dia. Adultos se comportam como adolescentes, carentes de aprovação social e aplausos. E não é com essa histeria que se gera uma reprovação social eficiente. Melhor seria se fossem conscientizados, educados, mas isso nem tão cedo. Então, que seja por reprovação social e não virtual. Na prática, as asquerosidades continuam, na rede social todo mundo e bonzinho.

Aliás, eu tenho a teoria de que foi só essa sede por aceitação social que causou a histeria. Alicate comentou. Foi lá postar uma reprovação, quando ele fala e faz coisas muito piores. Mas ele foi lá registrar sua indignação, para pegar sua presunção social de bom cidadão. E conseguiu, muita gente que leu o elogiou e se referiu a ele como alguém de bem. Palavras estão valendo mais do que atos. É a Síndrome do Evangélico: faz um monte de bosta, mas solta um discurso bonitinho e hipócrita, para acabar sendo bem visto socialmente. Assim caminha a humanidade: indignados em rede social, hipócritas na vida real.

Por mais nojento, asqueroso e vil que seja um comentário, eu continuo querendo viver em uma sociedade onde todo mundo pode falar o que pensa. O caminho não é proibirem as pessoas de falar, nem excluir os comentários, como muitas redes sociais fizeram. Não adianta nada, exclui o comentário ali e na vida real essa mentalidade continua.

Os pais de Valentina se dizem chocados. Por favor, não me ofendam. Tem todo o direito de estarem indignados, todos nós estamos, mas quem expõe a filha a público em uma sociedade notoriamente doentia como a nossa não deveria se dizer surpreso com esse tipo de chorume vindo à tona. Reprovável? Muito. Surpreendente? Infelizmente não. O que Valentina ouviu nas redes sociais ela provavelmente escuta na rua todo santo dia. Não é novidade nem motivo para choque, vai desculpar.

Piada não é pedofilia. Comentário imbecil não é pedofilia. É desproporcional jogar no mesmo saco quem fez uma piadinha infeliz com quem tirou a roupa de uma criança e fez sexo com ela – o que não quer dizer que não devamos reprovar com severidade quem fez um comentário inapropriado. É hora das pessoas perceberem que controlar o mundinho da internet não modifica o mundo real. Chega de foco em formatar mundo virtual, vamos mudar a matriz e não o espelho.

Para me acusar de pedofilia, para se comportar como um Ser Humano “Quer Dizer” ou ainda para esclarecer que pedofilia é quando os outros fazem: sally@desfavor.com

SOMIR

É sempre um saco tomar uma postura menos histérica quando a ideia de pedofilia está próxima da discussão. Normalmente as pessoas já não gostam de gastar mais do que meio segundo pensando nas opiniões emitidas, e quando tem um tema dessas, é ainda mais fácil que qualquer “talvez” que escrevamos aqui seja entendido como endosso aos comentários cretinos e completamente inapropriados feitos em relação à menina do MasterChef Jr. Para o brasileiro médio jamais vai existir um meio termo, pensar dói: ou você tem exatamente a mesma opinião deles ou está completamente do lado oposto.

Então, como achar absurdos os comentários ao mesmo tempo que não acha razoável taxar os cidadãos responsáveis por eles de pedófilos? Bom, esse deveria ser o ponto de partida lógico da história: pedofilia é uma acusação gravíssima na sociedade moderna. É um problema sério que algumas pessoas tem. Não é um fetiche estranho, é um desastre que acontece no cérebro de alguém e costuma deixar marcas eternas. Posso até ser desmentido se alguém souber mais, mas pedófilo se é. O que dá pra fazer é se controlar, e de preferência com ajuda de especialistas. O que eu quero dizer aqui é que não dá pra acusar alguém de pedófilo “só por hoje”, é uma declaração que definiria a pessoa para sempre. Claro que na dúvida pró vítima, mas é razoável tomar mais cuidado do que o habitual para colocar esse rótulo em alguém.

E por mais que eu entenda quem tenha achado ridículos os comentários expostos pela grande mídia – são de uma falta de bom senso ímpar – usar esse pedacinho da informação para definir que esses cidadãos são pedófilos é mais ou menos como ler um comentário de um adolescente que tem raiva dos colegas de escola e definir que ele é o próximo atirador. Claro que sinais como esses devem ligar algum alerta, mas cravar que a pessoa é aquilo não soa como análise racional dos fatos apresentados. Qual o contexto? Existem elementos exteriores que suportam essa presunção? A pessoa não apenas errou a mão numa brincadeira? Estamos lembrando que uma das fundações do nosso pacto social é que todos são inocentes até se provar o contrário?

Se a mídia estivesse usando manchetes como “Imbecis fazem comentários completamente cretinos contra uma menina” eu teria achado razoável e nem dado bola pro assunto. Liberdade de expressão não é liberdade de repercussão: fala o que quiser, pague o preço LEGAL por isso. Até mesmo se estivessem tratando como machismo e objetificação da mulher estaria de ótimo tamanho. Ao invés de trazer a pedofilia para o centro da discussão, o fato de terem direcionado isso para uma menina de 12 anos deveria ser um agravante. Olha, pra vocês verem como eu estou mesmo disposto a não defender demais os caras que fizeram isso, se tivessem se concentrado no fato que eles fizeram “comentários pedófilos” ao invés de chamá-los de pedófilos eu acho que nem ia topar o tema. Não seria muito preciso, mas tem uma sutileza aqui: você pode fazer uma observação qualificada mesmo sem partilhar da presunção.

E essas observações (des)qualificadas são típicas de uma forma de expressão que jamais deveria ser crime: o humor. Para falar algo que gere uma reação no seu público, você assume uma presunção momentânea e fala através dela. Se um homem conhecido por fazer muitas piadas escreve que viraria gay por um ator famoso, a presunção é de piada ou de escapada do armário? Normalmente as pessoas como um senso de humor minimamente desenvolvido reconhecem rapidamente quando seu interlocutor está “vestindo” uma outra personalidade momentaneamente só para te fazer rir. Mas, eu sei, pra muita gente mesmo se fossem piadas aqueles comentários, ainda não teriam a menor graça. Honestamente? Azar seu. O dia que piada tiver obrigação de agradar todos os públicos, o humor morre por falta de assunto.

Mesmo que você ache que foi uma piada de mau gosto, se foi uma piada, cidadão não deveria ser taxado de pedófilo. É usar um canhão para matar uma mosca. E sabem porque eu acho que tinha um tanto de humor ali? Porque o Brasil é um país socialmente atrasado. A tendência em países assim é a lei esteja consideravelmente à frente da mentalidade de seus cidadãos médios. Em temas que envolvem sexualidade, então… pra muita gente nesse país é parte do dia a dia considerar uma menina de 12 anos como alguém tremendamente próxima do início de sua vida sexual. Quem já lidou com gente “menos evoluída” sabe que o filtro pra falar bobagem pra crianças e pré-adolescentes é praticamente nulo. A lei é mais esperta que isso e deixou a linha de corte nos 14. Mas o povo ainda precisa alcançar essa lei… a tendência de sociedades mais avançadas é o início da vida sexual mais tarde. O que faz muito sentido. Novamente, a lei passou na frente pra ir corrigindo lentamente a mentalidade do povo, mas provavelmente ainda não conseguiu seus resultados.

Foi o que eu disse naquele texto recente sobre um assunto parecido: muito cuidado para não misturar alguém sem noção que acha bacana fazer comentários impróprios contra uma pré-adolescente com alguém que sente atração sexual exclusiva por crianças. O sem noção provavelmente não vai fazer mais besteira se escutar poucas e boas pelas suas palavras, o pedófilo está nessa para a vida. E outra, o pedófilo sabe que vai ser linchado onde quer que vá se descobrirem, é provavelmente o último que vai abrir a boca numa rede social com uma hashtag vista por milhões de pessoas! As pessoas parecem gostar tanto da ideia de pedófilos serem tão fáceis de serem desmascarados que entram nesse barco sem pensar duas vezes: “Ah lá! Não precisa temer, se for pedófilo vai se acusar com a internet toda vendo!”

Vai nessa… histeria e julgamentos precipitados até ajudam os verdadeiros pedófilos. Repito a conclusão daquele texto. Quantas pessoas serão linchadas até perceberem que isso não vai resolver nada?

E pra pensar em casa: e se fossem mulheres falando isso de um menino de 12 anos? Seria notícia? E se ela fosse mais moreninha? Será?

Para dizer que por colocar em dúvida a pedofilia dos babacas eu obviamente estou defendendo tudo o que falaram, para dizer que o brasileiro só é moralista com plateia, ou pra dizer que eu estou monotemático (calhou…): somir@desfavor.com


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