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Colunas

Mente suja.

Valentina acelera o passo, desviando dos transeuntes enquanto procura por seu cartão de acesso na mochila. A ponta dos dedos sente a superfície plástica por baixo de um tecido, fazendo-a olhar para baixo. Ele estava enrolado numa calcinha, parcialmente preso pela tampa do notebook. Quando finalmente consegue desvencilhá-lo da bagunça, sente um tranco.

“Ei!”

O impacto a faz derrubar a mochila, derramando seu conteúdo no chão. Ela olha para frente, um homem de terno está em seu caminho. Ele transforma a expressão assustada num sorriso.

“Cuidado, garota.”

“Desculpa, eu estava distraída…” – Valentina responde o sorriso. Ela cai em si, olha para seus pertences esparramados pelo chão.

O homem se abaixa em direção ao notebook, ela faz o mesmo. Valentina é mais rápida, acertando o queixo do homem com a testa. Ele apenas ri enquanto ela se desculpa novamente. Os dois continuam buscando os itens perdidos da mochila, ela diz que estava com a cabeça na Lua, ele diz que tudo bem. Os dois trocam alguns sorrisos simpáticos e logo terminam o serviço. Valentina fecha a mochila, agradece e começa a andar de novo.

“Moça!”

Ela olha para trás.

“Faltou isso.”

O homem está visivelmente envergonhado, segurando uma minúscula calcinha de renda na mão, próxima ao corpo como se não quisesse chamar atenção. Ela segura uma risada enquanto dá passos rápidos na direção dele. Os dois trocam um olhar debochado enquanto ela recupera a peça de roupa num movimento rápido.

“Você não tem vergonha disso?” – uma voz feminina interpela.

Uma mulher aponta o celular para os dois. Ela tem cabelos curtos multicoloridos, e grossos óculos de armação preta que mal cabem no seu rosto inchado.

“Quantos anos tem essa menina, seu pedófilo nojento?”

“Veja bem, eu só ajudei ela a pegar as coisas que caíram no chão…” – o homem fica pálido.

“EX-POS-TO!” – a mulher diz com uma expressão raivosa.

“Diz para ela que eu só estava te ajudando…”

Valentina faz uma expressão de pânico. Olha para ambos algumas vezes como se fosse dizer alguma coisa, mas antes que possa abrir a boca, começa a correr para longe. Escuta o pedido desesperado do homem para que volte, mas não o faz. Pouco mais de duas ruas adiante, ela para diante da portaria de um prédio, olhando ao redor algumas vezes para garantir que ninguém a estava seguindo. Aperta o interruptor apressadamente.

A porta se abre. Uma senhora de meia idade está do outro lado, expressão irritada. Ela abre espaço para Valentina, que entra rapidamente.

“É a terceira vez só nesta semana que você está atrasada, menina.”

“Minha mochila caiu, eu tive que pegar minhas coisas…”

“Todo dia tem uma desculpa, não? Mas dessa vez você vai pagar por isso. Hoje sua comissão vai ser zerada.”

“Pelo amor de Deus, Cá, só eu tenho emprego em casa. Minha mãe foi demitida semana passada, eu te disse, lembra?”

“Valentina, isso é mais um motivo para você ser responsável. Não é culpa minha que sua mãe fez piada com o sofrimento de um cachorro.”

“Mas foi em casa com a melhor amiga dela…”

“O que eu sempre digo, meu amor? O seu melhor amigo é o silêncio.”

Valentina suspira, derrotada. Ela sobe as escadas rumo ao primeiro andar. Ela acena com a cabeça para dois enormes seguranças armados, e eles abrem uma grande porta de correr. No antigo salão de festas do que já tinha sido um condomínio residencial, agora há um vestiário. Dezenas de garotas de todas as idades provam roupas, penteiam os cabelos e retocam a maquiagem. A imensa maioria delas veste roupas provocantes, absolutamente incompatíveis com suas idades aparentes.

Ela coloca a mochila sobre uma das penteadeiras e começa a prender os cabelos.

“Val, Val! É você nesse vídeo?” – uma das outras garotas, uma jovem mal saída da puberdade vestida apenas com uma lingerie vermelha se aproxima, celular na mão.

No vídeo, um homem entrega uma calcinha minúscula para uma jovem de cabelos dourados. Valentina se reconhece.

“Foi a Baleia?”

“Foi. Eu não sabia que aquela ffff estava de novo aqui.”

“Ffff? Você está com o chip?”

“Minha mãe colocou ontem, gastou todo o dinheiro que a gente tinha! Disse que não quer que aconteça comigo o que aconteceu com o meu pai quando ele não usou os pronomes certos da chefe dele…”

“Qual o nível?”

“Oito.”

“Oito? Não dá para falar safadeza nenhuma com o oito! Você não vai ganhar gorjeta nenhuma hoje.”

“A Cá tirou tudo mesmo porque eu atrasei, então fff…”

As duas se voltam para o celular. Na tela, Enzo Filho, um dos maiores SafeTubers do país. Ele grita para a câmera, falando sobre os horrores da exploração infantil.

“É por isso que eu digo, tem que aprovar o novo chip! Porque gente como o Roberto Silveira que trabalha na Unibook vai continuar abusando de criança se não tiver controle de verdade. Não adianta só o trabalho de gente de bem expondo esses canalhas, a mudança tem que vir de dentro!” – Enzo está com a foto do homem e todos seus dados pessoais num canto da tela.

“Ele era cliente, Val?” – a jovem seminua volta seu olhar para Valentina.

“Não. Mas a B… ah, mmm… a goooo… a empoderada sabe da gente, se eu fico lá e ela me reconhece, vai cobrar da Cá e aí que eu estou na rua mesmo.”

“Não pode nem gorda no nível oito?”

“Não… mas empoderada dá no mesmo…”

Valentina e a garota riem. As duas voltam para seus espelhos, e continuam a se preparar para mais um dia de trabalho. Pouco mais de uma hora depois, a senhora que as garotas chamam de Cá adentra o vestiário. Ela observa o ambiente rapidamente até encontrar Valentina, entretida no seu celular.

“Valentina, você tem um cliente.”

Valentina se levanta, ajeita o sutiã e se aproxima.

“Você está ficando velha para esse trabalho…” – a senhora olha Valentina de cima para baixo.

“Eu só faço aniversário em dezembro…” – Valentina sorri de forma sarcástica.

“762. Duas horas. Sigilo total ou você não vai chegar aos 16, querida.”

Valentina fica séria imediatamente. Parece pensar alguns momentos com a cabeça abaixada, mas um toque nos ombros da senhora à sua frente a coloca em movimento rumo ao elevador. Valentina sobe até o sétimo andar com o coração quase saindo pela boca. Quando a porta se abre, ela fecha os olhos, respira fundo e segue em direção ao apartamento.

Ela dá duas batidas na porta, e uma voz masculina a convida a entrar. Ela entra e se depara com o cliente: Enzo Filho. Ele faz um sinal com a mão para ela ficar longe, e com a outra começa uma gravação:

“Atualização, família! Aquele safado aproveitador que estava dando calcinha de presente para uma criança já foi demitido! Quero agradecer à Unibook por ter consciência social e ser uma aliada da nossa causa. Conseguimos! Mas não é para ficar relaxado, não, não, não! Continuem vigiando.”

Ele muda a expressão sorridente assim que desliga a câmera. Volta-se para Valentina:

“Eu tenho um amigo que falou muito bem de você.”

Valentina dá um sorriso encabulado. Ela pensa por alguns segundos antes de responder:

“Eu… eu sou fã do seu trabalho… eu… eu te vejo desde que era pequenininha!”

“Ah, mas você ainda é pequenininha.” – ele começa a se aproximar.

“Eu… eu não estou me sentindo muito bem hoje, será que a gente não pode… remarcar?”

“Eu sou um homem muito ocupado. Você tem noção da dificuldade de parar tudo para vir aqui te ver? Com o chip eu tive que fazer malabarismo para marcar essa hora. Eu sou muito visado, sabe?” – Enzo dá dois toques na cabeça, indicando a posição do chip.

“Eu agradeço, mas… não é um dia bom pra mim.”

“Ah, menstruada?”

Valentina vacila alguns momentos, e concorda com um aceno.

“Eu imaginei que nesses lugares isso não seria problema… mas não se preocupa, se você for tão boa quanto me disseram, vale a pena mesmo com a sua b… ah, droga de chip!”

Enzo começa a tirar a roupa enquanto se aproxima de um balcão. Ele abre uma pequena maleta e tira de dentro dela um equipamento eletrônico estranho.

“Vocês não sabem a sorte que tem de não viver com uma m… de chip desses. A Megapple me paga uma nota para usar essa porcaria, mas eu nem consigo bater uma ppp… em paz. Por sorte, eles também me deram isso. Sabe o que é?”

Valentina diz que não com a cabeça.

“Isso é a liberdade. Ele desativa o chip por duas horas, colocando um monte de pensamentos inocentes no lugar.”

Enzo aperta um botão no equipamento.

“Ah, caralho! Porra, buceta, cu! Hahaha! Hoje eu quero cheirar um quilo de pó na sua bunda, menina! Liberdade! Li-ber-da-de!”

Valentina começa a ficar pensativa. Enzo interrompe:

“Tira a roupa, fica pelada de quatro na cama. Se não, eu vou te encher de porrada, sua putinha! Hahahaha! Eu adoro desligar essa merda de chip.”

Valentina começa a se despir. Enzo abre um pacote com um pó branco, puxando uma quantidade na ponta do dedo pelo nariz.

“Graças a Deus que tem pobrinha que nem você no mundo, sabe? Você nem imagina quanta vadiazinha se oferece pra mim todos os dias, mas como a mamãe coloca chip, eu não posso aproveitar.”

“Por que elas não podem falar palavrão?” – Valentina vai se posicionando na cama.

“Não, porque se ela for menor de idade, essa bosta de chip registra tudo e manda direto para a polícia. Aqui vocês cobram caro, mas é bem melhor do que pagar indenização.” – Enzo se aproxima.

Valentina considera dizer alguma coisa, mas não o faz.

Passam-se duas horas. Valentina e Enzo descem até o primeiro andar, e uma senhora os espera com um sorriso no rosto.

“O senhor gostou do serviço?”

“Ela não é de reclamar de dor, entendo o que vêem nela. Mas, não vou pagar nenhum extra… ela ficou quieta o tempo inteiro. Tem que falar umas bobagens, menina. O serviço não fica tão bom.”

“Perdão, senhor. Ela vai ser disciplinada. Peça desculpas, Valentina!”

Valentina abaixa a cabeça. A cafetina dá um tapa na nuca da garota.

“Desculpa, seu Enzo. Eu queria falar um monte de palavrões para você. Mas eu não tinha a liberdade…” – Valentina dá dois toques na lateral da cabeça.

Enzo e a senhora arregalam os olhos imediatamente. O som de sirenes começa a ser ouvido na rua.

Para dizer que foi um jeito pesado de comemorar o Dia da Exclusão Social, para dizer que nem parece ficção, ou mesmo para dizer que vai me denunciar: somir@desfavor.com

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contos, dia da exclusão, histeria punitiva

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