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Se colar, colou…

Se colar, colou…

| Desfavor | | 26 comentários em Se colar, colou…

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) abriu hoje a Assembleia Geral da ONU com um discurso de cerca de pouco mais de 14 minutos. No discurso, ele afirmou que o Brasil é alvo de campanha de desinformação sobre as queimadas, reafirmou que agiu para enfrentar o combate ao coronavírus com o auxílio emergencial e voltou a criticar a Venezuela, acusando um navio do país de ser o responsável pela derramamento de óleo no litoral brasileiro no ano passado. LINK


Políticos sempre foram alérgicos à verdade, mas esse grau de desconexão parece… patológico. Desfavor da Semana.

SALLY

Passar vergonha não é uma novidade para este governo, mas fazer uma puta vergonha na ONU, com repercussão mundial, não é algo que a gente veja todo dia. Tirando os Memes que rodaram o mundo ridicularizado e tirando a credibilidade do Bolsonaro, esse discurso causou um dano terrível ao país.

Surpreendentemente, o mundo não é composto por Bolso-fãs dispostos a engolir e justificar qualquer mentira e, quem diria, as mentiras de Bolsonaro foram não apenas desmentidas pelo mundo todo, como ainda viraram motivo de piada. Se havia algum progresso na forma como o mundo via o Brasil, ele acaba de ser jogado no lixo. Vocês têm alguma noção do que o resto do mundo está pensando do povo brasileiro agora?

Bolsonaro disse que o Brasil é vítima de uma campanha brutal de desinformação envolvendo Amazônia e Pantanal. Foda-se que tem foto de satélite, foda-se que a NASA mostrou que tá tudo pegando fogo de uma forma completamente diferente dos outros anos, foda-se qualquer evidência científica. É aquele argumento terraplanista: todos mentem para você, apenas o Bolsonaro conhece a verdade, e a verdade é uma teoria conspiratória. O que vocês acham que estão pensando sobre um povo que elege e mantém um cara desses no poder?

Também disse que os responsáveis pelas queimadas são os índios e os caboclos, coisa que, por premissa, eu nem duvidaria, já que índio, no Brasil, é mercenário ao extremo. Mas, novamente, imagens de satélites mostram que as queimadas curiosamente acontecem sempre no entorno de áreas de propriedade de ruralistas que buscavam expandir suas terras para criação de gado mas não conseguiram pelas vias legais. Essas imagens rodaram o mundo. O que vocês acham que estão pensando sobre um povo que permite que um Presidente minta descaradamente e não faz nada?

O sujeito é tão obtuso que mente em simples questões matemáticas, que podem ser calculadas por qualquer um que não esteja disposto a distorcer a realidade: disse que pagou auxílio no valor total de mil dólares para 65 milhões de pessoas. Não é verdade, nem o valor, nem a quantidade de pessoas (ainda mais depois dos últimos cortes). Mas tem algo mais básico aqui: não é motivo de orgulho que tantas pessoas no país precisem desse auxílio. É como espalhar para o mundo que você, adulto funcional, depende da mesada da sua mãe e ela te paga mil dólares por mês. É um alarde de fracasso.

Ele também disse que não faltaram, nos hospitais, recursos para atender os doentes de coronavírus. Não é verdade. Faltou EPI (por isso o país detém um dos recordes mundiais de médicos contaminados), faltaram respiradores (por isso muitos médicos tiveram que escolher quem vive e quem morre), faltaram testes (os gênios compraram os testes mas não os insumos necessários para realiza-los), faltou até o sedativo necessário para intubar paciente. Para terminar, faltou inclusive lugar para colocar os corpos, o que obrigou diversos estados a comprar contêineres refrigerados para empilhar corpos no pátio de hospital. O sujeito mente descaradamente sobre os mortos em uma tragédia e o país não faz nada? Qual é o problema de vocês?

Bolsonaro ainda falou em “cristofobia”. Onde? No Brasil é que não é. Um suposto Estado Laico onde tem crucifixo até em tribunal definitivamente não é cristofóbico. É o país com mais número de católicos do mundo. Seria o mesmo que dizer que na cracolândia são “drogofóbicos”. Se estiver falando de evangélicos, não me parece nada cristofóbico não pagar impostos, ter dívidas astronômicas perdoadas e ter uma boa parte da bancada de políticos representada por eles. Um povo que aceita essas falas pacificamente é um povo que dificilmente vai ter credibilidade e ser respeitado.

Enfim, a gente poderia passar o dia todo desmentindo o Poket, mas a imprensa mundial já o está fazendo. O que me parece um desfavor enorme e que ninguém está vendo é a indiferença brasileira a isso. E quando eu falo em indiferença, me refiro a que ninguém se importa. Criticar em redes sociais definitivamente não é se importar.

Parte das pessoas até comemorou o boçal falando muita merda em público para que “o mundo saiba o idiota que ele é”. Olha, se o dono da sua empresa se porta feito um retardado, por menos que você goste dele, isso não é motivo para comemorar: quando o lugar onde você trabalha desvaloriza, você, como profissional, desvaloriza junto. O mesmo vale para o país. O mundo está começando a ter alguma noção da burrice, incompetência e falta de ética do Brasil. Isso não respinga apenas no Bolsonaro, respinga nos brasileiros, que foram quem colocou o sujeito lá e quem o mantém no poder.

Não é como se o Presidente de um país fosse ter uma fama péssima, mas o povo mantivesse uma legal. Essa imagem de “povo vítima de Presidente” só cola em país subdesenvolvido e infantilizado. Qualquer país um pouco mais sério sabe que é o povo que coloca o Presidente lá e que o Presidente é o reflexo desse povo. Então, sinceramente, comemorar o quanto o Bolsonaro está se queimando é o mesmo que cursar uma universidade merda e achar graça quando a mídia mete o pau nela. Acorda! Seu diploma também vai valer merda depois disso.

Não tem nada para comemorar. O Brasil está passando uma vergonha atrás da outra (vide as notícias da coluna “A Semana Desfavor”) e, em vez de olhar para os próprios problemas, está apontando o dedo para países ao lado, como a Argentina, e chamando de “nova Venezuela”, dizendo que “vão comer cachorro” e tripudiando dos números. O Brasil ainda não percebeu que ele está muito mais fodido do que a Argentina e que todos seus vizinhos. Ainda não caiu a ficha das mortes, da crise econômica, do desmantelamento da ciência e da educação, que cobrarão preços altíssimos no futuro.

A Argentina está fodida economicamente desde a década de 90, então, que a economia vá mal não é nenhuma novidade. Mas o Brasil? O Brasil estava bem, o Brasil tinha tudo para ser uma das grandes potências mundiais… e agora está ao volante dirigindo em alta velocidade para um grande precipício. Em vez de desviar do precipício (sim, ainda dá tempo), o brasileiro HUE está olhando para o lado pela janela e rindo do vizinho.

Por sinal é assustadora a quantidade de notícias inquestionavelmente mentirosas sobre a Argentina que são publicadas no Brasil. Poucas pessoas neste mundo odeiam tanto Peronistas e principalmente Kirchneristas como eu (coisa que venho dizendo faz bastante tempo por aqui). É um ódio muito sincero, de coração, mas não turva meu discernimento: as notícias que publicam sobre a Argentina são grotescas, falsas, mentirosas. Precisam ter alguém que esteja “pior” para apontar e dizer “viu como a esquerda não funciona?”.

A esquerda de fato não funciona. Fato. Tomara que todos os Kirchneristas desapareçam da face da Terra. Mas Bolsonaro também não funciona. Parem de olhar pro lado, de apontar o erro dos outros, de mentir descaradamente para sustentar uma narrativa pró-político, e, acima de tudo, parem de defender político. Olhem para os próprios erros e trabalhem para melhorar, para solucionar seus problemas. Vocês têm quase 150 mil mortos, como podem não olhar para isso? O Brasil não merece isso! Cuidem do seu país, cacete!

Foda-se a Argentina, foda-se qualquer outro país. O Brasil está com o pescoço na forca, caso não tenham percebido, por uma série de fatores e peculiaridades do país. É como se sua casa estivesse pegando fogo e, em vez de apagar o incêndio, você ficasse falando mal da sua vizinha. Que tipo de retardado faz isso? Talvez o retardado que não queira olhar para a própria vida, por causa da bagunça que fez dela. Eu sei que dói e é difícil, mas não há vida adulta saudável sem olhar e corrigir sua própria vida como prioridade.

Parem de depender de político, de reclamar que político não faz tal coisa, parem de esperar que alguém faça algo por vocês. Não vai acontecer. Político não vai agir de acordo com os interesses do povo enquanto estivermos no atual sistema. Arregacem as mangas e façam algo. Nem precisa ser algo que salve o país ou o mundo, comece pela sua vida. Olha para si mesmo e para a sua vida e foque seu tempo e energia em melhorar o que pode ser melhorado, em vez de estar com o foco no outro. Não tem outro caminho para uma vida saudável e adulta.

Não se importa com o que está acontecendo? Não quer saber? Bem, se o seu passaporte é aquele verdinho Made in Brasil, eu acho melhor que você comece a se importar, pois esse tipo de coisa respinga em você e fecha muitas portas. Pertencer a um povo mal visto fecha portas, nos mais diversos aspectos. Pertencer a um país que está prestes a afundar de forma silenciosa pois o povo só sabe focar nos problemas alheios afeta você.

Só que agora, fazer as malas e ir embora não é mais uma opção. Vocês estão presos aí. Por isso, sugiro fortemente que todo o foco seja para tentar atenuar o que está para acontecer em 2021.

Para defender infantilmente o Brasil como se o país não estivesse se emburacando, para atacar infantilmente outros países de modo a não ter que olhar para o seu ou ainda para cair a ficha de que agora você não pode sair daí: sally@desfavor.com

SOMIR

Se você olhar por uma janela ou der uma saída na rua agora, vai ter que dar o braço a torcer para os terraplanistas: realmente parece que não tem curvatura nenhuma. Se você puxar pela memória, provavelmente não vai se lembrar de nenhum momento onde viu com os próprios olhos prova sobre o verdadeiro formato de nosso planeta. A explicação é bem mais simples do que as conspirações dizem: no dia a dia não costumamos ter o ponto de vista necessário para observar isso, afinal, somos muito pequenos em comparação com o planeta, e mesmo quando temos esse ponto de vista, por exemplo, num avião, não estamos prestando atenção nessa informação.

Digo isso porque um dos efeitos colaterais desse recente era da informação iniciada pela globalização e a internet foi a revelação de quão pouco o ser humano médio tem de noção sobre o que existe ao seu redor. E com os petabytes de informação rodando a rede mundial de computadores a cada momento, começou a ficar mais claro que não era apenas questão de ignorância, e sim sobre os limites da mente humana. Não basta ter informação, tem que saber absorver, catalogar e conectar essa informação para tirar algum valor dela.

Na maior parte do tempo, estamos olhando por uma janela que pode nos oferecer essa informação, mas não temos o tamanho necessário para perceber claramente o que acontece ao nosso redor, ou mesmo quando estamos com um ponto de vista privilegiado, é comum que não estejamos sequer pensando nisso na hora. A curvatura do planeta está lá, mas você precisa saber o que procurar para enxergar de verdade.

Bolsonaro faz mais um discurso insano na Assembleia Geral da ONU ciente desse efeito. Cria uma realidade paralela que cativa seus apoiadores, manipulando informações, fabricando fatos, aproximando números… tudo plausível o suficiente para quem quer enxergar o mundo da forma como ele apresenta. Tem índio e caboclo queimando floresta? Tem sim. É desonesto mencioná-los nesses discurso? É muito, afinal, isso não se conecta com as outras informações conhecidas de forma a explicar a totalidade dos incêndios. É uma técnica de criar mentiras usando verdades parciais que Bolsonaro não inventou, mas que se tornou modus operandi do radicalismo político moderno.

Rapidamente, muita gente percebeu ao mesmo tempo que nesse mundo extremamente conectado a melhor forma de implantar informações no cérebro alheio não era dar o peixe, e sim ensinar a pescar: ao invés de apresentar uma realidade completa para a pessoa que você quer influenciar, ofereça algumas migalhas que você controla e influencie a forma como ela as conecta. Vou continuar com a fala dos índios porque ela é um exemplo perfeito: se você já está predisposto a acreditar no ângulo de um complô da mídia contra governos de direita, seu cérebro já está esperando uma explicação que consista na imprensa tirando de proporção algo simples para atacar Bolsonaro. Os índios queimando a Amazônia encaixam nessa visão de mundo perfeitamente. Tão perfeitamente que o cérebro não admite que possa ser mentira.

Continuamos com o elefante na sala: mas isso explica o recorde histórico captado por estudos científicos e equipamentos de verificação? Bate com os dados de tantos incêndios acontecerem em grandes propriedades privadas? Só que na era da pós-verdade e dos universos paralelos, o assunto já acabou. A peça quadrada encaixou no buraco quadrado. Não terminamos de falar do assunto, mas a pessoa saiu na rua, olhou para o horizonte… e parecia tudo bem plano. Ninguém tem tempo de aprofundar, hora de ir para o próximo tema. E assim, qualquer assunto pode ser “terraplanizado” quando necessário.

Direita e esquerda usam mecânicas diferentes para trabalhar suas realidades paralelas: a direita manda você olhar para o horizonte e dizer se está vendo a curvatura sabendo que isso não responde a pergunta de verdade; a esquerda diz que não existe curvatura e que se você estiver vendo, é porque tem algo de muito errado com você. A realidade tem que ser controlada a todo momento, pois ela não tem nenhum interesse em se conformar com o que acreditamos ou não. A realidade não liga para sentimentos, justiça ou moral, ela só segue seu caminho rumo a entropia máxima.

E qual é o problema de Bolsonaro mentindo para quem quer acreditar nas suas mentiras? Bom, o mesmo problema de qualquer sistema de organização social que a humanidade já tentou até hoje: todas as pessoas que não acreditam nisso. Foi-se o tempo de um mundo dividido entre capitalismo e comunismo, onde era relativamente fácil escolher um time e se manter mais ou menos fiel a ele. Especialmente depois da internet, essa ideia de times se pulverizou de tal forma que é basicamente impossível formar uma maioria consistente em relação a qualquer tema. Cada grupo vai gerando suas realidades paralelas, formando alianças e descobrindo novos inimigos a cada passo do caminho.

Tecnicamente, Bolsonaro fez o melhor para sua reeleição: usou o discurso da ONU para fortalecer seu time e a realidade paralela na qual vivem, mas isso tem um custo. Não só afasta seu grupo da realidade, como incentiva todos os outros a acelerar o passo rumo às suas realidades paralelas. É uma espécie de corrida armamentista rumo à insanidade. As besteiras ditas por Bolsonaro reforçam sua rejeição entre outras figuras capazes de influenciar a fuga da realidade de diversos outros grupos. Cada vez que Bolsonaro usa seu poder de influenciar seus defensores, incentiva grupos opostos a subir o tom da insanidade para se manterem viáveis.

Quando você tenta se manter o mais próximo possível dos fatos, força seus opositores a baixar o tom, sob o risco de parecerem insanos. Mas essa é uma tática que gera frutos no longo prazo, o que não combina com a mentalidade de gratificação instantânea de um mundo onde grandes comoções duram enquanto a sua hashtag tiver tração. Para gerar resultados rápidos e capitalizar nesse ponto fraco do ser humano médio de não conseguir enxergar a curvatura do planeta numa olhada rápida para o horizonte, o que funciona é criar mundos paralelos. Crie uma Argentina em colapso por causa da quarentena (a última vez que os hermanos não estiveram em colapso foi antes do Perón ser eleito) para dizer que o Brasil está bem, diga que um país que não fez quarentena está em crise por causa da quarentena… se colar, colou.

E francamente, esses mundos paralelos de Bolsonaro e de seus opositores mais ferrenhos (afinal, se direita e esquerda modernas concordam em algo é no autoritarismo) não me parecem vantagem alguma sobre o mundo real. Se fosse só a bobagem genérica de Bolsonaro e a vergonha que passamos o discurso do ano passado já seria o suficiente, mas dessa vez estamos falando de algo ainda mais perigoso: a cada vez que essa gente radicalizada abre a boca, a Terra fica um pouco mais plana.

Para me chamar de centrista radical (meio termo ou morte!), para dizer que não batíamos no PT desse jeito (não, era bem pior), ou mesmo para dizer que verdade é algo que você sente: somir@desfavor.com


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