Infelicidade.

Eu tenho uma teoria: o ser humano não foi feito para tanta satisfação. Pelo menos não na quantidade disponível atualmente. E isso pode explicar a epidemia de doenças mentais que toma conta do mundo. Mesmo em países pobres como o Brasil, uma parcela assustadora da população vise à base de remédios tarja preta. Talvez o problema seja excesso… de coisas boas.

Deixa eu começar lidando com a parte mais difícil de engolir dessa teoria: que você provavelmente está satisfeito demais com a vida. Todo mundo tem problemas, todo mundo tem momentos difíceis, você pode até estar passando por um deles agora. Parece insanidade ler que seu problema pode ser estar satisfeito demais, não?

Eu entendo. Entendo por que fiz o mesmo caminho mental: para a minha teoria ter algum lugar para começar, eu deveria no mínimo me usar de exemplo. Eu não tenho tudo o que quero, eu não estou sempre satisfeito. Eu já passei por fases muito ruins na vida, como praticamente todos nós passamos. Como assim dizer que tem um problema com excesso de satisfação?

A Sally já falou algumas vezes disso aqui, mas eu vou relembrar um conceito chamado Pirâmide de Maslow: a ideia de que o ser humano tem necessidades básicas como comida, água, abrigo… e que vão se tornando mais e mais complexas a partir dali. Como diriam os Titãs: a gente não quer só comida; a gente quer comida, diversão e arte. Um ser humano precisa atender necessidades puramente fisiológicas, mas passado esse ponto, é natural almejar outras coisas como amor, pertencimento e até mesmo ajudar outras pessoas.

O meu ponto com essa teoria de excesso de satisfação bebe da fonte da Pirâmide de Maslow, mas subverte um pouco o conceito: embora precisemos do básico, ninguém é robô ou programa de computador para fazer tudo numa ordem específica. Pessoas são complexas, elas passeiam em todas as camadas dessa pirâmide de desejos e necessidades ao mesmo tempo. Queremos tudo, e às vezes até trocamos as prioridades: tem gente que deixa de comer para ajudar outras pessoas com fome. É a necessidade de altruísmo passando por cima de algo instintivo.

Sim, temos necessidades, elas tem prioridades instintivas, mas é normal bagunçar a ordem, especialmente se você vive no fascinante mundo do século XXI. Por milênios fomos nos especializando em garantir necessidades básicas do ser humano: especialmente na população urbana. Por mais desesperado que você esteja, só de viver ao redor de outros humanos você já conta com um suporte básico para suas necessidades mais primais.

A maioria de nós sequer entende o que não é ter o que comer. Mesmo pessoas pobres, daquelas que precisam de doações. Uma coisa é a fome de nossos ancestrais isolados no meio do mato, com a chance real de morrer de fome por não conseguir caçar ou coletar algo comestível, outra totalmente diferente é a miséria do cidadão moderno. Você pode pedir ou até mesmo roubar… os recursos estão próximos de você.

Essa visão urbana moderna de não ter o básico é mil passos à frente do que nossos corpos foram projetados para lidar. Qualquer corpo humano sem deficiências graves tem uma resiliência enorme às adversidades do ambiente. Não é à toa que seu corpo insiste em queimar músculo antes de gordura quando está precisando de energia: o comportamento foi moldado por centenas de milênios de luta desesperada pela existência. Queimar o músculo é mais lógico do ponto de vista evolutivo do que queimar a gordura. Músculo consome mais calorias para existir do que gordura. No longo prazo, pensando em semanas sem comida, o corpo está certo. No mundo moderno, ele nos irrita profundamente quando queremos emagrecer. A natureza te acha um maluco por querer emagrecer: isso reduz sua chance de sobreviver a um longo período sem alimentos! O que basicamente não acontece mais em ambientes urbanizados do século XXI.

E por que eu saí por essa tangente? Simples: o que seu corpo foi preparado para fazer e o que você faz hoje em dia são coisas bem diferentes. Por passar centenas de milhares de anos vivendo de migalhas de satisfação numa vida muito difícil, fomos selecionados para tirar o máximo de cada um desses momentos. O ambiente do ser humano dava pouco sustento, pouca diversão, pouca tranquilidade… o que não é mais o caso.

Num longo processo de aprendizado pelas eras, fomos tirando mais e mais valor do nosso incrível poder cerebral. Outros animais têm cérebros complexos, mas ninguém nesse planeta chegou sequer perto do que conseguimos de resultados com ele. Não só desenvolvemos tecnologias que nos permitem viver uma das vidas mais mansas do reino animal, como conseguimos criar um pensamento abstrato tão poderoso ao ponto de nos entreter constantemente.

O desejo de ter satisfação constante, seja com comida, bebida, sexo, entretenimento, estudo ou seja lá o que você imaginar; esse continua constante desde os tempos que tudo isso era muito difícil. A capacidade de realizar esses desejos que aumentou exponencialmente. Tem mais calorias num sachê de ketchup do que em refeições inteiras de nossos antepassados mais primais. É extremamente difícil ficar realmente entediado no mundo atual com tantas opções de coisas para se distrair. Até mesmo a necessidade de conexão humana foi “resolvida” com a revolução da tecnologia da comunicação nas últimas décadas.

Parece que não, mas se você é um cidadão de classe média no mundo, seus desejos são atendidos constantemente. E eu vou além, até mesmo se você é pobre isso já está acontecendo num grau menor. Não é à toa que tanta gente acaba viciada em comida, sexo, internet, drogas… seu corpo e sua mente querem tudo isso o tempo todo (em níveis diferentes para pessoas diferentes), e a evolução nunca se preocupou em colocar limite nesses desejos. Pra quê? O ambiente limita sozinho. Limitava…

Você provavelmente é um dos seres mais mimados da história da humanidade. Não estou te criticando ou te dizendo que você tem obrigação de ser feliz, longe disso, estou apenas dizendo que o mínimo que você considera para ter seus desejos atendidos é absurdamente maior do que seu cérebro foi programado para esperar. A gente fica viciado em ter desejos atendidos o tempo todo: com um celular, por exemplo, seu cérebro esquece o que é não ter o que fazer. Eu sou um viciado doentio em informação, por exemplo: quando acabou a luz outro dia, eu sinceramente senti efeitos de abstinência. A minha satisfação de ter algo para pensar, ver, ler, ouvir, consumir conteúdo novo em geral nunca para.

E eu desconfio que estou escrevendo para um público muito parecido. Que não estou dizendo que é feliz o tempo todo ou que não tem seus problemas, mas que ter satisfação não é um deles. A minha teoria é que boa parte da população humana que vive acima da linha da miséria está viciada em basicamente tudo o que tem acesso. Viciados em café, em cigarro, em comida, em bebida, em rede social, em videogame, em sexo casual no Tinder, em pornografia, em ir para a balada, em militar, em comprar… todo mundo está vivendo alguma faceta desse mecanismo cruel do vício: retorno cada vez menor pelo mesmo estímulo.

A humanidade evoluiu ao ponto de empanturrar as pessoas de basicamente tudo o que elas precisavam. Pensa: até se você tiver necessidade de fazer algo pela comunidade, é só atender o telefonema de alguém pedindo doação. Tudo vem em quantidades absurdas e muito práticas de consumir. Eu vivia achando que tinha propensão ao vício, mas está cada vez mais claro que eu só sou um… ser humano. O que me diferencia de outros é o que me vicia, mas não a tendência a viciar.

Se você olhar para a sua vida, é certeza que você vai achar algo que faz de forma exagerada, muito além do que precisaria se pensasse racionalmente. Essa satisfação constante vai fritando seu cérebro aos poucos. A sua linha base do que é ser feliz sobe e desce loucamente de acordo com o que você tem mais acesso: se você nunca passou fome, a sua linha base de felicidade com alimentação passar necessariamente por algo exagerado, seja em comer demais, seja em desesperos por dietas. A base que seu corpo precisa foi destruída por uma situação completamente impensável para os instintos.

A gente precisa de cada vez mais satisfação da mesma forma que o drogado precisa de doses cada vez maiores. A noção do que é viver bem perde a linha guia, e vamos procurar ela em lugares cada vez mais malucos. Viver bem é ter um teto ou uma mansão? É comer o que gosta ou comer muito? É ter um parceiro sexual ou vários? O influencer parece feliz, será que eu preciso do mesmo que ele precisa?

Curiosamente, felicidade vai se descolando de satisfação. Ela começa a ficar condicionada a coisas que nem conseguimos mais entender. Se você está atendendo desejos da sua mente e do seu corpo o dia inteiro, achando que isso é o normal, o conceito de felicidade vai sendo empurrado pra mais e mais longe. Você acaba achando que mesmo com estímulos constantes de coisas que você quer e se interessa, isso ainda não é suficiente.

Mas e se felicidade fosse um conceito… imaginário? Nossos antepassados davam esse nome para a sensação de satisfação de seus desejos. Eles viviam num mundo onde não tinham muitos recursos ou tempo livre mesmo para essa satisfação. Era muito mais rara. A felicidade do ser humano de outras eras não passava de uma fração do que você tem agora. Para 99% dos seres humanos que passaram por esse planeta, alguém de classe média baixa no Brasil é feliz numa proporção quase que inimaginável.

Então, eu acredito num “erro de tradução” histórico. A ideia de felicidade de nossos antepassados, algo distante e raro, era só o padrão de vida médio que temos agora. Como espécie, estamos chegando muito perto de felicidade plena por esses padrões. Só que a gente nunca parou para pensar nisso. Achamos que felicidade é necessariamente algo além do que temos. Sempre um passo à frente de onde estamos.

Minha teoria é que o conceito de felicidade caducou, e boa parte da humanidade ainda não percebeu isso. Felicidade de ser humano do século XXI vai estar em outro lugar, não na satisfação de desejos básicos. Porque esses a gente já está até ficando sobrecarregado. Tem muita gente doente hoje em dia porque não consegue parar de ser satisfeito, porque o cérebro está preso num ciclo imparável de desejos atendidos, e uma economia focada em te deixar imensamente “obeso” de qualquer coisa que você acha que quer.

Eu vou te dizer agora como viver sua vida? Não. Eu não sei nem como viver a minha. O que eu tiro dessa ideia é tomar muito mais cuidado antes de declarar que não estou feliz, ou mesmo que estou. Primeiro porque o conceito de felicidade está mudando e estamos nas gerações que ainda estão pensando no que fazer com isso, e segundo que existe uma tendência poderosa de se acostumar com suas vantagens e achar que elas não são nada demais, de misturar vício com desejo.

Eu e quase todos vocês que estamos lendo este texto não sabemos mais o que fazer com tanta coisa que gostamos nos soterrando de satisfação. Talvez uma parte do que nos deixa com a sensação de que falta algo seja justamente não perceber isso. Não é impressionante que até mesmo pessoas muito pobres consigam se viciar em alguma coisa? Para ser viciado, você precisa de acesso e recursos constantes. Nossa sociedade é uma máquina de fazer viciados, seja por desejos humanos fora de controle, seja por ganância do mercado de consumo, o que importa no final das contas é que vivemos dentro de uma grande armadilha de consumo excessivo, e esse mundo só existe porque ficamos bons demais nessa coisa de buscar a felicidade.

Quando ela chegou… percebemos que não era isso tudo. E dá-lhe remédio para lidar com isso. Então, se você não está passando um aperto muito grande, eu posso te dizer que você provavelmente está feliz, mas que isso não era tão importante assim. Felicidade não é necessariamente o objetivo final da vida.

Só posso te dizer o caminho que eu estou tentando seguir: deixar de achar felicidade tão importante. Tem algo além. Eu acho que é conhecimento, mas você pode achar que é outra coisa. Seja lá o que for, eu desconfio que estamos dando valor demais para meia dúzia de hormônios liberados por um cérebro forjado na fome e no medo.

Para dizer que não está satisfeito(a), para dizer que o sentido da vida é em círculos, ou mesmo para dizer que adoraria ter problemas de primeiro mundo: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Texto para fazer pensar, Somir. E quanto a sermos “os seres mais mimados da história da humanidade”, peço licença para colocar aqui o link de um vídeo do canal Spotniks no YouTube, narrado por ninguém menos que Guilherme Briggs, e que fala justamente sobre como, até há não muito tempo atrás, a vida e as condições para a sobrevivência das pessoas eram totalmente diferentes.

    https://www.youtube.com/watch?v=9m7k1x9AetU

  • Cream Crackers

    Será que dá pra mandar um “Publiciotários: Conspiracionismo”.
    O Conspiracionismo vem mostrando sua força nos embates politicos e avançou para um front que nunca imaginei, que é o da propaganda institucional de instituições tidas como sérias como o IDEB e a ACT Promoção da Saúde?
    Parece que agora eles foram usar a linguagem do “Eles não querem que você saiba” tendo como alvo refrigerantes como a Coca-Cola, sendo que inclusive tem um texto da Sally com um viés no mesmo sentido aqui tratando de uma substância utilizada tanto na Coca-Cola quanto no Biotônico Fontoura.

    • Caramba, eu lembro de ter lido essa historinha quando criança. Gostava das historinhas da Dona Morte, quase sempre tinham um humorzinho negro ou uma pegava filosófica/reflexiva como essa. Valeu pela recordação.

    • Tenho uma edição com essa historinha. Além da turma do Penadinho, outro cast de personagens que gosto bastante é o Astronauta, também possui algumas histórias de cunho filosófico.

  • “Não só desenvolvemos tecnologias que nos permitem viver uma das vidas mais mansas do reino animal”
    Acordar cedo pra trabalhar pra ter dinheiro pra sustentar vagabundo.

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