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Colunas

Quebra de confiança.

O caso do anestesista que foi filmado estuprando uma mulher em trabalho de parto dentro da sala de cirurgia do hospital chocou o país. Raras vezes se pega alguém tão no flagrante assim. Embora não faltem motivos para falar mal desse cidadão, eu acredito que o principal não ficou bem claro…

Tudo que envolve sexo mexe com o ser humano, para o bem e para o mal. Não é meu objetivo com o texto relativizar o ato cometido pelo estuprador, mas ir além do ato. Do ponto de vista pessoal, o abuso de natureza sexual dói mais, mas do ponto de vista social é a quebra de confiança que torna isso realmente terrível.

Porque confiança é a base de uma sociedade saudável. Já parou pra pensar quanta coisa da sua vida parte do princípio de que outras pessoas vão fazer o que se espera delas? Que vão cumprir suas promessas? Você confia que vai receber serviços do Estado ou da iniciativa privada, você confia que o outro saiba realizar uma tarefa, você confia o tempo todo e nem percebe.

E essa necessidade de confiança emana de outro conceito que pouca gente considera também: a imensa complexidade da sociedade humana no século XXI. O nosso grau de dependência de outros seres humanos foi aumentando exponencialmente nos últimos séculos. A maioria de nós não está mais diretamente ligada com funções de subsistência: você existe nesse mundo partindo da presunção que outras pessoas estão produzindo e distribuindo coisas como comida e água.

A gente vive batendo em corrupção e incompetência, mas não custa lembrar que existe uma certa linha base de confiança envolvida em tudo: tem gente suficiente nesse mundo fazendo as coisas da forma certa para que você possa sobreviver. Convenhamos, pouca gente poderia abandonar a estrutura da sociedade moderna e ficar viva por muito tempo.

A confiança está tão arraigada em nossas mentes modernas que eu aposto que nem 1% dos nossos leitores sabe como produzir seus próprios alimentos. E não estou falando de cozinhar, estou falando de plantar, criar animais, saber o que coletar na natureza… eu aposto inclusive que pouca gente aqui sabe que tipo de água é própria para o consumo.

Não estou dizendo que um belo dia as pessoas decidiram confiar cegamente umas na outras, estou dizendo que com o passar dos séculos e milênios, aceitamos a especialização como fato da vida e delegamos responsabilidades primais para outras pessoas. Se não fizéssemos assim, não dava para sair dos primeiros estágios da civilização. Tem que confiar que o outro vai fazer a parte dele.

E por incrível que pareça, deu certo. Na média, o ser humano é confiável o suficiente para manter a sociedade moderna rodando. Foi uma aposta dos nossos antepassados que rendeu muitos e muitos frutos. Pudemos ver uma clara progressão no alcance e na confiabilidade dos serviços prestados para o ser humano. Mas com a chegada da internet e a comunicação instantânea, algo começa a dar errado nesse processo.

Vai soar meio errado no começo, mas… há uns trinta anos atrás o caso do anestesista provavelmente não seria descoberto. Ou, seria, mas poderia demorar muito mais para pegarem ele no flagrante. E mesmo assim, é mais provável que o hospital tentasse abafar o caso e sumir com o médico ou com as enfermeiras para ninguém ficar sabendo. Isso teria mantido a confiança da sociedade. A informação cobra um preço.

Eu disse que soaria errado.

Como espécie, passamos a maior parte do nosso tempo em sociedade sem saber muito bem o que estava acontecendo no mundo. Sempre teve gente abusadora, sempre teve gente bizarra, mas a norma era suprimir informações consideradas vexatórias ou incômodas para a manutenção do status quo. O mundo era cheio de segredos que a maioria de nós escolhia manter em segredo.

Mas aí, entra o smartphone e a internet nessa equação. O ser humano médio começa a reagir a essa revolução tecnológica. Não só a pessoa pode receber quantidades impensáveis (trocadilho proposital) de informação onde quer que esteja, ela também pode produzir conteúdo com uma facilidade impressionante.

Eu vivo dizendo isso: não é que as pessoas estejam piorando, é que estamos vendo muitas delas muito de perto. É como se estivéssemos acostumados a almoçar no mesmo restaurante há décadas, e de repente a parede da cozinha ficasse transparente. Se você parar pra pensar, é claro que alguma coisa errada aconteceu naquela cozinha, mas você nunca tinha visto. Você tinha uma confiança utilitária nos cozinheiros: para não ter o trabalho de cozinhar, você estava disposto a comer algo que vinha de dentro de uma “caixa preta”. Você podia ver o resultado, mas não o processo.

Quando a parede da cozinha fica transparente, você percebe que tem umas partes bem sujas ali. Que um dos cozinheiros vive limpando o suor da testa na mão e mexendo na comida. Você percebe até alguém coçando o saco. Quando você vê, a confiança utilitária fica impossível. Aquilo foi registrado, aquilo não pode ser esquecido. Você sabe racionalmente que se passou tantos anos almoçando lá e nunca ficou doente, não é necessariamente perigoso, mas você… viu. E agora não tem como “desver” o suor do cozinheiro escorrendo em cima do seu bife.

Aí, você tem a opção de ir procurar outro restaurante. Mas no final das contas, você vai continuar precisando confiar que no outro restaurante não está acontecendo nada que te incomode sobre a comida. Porque a não ser que você cozinhe, nunca vai poder controlar todo o processo. Ou você confia em alguém ou vai ter que fazer sozinho. A confiança não é negociável, a gente vai procurar em outro lugar.

O mundo pré tudo filmado por todos os ângulos tinha muita coisa errada sendo escondida, mas, tinha muito mais confiança. Pergunte para seus avós: eles corriam livres pela rua desde muito pequenos. Havia confiança suficiente nos pais sobre o que outros adultos fariam com seus filhos. O que não quer dizer que tínhamos menos pedófilos ou malucos violentos em geral no passado, só quer dizer que a “parede da cozinha ainda não era transparente”.

E no final das contas, essas pessoas que corriam livres pelas cidades aos 6 anos de idade chegaram vivas até à vida adulta, viraram até avós. Elas estavam expostas a perigos terríveis que jamais permitiríamos que crianças do século XXI vivessem, mas o ser humano médio foi confiável o suficiente para não impedir que a imensa maioria dessas crianças crescesse normalmente.

As pessoas não mudaram tanto assim: a maioria absoluta de nós não faria mal a uma criança sozinha. Eu até entendo que os adultos do começo do século passado eram mais… adultos… que nós, mas não é como se tivéssemos sido trocados por psicopatas. Ainda somos uma imensa maioria de gente que não quer maltratar ninguém e se importa com justiça. Mas agora que quase todo mundo já viu e ouviu falar dos riscos que uma criança sozinha corre, não dá mais para aplicar esse tipo de confiança na sociedade.

Pode ser até um pensamento racional achar que deixar uma criança sozinha provavelmente não vai dar muito errado, afinal, outros adultos vão acabar se preocupando com ela. Mas quem em sã consciência vai pensar desse jeito em 2022? Sim, eu sei que em comunidades muito carentes as crianças ficam todas soltas, mas pobreza extrema normalmente significa ficar preso numa realidade mais atrasada. Estou pensando na criança de classe média de antigamente comparada com a atual.

Quando você é obrigado a ver o que está por trás da confiança que coloca em quase tudo que depende de outras pessoas, a tendência é ficar amedrontado. Porque o outro pode ser incompetente ou mal-intencionado. É uma progressão: quanto mais vamos vendo o que acontece debaixo das cortinas da sociedade, menos confiantes nos tornamos.

Voltando à notícia que me fez começar este texto: a medicina passou muito tempo funcionando através da confiança. Confiança exagerada, muitas vezes. Médicos são pessoas, pessoas se enganam, pessoas podem ser irresponsáveis… existem mil variáveis diferentes para encontrar problemas nos executores da medicina moderna. O status de semideus que o médico tinha o deixava fazer coisas horríveis sem consequências, mas ao mesmo tempo criava uma aura de confiança inabalável no cidadão médio.

O médico te dizia que era para tomar vacina, você não ia comparar essa informação com um post do Facebook. Sim, faltava informação dissidente, mas também a maioria de nós não tinha muita ideia de como médicos podiam ser ruins. Repito: se a maioria não fosse de média para boa, a expectativa de vida do ser humano seria muito menor, mas que tem gente horrível de jaleco? Tem sim. Inclusive o cara que usou a confiança que tem como anestesista para abusar de uma mulher.

O mundo moderno hiperconectado é uma máquina de moer confiança. Até porque o que dá audiência e cliques é o bizarro, o horrendo. Os casos mais escabrosos chamam imensa atenção e fazem com que mais e mais pessoas não consigam mais “desver” o lado ruim de confiar no outro: a traição dessa confiança.

E aí, começa a fazer mais e mais sucesso a ideia de “fazer sua própria pesquisa”, de buscar “fontes alternativas de informação”. A gente fica sabendo de tanta coisa ruim que não faz mais sentido confiar no outro, você não sabe mais se o outro é um desses humanos bizarros. Spoiler: você nunca sabia, sua bisavó também não. Ela tinha uma vantagem, no entanto: como vivia em comunidades menores, conhecia mais de perto as pessoas. A vida em grandes cidades presume lidar com completos estranhos o tempo todo, e confiar até mesmo sua vida na mão deles.

Eu não estou defendendo aqui uma volta aos bons tempos em que estuprador de jaleco não era preso em flagrante, longe disso. Estou apenas analisando como a humanidade vai ter que pagar o preço da crise de confiança em troca de toda a informação que está acumulando. Confiança vai precisar ser reestabelecida de uma forma que combine com a era da informação.

E isso vai significar sim vigilância cada vez maior. O fim da privacidade é o preço da confiança do século XXI para frente. O ser humano não vai mais conseguir voltar ao tempo de fechar o olho e entregar sua vida na mão de outro. Não sem garantias externas. Porque não podemos voltar, a informação globalizada é ponto de não retorno. Confiança utilitarista funcionou por milênios, mas não vai mais funcionar.

Até por isso, mais do que nunca vale a pena agarrar as pessoas que você confia e deixar elas bem por perto. Tem uma tempestade de neurose global vindo por aí, e só quem tiver formado boas relações de confiança vai ter um porto seguro. Não é mais razoável esperar que confiem em você só porque você acha que é confiável, menos e menos humanos vão funcionar dessa forma. Estamos indo para um mundo desconfiado que precisa de informação constante para ter alguma segurança.

Eu detesto a ideia de ter que abrir minha privacidade para ser confiável, mas eu já entendo que é necessário em alguns casos. E talvez eu seja uma das últimas gerações que realmente tem uma escolha. Crédito social, câmeras em todos os cantos… esse mundo está chegando e eu não vejo como mudar os rumos.

Para dizer que desconfia das minhas intenções, para dizer que já disseram tudo mas vai xingar o cara de novo, ou mesmo para dizer que agradece por ter estragado sua vida: somir@desfavor.com

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confiança, estupro, sociedade

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