Overdose de redpill.

Uma das sugestões de texto que recebemos foi sobre oferecer um contraponto à ideologia da pílula vermelha, ou, no original em inglês, a redpill. Eu estive lá no começo desse movimento (online), e por um bom tempo, fui o público-alvo ideal. Então, ao invés de tentar argumentar contra milhares de ideias diferentes que se misturam aqui, eu vou contar como eu escapei da overdose. Pode ser útil para alguém.

Mas é claro, vamos começar… do começo.

Redpill é um termo baseado no filme Matrix. Numa das cenas mais emblemáticas da obra, o protagonista precisa tomar a decisão entre tomar uma pílula azul e voltar para a mentira confortável da simulação ou uma pílula vermelha e lidar com as dificuldades da vida real. Algo fácil de entender que se espalhou como fogo no mato seco pela internet.

É provável que hoje em dia muita gente nem conheça mais a analogia da pílula vermelha, mas a ideia está na base não só da mentalidade dos anônimos das chans como até mesmo nas manifestações de bolsonaristas na frente de quartéis. Não estou dizendo que um meme inventou teorias conspiratórias e rejeição à modernidade, mas sim que tem um ponto comum no nascimento dessa forma atual da ideologia.

O tempo passa. Eu mesmo não tinha me tocado como aquelas memes da 4chan na primeira década do século já faziam parte da formação intelectual de muita gente que está até eleita para cargos públicos hoje em dia! Eu mal tinha saído da adolescência quando tive contato as raízes do movimento. Eu lembro de um tempo em que a 4chan (o site mais influente da história da internet que ninguém conhece) era um conglomerado de agentes do caos que “brincavam” de ser de contra na internet.

Eu incluído. Era o começo da adoção em larga escala da internet, e um período em que adolescentes e jovens adultos de classe média e alta eram basicamente toda a rede. Assim como eu, um bando de jovens entediados que achavam o máximo lutar contra o movimento do politicamente correto dos anos 90. Hoje em dia a 4chan é vista como um antro da “direita alternativa” cheia de racismo, homofobia e misoginia, mas eu lembro de um tempo diferente.

Um tempo em que o “anônimo” moderno se sentiria deslocado. Meu encantamento com o site vinha do ferro e fogo a qual qualquer opinião era exposta: as pessoas discutiam de forma agressiva sobre tudo, e ninguém se preocupava em ferir o sentimento alheio. Não tinha tabu, não tinha excessos, era o mais próximo de liberdade de expressão irrestrita que eu conhecia. E não tinha uma opinião “certa”, todo mundo se odiava e amava de acordo com o assunto, ninguém obrigado a manter padrões.

Estou contando essa história de velho porque foi nesse ambiente que a redpill nasceu nos moldes modernos: a ideia de que algo estava errado com o mundo e só os anônimos tinham coragem de discutir. Na hora eu não percebi, ninguém percebeu, mas era um grupo muito específico de pessoas invadindo o site e convertendo os jovens rebeldes que ali viviam. Esse grupo era o dos racistas/nazistas americanos que estava sem casa porque seu fórum mais popular estava sendo atacado por várias entidades. Para fazer americano ir atrás de um site por ser nazista demais, dá para imaginar o nível, né? Na Europa, era literalmente proibido. Eu vou morrer defendendo que a 4chan moderna foi criada pelos refugiados do StormFront (que até voltou depois, mas o estrago estava feito).

Agora, o importante é entender que o público da 4chan não era nazista esperando uma oportunidade para se assumir, na verdade, talvez meio que sem querer, esse grupo de racistas assumidos acertou no alvo com a meme da pílula vermelha. Porque ela serve para tudo. Todo mundo é influenciável pela ideia de que estão escondendo algo de você, que tem um plano maligno que explica os problemas que você enfrenta na vida.

Ninguém me contou, eu vi: o significado original da pílula vermelha é que a culpa de tudo é dos judeus. Não é isso em que o pessoal que segue a ideologia acredita hoje em dia, não todos, mas essa é a raiz. Eu não estou dizendo que a pessoa pedindo intervenção militar no Brasil está fazendo isso por querer o nazismo, estou dizendo que os primeiros movimentos do que se tornaria o negacionismo e o conspiracionismo bases da “direita” moderna vieram de uma meme que no fundo queria dizer que havia um grupo étnico dominando o mundo e tentando destruir a sociedade como conhecemos.

E isso importa. Importa porque coloca a desconfiança na base de toda a ideologia. Terceiriza a culpa. A solução é abrir os olhos e enxergar as coisas como elas são, desde, é claro, que você enxergue algum grupo definido tentando te fazer mal. Não existe isso de tomar a pílula vermelha e descobrir como o mundo é complicado e como estamos no meio de uma disputa infinita de interesses.

Você pode tomar a redpill e descobrir que são os judeus, os negros, os gays, as mulheres… o movimento todo presume descobrir quem está te fazendo mal e começar a viver em função disso. É claro que a direita moderna e até mesmo movimentos como o MGTOW se desenvolvem a partir disso. E eu até vou além, muito do que descrevemos como lacração hoje em dia segue essa mesma filosofia de “olimpíadas da opressão”. Eu enxergo pílula vermelha até mesmo na esquerda de rede social.

Antes de saber que era basicamente “são os judeus”, eu fiquei muito tempo exposto ao que se chama de redpill, e para ser brutalmente honesto, tem coisa que faz sentido sim. O que é a humanidade senão disputa por atenção e recursos? Não é mais eficiente lutar em grupos maiores? Evidente que tem muita coisa errada na sociedade, evidente que muitos grupos se unem para levar vantagem. O pecado original da pílula vermelha é a conclusão forçada sobre um grupo ou outro sendo o culpado por tudo.

É isso que acaba influenciando gente a fazer marcha com tochas imitando nazistas, é isso que faz seu tio maluco ter medo dos comunistas expropriarem um dos quartos da casa. É a conclusão simplória que a ideia de pílula vermelha faz a pessoa chegar. O mundo é muito mais simples se você só precisa se preocupar com um grupo: os nazistas acreditam que são os judeus, os MGTOW que são as mulheres…

E sim, de novo, eu sei que não foram os nazistas infiltrados na 4chan que inventaram isso, é uma questão de estar no lugar errado na hora errada para influenciar um sistema de pensamento distorcido numa geração de jovens impressionáveis. Eles cresceram e começaram a influenciar outros cantos da internet. Sem noção da raiz da sua ideologia, mas mais do que dispostos a divulgar as conclusões que tiraram a partir dela.

Lá por 2016, o movimento explodiu em popularidade nos EUA e começou a se espalhar pelo mundo, muita gente nem chama de repdill hoje em dia, falam sobre patriotismo, família, ordem e tudo mais, mas sempre com aquela ideia venenosa de que só precisam derrubar um grupo de pessoas ruins para tudo ficar bem.

Não estou te dando munição para chamar toda a direita moderna de nazistas, estou te dizendo que lá no começo era sobre os judeus sim. Disfarçado o suficiente para não ser reprimido imediatamente, mas com uma fundação historicamente sólida de ódio a um grupo diferente. Eu preferi ficar com a ideia original de que ninguém é inocente. Pode enxergar o que quiser do mundo, não tenha medo de buscar padrões e verdades inconvenientes, mas nunca se esqueça que estamos todos juntos nos sucessos e nos fracassos na humanidade.

Que não tem problema nenhum em ser subversivo e questionar, mas que se sua conclusão for que tem um grupo tentando te fazer mal, você provavelmente está deixando de enxergar o quadro geral. Que, ironicamente, escolheu a ilusão confortável ao invés da dura realidade.

Eu sou parte integrante dos meus problemas, eu tenho que lidar com um monte de gente que tem interesses próprios que nem sempre combinam com os meus, eu tenho que me esforçar para fazer e manter aliados, eu tenho que fazer escolhas difíceis, eu tenho que saber a hora de lutar e a hora de aceitar a derrota… é chato, mas é assim que eu escapei da overdose de pílula vermelha: olhando para a realidade extremamente complexa da vida humana e escolhendo encarar mesmo assim.

Se o seu momento de sair da Matrix significa se eximir de responsabilidades, você não saiu da Matrix.

Para dizer que quer mais histórias da internet dos velhos, para dizer que não quer saber da internet dos velhos, ou mesmo para dizer que “eles” claramente me pagaram para escrever isso: somir@desfavor.com

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Comments (20)

    • Jovem,
      Interessante que, mesmo sob a alcunha de “anônimo”, reconhece-se o ranço de comentários anteriores.
      Reitero minha sugestão.
      Procure se engajar em uma causa social.
      Fazer caridade a quem aparenta estar mais necessitado que você, faz maravilhas ao ego.
      Falo, com toda sinceridade, para o seu bem.

  • O simples fato de praticamente todo país ter um partido comunista desbanca qualquer narrativa de “ameaça da extrema-direita”. Além disso, o cidadão médio prefere quem promete dezenas de coisas de graça, não quem mostra a dura realidade de que ele precisa aprender a se responsabilizar por si mesmo e fazer seu próprio dinheiro. Por isso a direita nunca vai vencer nada em lugar nenhum.

    • Os Partidos Comunistas são irrelevantes há décadas (difícil encontra algum país em que obtenham dois dígitos em porcentual de votação). Se é assim, qual é a lógica de negar que a extrema-direita seja uma ameaça?
      De resto, a direita assistencialista também existe.

      • O pensamento e os crimes da extrema-esquerda não são tão repudiados quanto os crimes da extrema-direita. Tem muito idiota por aí que ostenta foice e martelo sem o menor pudor, em vez de serem devidamente criminalizados junto com os idiotas neonazistas e negacionistas do Holocausto. É muito mais provável encontrar um professor abertamente comunista do que um professor abertamente nazista nas universidades.
        Foi preciso a Rússia invadir a Ucrânia pra começarem a perceber os estragos causados pelo comunismo soviético e reconhecerem o Holodomor, e mesmo assim ainda há negacionistas.

    • A direita como conceito político tem um problema fundamental: nasceu como contraponto à esquerda (eram literalmente os puxa-sacos de Luis XVI na França nos tempos da revolução) e até por isso nunca teve um plano de ação muito claro. O conservador quer… conservar. Por isso tantos acabam com ações “de esquerda” quando precisam ganhar atenção do povão.

  • Um problema que vejo é a resposta à “radicalização”: um guri judeu fez uma piada (ruim, mas uma piada) no Game Awards (me surpreende que essa merda ainda exista) e uma quantidade significativa de idiotas o está chamando de antissemita.

    É… Vou comentar só isso ou vai ser um resgumundo de 4 páginas.

  • Na adolescência quando eu acessava esses sites conspiranóias, eu bem que reparava que sempre era culpa de algum grupo. Illuminatis, marxistas, reptilianos… Ou mesmo os “zionistas”, que seriam os “judeus do mal” enquanto defendem os “judeus do bem”, os verdadeiros que pertenceriam ao povo eleito de Jeová blábláblá… A versão esquerdista disso está nos ricos, nos burgueses, nos fascistas, etc.

    Eu lidei há algum tempo com uma pessoa muito próxima de mim que era adepta desse pensamento mais raiz, que a culpa é sempre dos judeus… E olha, mesmo com a tal “verdade” que ela falava conhecer, sem dúvidas, era uma das pessoas mais infelizes que já conheci na minha vida.

    Mesmo com um espantalho para culpar pelos males do mundo e da própria vida, a pessoa continuava inerte. Era como se quisesse permanecer assim… Sempre com medo e raiva de tudo. Uma pessoa que não importava como você tentasse ajudar, oferecer perspectivas, conhecimento ou oportunidades, ela insistia em ficar no mesmo ponto autodestrutivo e arrumando confusão pelos cantos metida a “salvar o mundo”.

    Deve ter sido a coisa mais matrix que já vi em toda minha vida.

    • Ana, acho que por isso é tão importante de tempos em tempos a gente revisar no que a gente acredita. Muitas vezes a gente se agarra numas crenças de merda que só trazem infelicidade sem nem perceber…

    • Já sou da opinião que fanatismo político (de qualquer lado da cerca) deveria ser tratado como vício. Vou comprar um sítio e oferecer desintoxicação política. Duas horas de meditação diária repetindo o mantra “foooooda-se, fooooooda-se”…

  • Heliagar Romeu Pinto

    A influência de masculinistas e mgtows sobre mim é ZERO.
    Achava aquela página Sílvio Koerich uma piada pronta com aquela argumentação rasa nível Revista Veja e considero que a turminha desses ambientes não fica nada a dever em termos de controle emocional a seleção brasileira.
    Esses moleques birrentos se cagam de medo de passar pelo apuro que seria a possibilidade de por algum acaso o eventual relacionamento com a parceira de sexo oposto passar de meu bem para meus bens e espelham as feministas nas mulheres normie que conhecem, vendo chifre em cabeça de cavalo.
    Não que o feminismo tardio que deu as caras por aqui não seja um desfavor… É e pode causar muitos problemas assim como os militantes de outras pautas identitárias que a Sally citou no último Ele disse, Ela disse, sendo que a maior preocupação é com esses gremlins ganhando espaço no congresso e nos bastidores de nossa burocracia.
    Seria interessante vocês prestarem um pouco mais de atenção na Madeleine Lacsko, que foi certeira quanto ao efeito tóxico dos identitários (também chamados de militudos e militontos na esquerda mais afeita ao Lula), sendo que isso foi um fator determinante no sentido de fazer com que a vitória lulista na última eleição fosse pírrica.

  • Só tem uma coisa que eu não entendo. Nessas discussões online muitos argumentos se apóiam no “apelo à normalidade”, geralmente dizem que X é uma ideia ou prática extremista bizarra enquanto Y é normal e mainstream, e geralmente assumem que o mainstream é o bom, o certo. Mas é muito difícil, pelo menos pra mim, saber como é o ser humano médio, a tal Pessoa Normal™, tão mencionada em discussões. Geralmente se assume que a pessoa normal é feliz, produtiva, pacifica e tem uma vida social saudável. Mas também não é o caso, todos têm problemas e o fato de produções de mídia e entretenimento girarem em torno de sofrimento, violência e conflito mostra que essas coisas são lucrativas e “relatable”, seja lá como se traduz esse termo. Então como chegar a uma resposta?

    • Talvez “normal” seja uma palavra amaldiçoada mesmo. O que eu enxergo no argumento contra a radicalização é o benefício da leveza. Assim como um vício, esse tipo de mentalidade de medo e desconfiança começa a colocar pesos desnecessários nas costas da pessoa, e vai acumulando. De repente a pessoa se vê carregando uma bagagem pesada de opiniões e até mesmo hábitos baseados na visão radical que tem, bagagem que tira energia para seguir em frente na vida. Ser normal provavelmente não deixa ninguém mais feliz, mas estar mais leve? Aí eu vejo mais vantagem.

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