Pano vermelho.

“O comunismo falhou todas as vezes que foi tentado” é uma das minhas frases preferidas. Mas não por nenhum viés ideológico: e sim por toda complexidade que ela pode ter, quanto mais você se aprofunda nessa análise, mais cinza o vermelho se torna. Eu acredito que seja uma boa coisa rejeitar projetos comunistas numa sociedade, mas será que as pessoas entendem a lógica por trás dessa contrariedade?

Então, deixa eu “passar um pano” para o comunismo por alguns parágrafos para estabelecer o porquê de no final das contas eu ainda ser contra. E não vai ser sobre o ideal do sistema de governo, vai ser sobre as dificuldades que a União Soviética, China, Cuba e similares passaram em suas aventuras da “ditadura do proletariado”.

O primeiro ponto notável do comunismo foi a revolução na Rússia. Depois de algumas tentativas frustradas, os bolcheviques finalmente tomaram o centro do poder russo e depuseram a monarquia absolutista que os controlava. Mas, é claro, nenhuma revolução dessa magnitude é um corte seco no sistema antigo.

Logo no começo, Lênin e seus aliados tiveram que lidar com o fato de que o país não estava unificado de verdade. Tropas leais ao Czar ainda lutavam, mesmo depois da morte da família real inteira. O país teve que enfrentar uma longa guerra civil entre os vermelhos (comunistas) e os brancos (monarquistas). Vamos concordar que durante uma guerra civil é complicado fazer um país se desenvolver, não?

Especialmente se suas ideias sobre como organizar o Estado tinham acabado de ser criadas. Os comunistas do começo do século XX estavam literalmente descobrindo como transformar teoria em prática. Pode-se argumentar que tomar um país com milhões de pessoas para “testar uma coisa aí” é irresponsável, mas eles realmente achavam que o comunismo ia resolver os problemas do povo eventualmente.

E sabe do que mais? Era uma expectativa realista. Quando a teoria comunista foi desenvolvida, estávamos no ápice da exploração do trabalhador não-escravizado da nossa história, especialmente na parte europeia do mundo. Quem vivia no campo vivia de colheita em colheita, quem vivia na cidade tinha condições horrendas de trabalho. Não tinha direito de nada.

Quando a revolução acontece, a Rússia era mato. A parte que hoje é a Ucrânia tinha um pouco mais de desenvolvimento na parte de agricultura, e o resto era basicamente um estado feudal com castelos maravilhosos e camponeses vivendo sufocados. Os czares russos não deixavam o país entrar na revolução industrial por medo de seu poder absoluto ruir, como acontecia no resto da Europa. Foi só o último imperador que pensou em fazer algo diferente, mas já era tarde demais: tinha gente suficiente para derrubar o poder dele.

Se você está passando fome e de repente o Estado começa a te dar um pouco de comida, já é um avanço. Os erros do comunismo inicial (antes da Segunda Guerra Mundial ainda) foram vergonhosos de um ponto de vista técnico: tentaram organizar a economia de dez jeitos diferentes, e todos foram um fracasso. A inflação disparou, ninguém sabia o que fazer, várias linhas de pensamento se confrontavam dentro do comunismo…

Mas comparando a Rússia das primeiras décadas do século XX com o resultado inicial do comunismo, a linha de corte era tão baixa que a vida melhorou para muita gente. O comunismo tirou a Rússia da Idade Média quando a transformou em União Soviética. Um sistema capitalista podia ter feito o mesmo? Claro. Mas não fez.

Só que como eu disse, a disputa interna por poder e a inexperiência com o gerenciamento de um Estado colocavam a União Soviética em um estado caótico. Depois da morte de Lênin, Stálin assumiu o controle com mão de ferro e acabou com os problemas de confusão sobre liderança. O comunismo entrava na era do totalitarismo.

Stálin era um psicopata, já tem um texto sobre o crime contra a humanidade que foi Holodomor aqui no Desfavor, então se você tiver qualquer vontade de tratar o ditador soviético como uma pessoa razoável, vá ler o texto e volte com raiva para continuar este.

Mas, numa análise utilitarista igualmente psicopata, Stálin quebrou muitos ovos para fazer uma omelete: a União Soviética tinha novamente algum senso de unidade e capacidade de crescimento. O resto do mundo observava desconfiado, mas como tinha commodities baratas para comprar dos russos, fizeram vistas grossas para o genocídio interno.

Quando a União Soviética parecia que ia se estabilizar, começa a Segunda Guerra Mundial. Stálin aproveita a confusão para tomar alguns territórios, mas logo Hitler trai o acordo de não-agressão e começa a marchar rumo a Moscou. Em mais uma passada de pano: é realmente complicado melhorar a qualidade de vida do seu povo quando o exército mais assustador da história da humanidade até então invade seu território.

É uma simplificação exagerada dizer que Hitler cometeu o mesmo erro de Napoleão ao tentar invadir o território russo no inverno: o exército nazista era muito poderoso e passou perto de tomar Moscou. O gás do ataque alemão acabou a menos de 100 quilômetros da capital soviética, e muito por causa de uma grande ajuda de americanos e ingleses para dar dinheiro, armas e recursos em geral para os soviéticos.

Durante aquele período da guerra, os soviéticos foram a única alternativa do mundo para segurar os nazistas. A Inglaterra estava sitiada na sua ilha, os americanos não conseguiam apoio suficiente no Congresso para entrar na guerra… se os soviéticos não conseguissem segurar Hitler naquele momento, o mundo poderia ser muito diferente hoje em dia.

E justiça seja feita, os soviéticos deram dezenas de milhões de vidas nessa resistência desesperada. Fomos criados num mundo de propaganda americana que dá muita importância à participação deles na luta contra o nazismo, mas quem olha os fatos históricos sabe que foram os russos que deram a maior parte do sangue derramado nessa batalha. Sinceramente: é compreensível que um país não consiga aplicar toda a teoria comunista quando tem que lutar pela própria existência contra o exército mais poderoso do mundo até aquele momento.

A União Soviética passou anos produzindo tanques, aviões, armas e munições para sobreviver. E quando finalmente a ameaça nazista foi vencida, sobrou um país devastado. A Rússia é gigantesca, mas ainda é basicamente só aqueles centros populacionais próximos da Europa. O resto era e é gelo e mato. O que a União Soviética tinha de país para governar tinha sido bombardeado e queimado pelos nazistas.

Vou repetir mil vezes: Stálin era um psicopata. Mas mesmo ele não pode ser culpado solitário pelos atrasos que um país que passou por uma guerra civil e carregou o mundo nas costas durante a Segunda Guerra Mundial teve que encarar naquelas décadas. Não se consegue fazer um acordo de condomínio nessas condições, quiçá implementar o comunismo da forma como Marx idealizou.

E depois disso, quando finalmente a União Soviética teria seu momento de paz para tentar alguma coisa, a maior potência mundial da história se desenvolveu: os EUA. E para piorar, essa potência entrou em pânico com a ideia de alguém querer aplicar o comunismo em seu território. Pânico no sentido de “precisamos de um inimigo para unir o povo e manter nossa economia girando, deu super certo com os nazistas e queremos fazer de novo”.

Não podemos esquecer do fato que em cada passo da União Soviética, os americanos fizeram de tudo para sabotar a concorrência. Os comunistas passaram a maioria do seu tempo no poder com pesadas sanções econômicas e com imensa dificuldade de influenciar outros países para gerar parceiros comerciais. Quando os soviéticos conseguiam emplacar um governo simpático, os americanos financiavam golpes e milícias para parar qualquer aventura comunista. Vimos isso na América do Sul, no Oriente Médio, na Ásia…

E aí a União Soviética ficou presa com alguns parceiros que não ajudavam muito no desenvolvimento do projeto. Cuba era minúscula, a China controlada por um incapaz de marca maior… e todos os outros lugares que tentavam trazer para seu time entravam em guerras civis horríveis ou eram tomados por ditaduras militares. O Brasil foi um dos países que sofreu com esse destino.

O erro mortal dos soviéticos parece ter sido aceitar esse papel de adversário dos EUA e do capitalismo em geral. Eles acreditavam que precisavam se equiparar em tudo, e considerando que os americanos são completos malucos e sem noção com seu poderio militar, investindo sem parar, é claro que a União Soviética ficou sem recursos para acompanhar. Precisava construir milhares de bombas atômicas? Precisava estar sempre pronta para enfrentar os americanos em uma guerra de destruição mútua?

Eu acredito que não. Que os líderes soviéticos apontaram na direção errada e deixaram o ego passar por cima do ideal comunista. Era suicídio tentar disputar o controle do mundo com os EUA. E provavelmente nem era necessário. Complicado falar de história que não aconteceu, mas depois da Segunda Guerra, o próprio povo americano estava azedo com a ideia de ir lutar por coisas aleatórias do outro lado do mundo. O clima já estava meio estranho na guerra da Coreia e estragou de vez na do Vietnã.

Os soviéticos poderiam ter esperado um pouco, focados em parecer mais amigáveis e ir seduzindo aos poucos outros países para ter pelo menos algumas relações comerciais. O ser humano é realmente tolerante quando você faz algo que ele discorda em outro país. Vide quanto tempo demorou até o mundo achar que perseguição de judeus precisava de resposta na Alemanha nazista. Foi só quando Hitler deu sinais de que ia tentar dominar o resto da Europa e talvez até do mundo que a coisa ficou feia para o lado dele. Stálin queria competir com os EUA no imperialismo. Seus sucessores também. Deu no que deu.

É verdade que nunca pudemos ver o comunismo florescer sem conflitos enormes atrapalhando tudo. Aplicar esse sistema de governo enfrentando guerra civil, invasão nazista e a fuckin’ nação mais poderosa que esse mundo já viu não é algo que se espera que dê certo, não?

Os comunistas cometeram erros? Vários. Alguns imperdoáveis como genocídio, tortura e repressão violenta, mas esses erros não são do comunismo, são dos líderes que controlavam a esfera soviética de poder no mundo. Não faz parte das regras do sistema montar um arsenal nuclear para destruir um continente inteiro, muito menos matar de fome fazendeiros ucranianos para juntar dinheiro para construir mais tanques de guerra. Faz parte do autoritarismo.

O comunismo nunca deu certo quanto aplicado. Mas até onde sabemos, o maior aumento de qualidade de vida de um povo nos tempos modernos aconteceu na União Soviética. Era um povo que passava fome na fazenda e que em poucas décadas mandou o primeiro homem ao espaço. A vida na União Soviética era ruim perto da bonança sem precedentes do sonho americano, mas nem de longe foi o pior que o mundo tinha a oferecer no seu tempo.

O comunismo fez algumas coisas boas pelo povo. Os líderes do comunismo jogaram tudo fora, e novamente, para ser honesto, considerando as dificuldades que o resto do mundo colocou para eles, muita coisa é compreensível. Eles treinaram para correr os 100 metros rasos, e na hora de começar a prova, apareceu o Usain Bolt do lado deles. É claro que eles foram piores que os EUA em linhas gerais, não teve nenhum precedente na nossa história de um país que cresceu tanto em tão pouco tempo. Era impossível prever o salto de poder dos EUA depois da Segunda Guerra Mundial.

Mas e aí, quer dizer que eu acho que o comunismo só deu errado por motivos externos? Não. É aqui que eu explico o porquê de eu continuar achando uma furada, mesmo depois de deixar o chão brilhando de tanto passar pano para o sistema: não conseguiram fazê-lo funcionar dentro de uma democracia ainda. Enquanto o comunismo depender de autoritarismo, vai ser tão ruim quanto qualquer outra ditadura. O que Marx disse no final do século retrasado até fazia algum sentido na sua realidade de reis, imperadores e ditadores, mas não tem mais lugar no mundo moderno.

Se o seu sistema preferido exige ditadores, ele vai ter os defeitos dos sistemas autoritários. O comunismo nunca deu certo por causa de seus ditadores. Se alguém conseguir aplicar o sistema de governo sem criar uma classe superior (ah, a ironia) como sempre fizeram até agora, talvez possamos pensar em comunismo ou socialismo. A China já é capitalista nessa altura do campeonato, nem se aceitarem democracia vamos saber se daria certo mesmo.

Por isso que eu sempre bato na tecla que direita e esquerda são irrelevantes num mundo onde tanta gente ainda teima em ser escravo de um líder forte. Quando finalmente nos livrarmos do autoritarismo, aí sim podemos testar os lados do espectro político sem contaminação. Grandes coisas ser contra comunismo se tudo o que você quer é lamber botas de outro ditador. Eu tenho horror da direita e da esquerda moderna por causa de fetiche doentio de ser controlado.

O autoritarismo sempre acaba mal porque pessoas são falhas. Democracia existe justamente para evitar que uma ou mais pessoas se perpetuem no poder cometendo sempre os mesmos erros. O comunismo falhou toda vez que foi tentado porque é autoritário. E se esse for o plano para tentar de novo, vai dar errado de novo. Certeza histórica.

Para dizer que eu estou mostrando minhas verdadeiras cores, para dizer que a bota que você lambe é mais saborosa, ou mesmo para dizer que agora não sabe de que lado fica: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • O mais próximo que o Brasil esteve do comunismo posso citar 3 eventos, copa do mundo de futebol de 1958, copa do mundo de futebol de 1982 e final do futebol masculino nas olimpíadas de Seul 1988. O regime comunista como explicado nas obras ao longo dos anos jamais foi aplicado aqui no Brasil e o atual governo está 1 milhão de km de ser um governo comunista. Comunismo funciona como Papai Noel ou o Homem do Saco, não existe, pelo menos por aqui.

  • “É uma simplificação exagerada dizer que Hitler cometeu o mesmo erro de Napoleão ao tentar invadir o território russo no inverno: o exército nazista era muito poderoso e passou perto de tomar Moscou. O gás do ataque alemão acabou a menos de 100 quilômetros da capital soviética, e muito por causa de uma grande ajuda de americanos e ingleses para dar dinheiro, armas e recursos em geral para os soviéticos.”

    Na verdade, Hitler invadiu a Rússia em JUNHO… ou seja, NÃO era inverno. Mas como ele não conseguiu avançar, o inverno acabou chegando meses depois.

  • Se um país precisa ostentar as palavras “democrática” ou “democrático” no seu “nome completo”, é porque no fim das contas não é tão democrático assim…

  • Irmão gêmeo idêntico do Somir

    Não vivemos em democracias, mas em moneycracias.

    Para entender a falha do comunismo, primeiro, leia o livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Ele explica de maneira didática e só mesmo um acéfalo para entender outra coisa que o autor quis dizer.

    Qualquer revolução dita popular ou contra um regime opressor que é tomada por sociopatas, só pode dar merda. Mas mesmo que a primeira revolução não tivesse sido traída, o comunismo teórico teria que passar por uma série de revisões, porque se baseia na introdução ou imposição de um modelo social igualitário, inspirado em comunidades de caçadores coletores, em sociedades complexas ou civilizadas, sendo que, a hierarquia social é a principal estrutura que a organiza. Não teria como dar certo pois se desmontaria no meio do processo. Hierarquias de comando, fundamentais para sociedades complexas, não são o maior impedimento para o combate às injustiças sociais, se é justamente a hierarquia que as impede de cair no completo caos. É o tipo de gente que sobe e sobra no topo, historicamente, o pior tipo.

  • Quem tenta o comunismo por vias democráticas acorda com o Pinochet no comando. O comunismo precisa ser intrinsecamente centralizado porque o adversário é poderoso demais. Mas tenho dúvidas se seria impossível um partido único, necessário para defender o sistema, implementar ferramentas de participação popular para ditar o rumo do país de forma séria mesmo. O negócio é que tudo estaria a voto, exceto o sistema socialista. Mas a tal da liberdade e da meritocracia que o sonho capitalista vende, e usa para manter um sistema de exploração não pode ser tão melhor assim, mesmo com o voto irrestrito. O voto irrestrito doas países capitalistas modernos é sensível demais ao dinheiro e ao status quo. É uma ilusão também.
    O comunismo já deu as suas muitas contribuições para a vida dos pobres em todos os países capitalistas, atenuando as condições de vidas absurdas da virada do século XIX pro XX.
    Eu não queria uma revolução socialista aqui porque o preço a se pagar até chegar lá é muito alto, não fosse isso acho que seria uma experiência válida para um país tão rico e desigual.

  • “Eu tenho horror da direita e da esquerda moderna por causa de fetiche doentio de ser controlado.” O cidadão médio não se importa em ser controlado enquanto a economia estiver boa, essa dualidade é só um hobby. Se o Lula decidir fundar a URSAL ano que vem e em poucos meses vier um milagre econômico, ninguém vai se importar com bolsonaro, zema, ou o que for. Aliás, nem precisa ser um governo autoritário. Duvido que um norueguês ou alemão médio pense muito em política, ele sabe que o país dele é estável e vai ficar assim por várias gerações. Aqui é sempre esse desespero que, se você piscar o olho, vai ter um golpe, uma crise, uma lei bizarra, um imposto novo, prateleiras vazias , corte de água, crise na segurança urbana, qualquer coisa que vai virar tudo de cabeça pra baixo e tirar o pouco que você tem. Isso não é vida.

  • Não é por suas próprias contradições internas ou por dificuldades vindas a reboque das grandes conflagrações históricas do século XX que o comunismo nunca deu certo e jamais dará. É porque a própria tese prevê um altruísmo e um desapego ao poder que, na prática, ninguém tem.

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