15 anos piores.

Vamos dar um passeio nos últimos 15 anos e entender por qual motivo a coluna “A Semana Desfavor” cresce a cada ano que se passa?

Tente lembrar de você em 2008. A gente te ajuda dando o contexto: Fidel Castro ainda era Presidente de Cuba (renunciaria neste mesmo ano), o Papa era Bento XVI, ocorriam os Jogos Olímpicos em Pequim, o navegador Google Chrome é lançado bem como o sistema Android, o Itaú e o Unibanco anunciam sua fusão, o São Paulo é Campeão Brasileiro, morriam Heath Ledger, Isabella Nardoni e Dercy Gonçalves.

Lembre-se de você na época de qualquer um desses eventos (o que te for mais familiar) e se pergunte como você achava, naquela época, que o mundo estaria 15 anos depois. Agora se pergunte se o mundo está como você achava que estaria, ou se está melhor ou pior.

Não estamos falando da sua vida, é bem possível que a vida de quem tem o mindset de gostar do desfavor tenha melhorado. Estamos falando do mundo. Você preferiria criar um filho em 2008 ou em 2023? A vida é mais fácil em 2008 ou em 2023? O planeta estava melhor em 2008 ou em 2023? A saúde mental das pessoas era melhor em 2008 ou em 2023?

Como eu disse ontem e aprofundo hoje: não melhoramos o suficiente em alguns aspectos e pioramos muitíssimo em outros.

O que mais me salta aos olhos é a humanidade não ter conseguido uma cura para nenhuma doença expressiva nos últimos 15 anos. Minha esperança era câncer, mas apreciaria uma cura para qualquer doença que provoque dor, sofrimento e mortes expressivas na humanidade. Tecnologia para isso havia. No entanto, ficou a desejar.

Talvez você esteja pensando que foi uma puta vitória desenvolver uma vacina para covid-19 “em tão pouco tempo”. Bem, o mecanismo da vacina já vinha sendo desenvolvido há anos, mas sim, foi um progresso o fato de terem conseguido adaptá-la ao vírus em tão pouco tempo. Mas tem dois poréns aí: não cura doença e não foi distribuída de forma adequada para o mundo todo, portanto, não cumpre seu papel geral de erradicar o problema e evitar que uma mutação do vírus venha nos assombrar mais para frente.

Nesse mesmo caminho, o mínimo que se esperava é que a ciência estivesse mais acessível, mais difundida, mais popularizada, servindo como um farol para guiar a humanidade. De todos os conhecimentos que a internet poderia ajudar a divulgar, essa seria minha prioridade. Infelizmente não foi isso que aconteceu. Não apenas não se democratizou o acesso a este tipo de informação, como ainda surgiu um grupo que a combate. Os “anticiência” não param de crescer.

Não falo apenas de negacionistas de vacina ou terraplanistas. É muito maior do que isso. Vai desde idiotas que negam a existência da neve e dos pássaros até conspiracionistas que não param de boicotar medicamentos por sugerir que a “indústria farmacêutica” não quer que você saiba que bicarbonato ou graviola curam câncer. Idiotas que pagam mais caro por produtos acreditando que eles não foram testados em animais. Imbecilóides que passaram a pandemia gritando “respeite a ciência” agora estupram a ciência. Defendem horóscopo, simpatia, misticismo. Imbecis que acham ok homem competir com mulher em prova de força física e explosão.

Sim, é negacionismo científico botar uma pessoa que nasceu biologicamente homem, portanto, com mais testosterona, massa muscular e força para competir com uma mulher. Pouco importa como essa pessoa se sinta, ela não é equivalente fisicamente à sua oponente. Seu sentir não muda a realidade, que é seu corpo é diferente e coloca a pessoa em uma vantagem desleal.

O massacre que estão fazendo com a ciência daria assunto para um único texto, o que me obriga a encerrar por aqui. Hoje vemos infinitos tipos de negação científica e desprestígio à ciência de pessoas que não estão capacitadas para questionar a ciência. O argumento teratológico do “quero me informar para tomar uma decisão” esconde uma puta arrogância: você não sabe o suficiente para entender os dados que podem te informar, filtrar mentiras ou distorções e tomar uma decisão. Uma pesquisa na internet não é se informar.

Por falar em internet, vamos analisar o que mudou? Hoje internet é praticamente sinônimo de redes sociais. Se em 2008 e anos anteriores ela era usada para pesquisa, para ler notícias, para procurar sites sobre determinados assuntos, hoje a realidade mudou.

Quando Desfavor começou, redes sociais como Facebook e Twitter estavam no começo. Muitas delas de fato são usadas para disseminar informação importante, o problema é que a maior parte das pessoas não quer ver isso. As pessoas usam rede social para evadir a vida privada, ostentar uma virtude de felicidade que quase nunca são reais e stalkear a vida alheia.

Tanto é que as redes sociais que existiam na data da criação do Desfavor acabaram não sendo suficientes e, em 2010, cederam lugar ao Instagram e em 2014 ao TikTok, que são as duas predominantes hoje. Redes que se baseiam em evasão de privacidade, em uma realidade mentirosa e em alienação fútil.

A internet era uma ferramenta que poderia levar conhecimento, informação e poder de mobilização para todos os tamanhos de coletividades e, ao invés de usar assim, a regra é que seja usada para evadir privacidade, desfilar virtude, brigar, atacar, criticar e controlar a vida alheia. E o mais triste é: o ser humano tem o poder se usar da forma certa, mas só o faz pelos motivos errados, por exemplo, se unir para expulsar participante de reality show.

A saúde física das pessoas também se deteriorou. Sabemos que é uma grande balança que deve estar em equilíbrio: a sociedade expande gerando perda da qualidade de vida e, do outro lado, a medicina evoluí e encontra alguma forma de compensar os danos e a perda de qualidade de vida que essa expansão gerou. Pois bem, parece que no momento, a balança está desequilibrada.

Nunca ocorreram tantos casos de doenças crônicas como diabetes. Nunca foram registrados tantos casos de câncer. Nunca vimos uma população tão obesa, tão sedentária e que dorme tão mal. Nunca hábitos básicos de saúde foram preteridos e depois se tentou compensar com alguma saída mágica e fácil como uma terapia alternativa qualquer, um chá mágico que ______ (derrete gordura, quebra pedras nos rins ou qualquer outra mentira) ou com qualquer outro placebo ignorante que preguiçoso adota para não ter que fazer a coisa certa e não se sentir culpado por isso.

Some-se a isso um ar mais poluído, um clima mais extremo, uma rotina mais estressante, alimentos mais contaminados e todo o entorno da sociedade atual e você verá que é mais do que esperado que as pessoas adoeçam com facilidade e tenham uma qualidade de vida bosta depois de uma certa idade, por ter o corpo detonado por um combo de agentes externos nocivos.

E a parte física nem é a pior. Na minha opinião o grande problema de 2008 para cá é a saúde mental.

A saúde mental impacta em tudo em uma sociedade, inclusive na saúde física, na segurança pública e no desenvolvimento. Pessoas com saúde mental comprometida não trabalham direito e não levam uma sociedade para frente e ainda causam muitos problemas.

Não é uma opinião minha, são os números que mostram que a saúde mental está em franca decadência e que nada está sendo feito para mudar esse cenário. E aqui não falo de governos malvados ou a maquiavélica indústria farmacêutica, falo em autorresponsabilidade mesmo. Todo mundo sabe o que precisa ser feito para cuidar da saúde mental e poucas pessoas efetivamente o fazem.

Não passar o dia em redes sociais consumindo lixo e perdendo tempo é apenas uma pequena ponta desse iceberg. Tem um combo enorme que envolve alimentação, sono, atividade física estilo de vida e outros fatores que vem sendo ignorado. Não dá para atribuir mais problemas mentais à Dona Maria que não tem condições de procurar um tratamento. O brasileiro classe média que tem condições também não o faz: enfia um remédio goela abaixo e vai viver a vida sustentado por uma muleta.

Qualquer problema da mente precisa, além de eventual ajuda de um remédio, um tratamento psicológico. Se a estrutura psíquica de uma pessoa não foi suficiente para segurar o rojão que é o mundo atual, não adianta camuflar sintoma com remédio, é preciso fortalecer a estrutura, se não tudo vai colapsar novamente – isso só com terapia. Mas, ao que tudo indica, as pessoas não querem melhorar, querem ser funcionais. Vai dar merda: sim ou claro?

Saúde mental é a base de uma sociedade. E saúde mental não é conseguir sair da cama e ir trabalhar. Não é ser funcional. É estar bem, em paz, centrado e feliz. Saúde mental é estar equilibrado, é ter uma vida fluida que não seja difícil de viver, é estar conectado com você mesmo, se conhecer e se respeitar. Quantas pessoas estão com a saúde mental em dia hoje?

E, veja bem, não tem nenhum problema não estar com a saúde mental em dia, todos nós em alguns momentos difíceis da vida não estaremos. O problema é não fazer o que precisa ser feito para resolver, criando uma horda de pessoas com saúde mental ruim. O problema é achar que terapia é coisa para maluco, é achar que pode resolver sozinho (se pudesse não tinha colapsado em primeira instância), é achar que o problema passou por estar tomando remédios que te colocam nos trilhos.

Sem saúde mental não se tem nada. E o mundo, principalmente o Brasil, está esquecendo de olhar para a saúde mental com a importância que ela merece.
Eu posso ficar aqui dez páginas falando de tudo que não melhorou e do que piorou, mas prefiro focar no item mais essencial, na base, sem o qual todo o resto não se desenvolve de forma satisfatória: sem saúde mental não tem sociedade que vá para frente. E não ter saúde mental não é apenas babar e gritar usando uma camisa de força.

Não falta saúde mental apenas para o deprimido que não consegue levantar da cama, também falta a quem fuça os pertences do outro, a quem perde seu tempo stalkeando a vida alheia, a quem acordo e vai dormir triste, a quem não acha graça em nada na vida, a quem não consegue manter um relacionamento funcional, a quem acaba arrumando briga e confusão com todo mundo, a quem fica brigando em rede social, a quem evade a privacidade, a quem se acha vítima, a quem não consegue dormir sem remédios… a lista é enorme, acho que vocês entenderam onde quero chegar.

Sem saúde mental não tem evolução. Não tem melhora. Não tem nenhuma das pautas secundárias às quais as pessoas insistem em dar tanta importância. É condição que antecede a todo o resto e, mesmo sendo de tal importância, não melhorou e ainda piorou.

E estas pessoas com essa clara piora de saúde mental estão votando, criando filhos e se tornando líderes no mercado de trabalho. Nos 30 anos de Desfavor vamos ver a plenitude desses efeitos.

Ainda que em um ponto ou outro o mundo possa efetivamente ter melhorado, ou é algo maquiado, ou é uma melhora superficial que não vai se sustentar, pois sem saúde mental não tem melhora. E não adianta continuar correndo atrás de outras coisas, no nível coletivo ou individual: sem saúde mental todo o resto ruirá.

Então não é apenas sobre melhora, é sobre melhora real, sustentável, sólida e duradoura. Não é sobre um acontecimento feliz ou uma sorte que demos. É sobre efetivamente estar construindo um mundo melhor, uma sociedade melhor com pessoas melhores. Alguém aqui acha que como coletividade melhoramos?

Estamos destruindo o planeta mais do que nunca. Matando uns aos outros mais do que nunca. Criando filhos disfuncionais e despreparados mais do que nunca. Brigando mais do que nunca. Cada vez mais incapazes de manter relacionamentos profundos, verdadeiros e sólidos. Incapazes de cuidar de nossas saúdes físicas e mentais. Desculpa, não vejo nenhuma melhora genuína nesse contexto.

Minha vida melhorou de 2008 para cá? Muito. Mas eu não sou idiota de achar que a minha bolha reflete o mundo todo. Olhem para o mundo e vocês verão que rumamos a passos largos para a extinção.

Para dizer que prefere passar amanhã e ver a versão otimista do Somir, para dizer que nem melhorou nem piorou está igual ou ainda para dizer que pandemia e duas guerras foi pouco: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • Eu não curto velharia, não! Naquela época o povo ainda usava bastante email, ficava mandando aquelas merdas de corrente. Hoje no zap é mais fácil bloquear ou mandar enfiar corrente no rabo. Pra frente que se anda.

  • Eu sou mais otimista. Analisando os dados frios, desde 2008 até o tempo atual (alguns dados são de 2021, outros de 2022):

    – expectativa de vida com crescimento (levou uma pancada devido à pandemia, mas se tirar a pandemia dos dados, o gráfico é crescente);
    – índice de desenvolvimento humano também crescente (e também levou pancada com a pandemia);
    – acesso a algum tipo de educação formal também aumentou;
    – índice de mortalidade infantil também continua diminuindo;
    – extrema pobreza também diminuiu.

    Já em relação à saúde mental, aí fica complicado mesmo. Também acredito que tenha aumentado no geral, já que estatísticas de ansiedade e depressão tem mostrado aumento mesmo.

  • Nossa, Sally, isso me deu lá certa nostalgia do passado… Lembro na época em que “tudo era mato” na internet, que havia certa diversidade, não só redes sociais. Havia o tal do flogão, o fotolog, havia vários blogs pra gente seguir e ler as postagens diárias ou semanais, sobre vários assuntos, tinham também os fóruns, sites informativos, sites de curiosidades, de noticias, enfim, era bem diversificado. E eu gostava de acompanhar uma série de sites e blogs, além do desfavor. Hoje, essa era dos blogs acabou, infelizmente.

    Aliás, não sabia que o tiktok surgiu em 2014, parece algo bem mais recente. E me entristece o fato de que a internet bem que podia mesmo ajudar a disseminar o conhecimento, a ciência, mas ao invés disso, temos mais gente burra e maluca espalhada por aí.

    • Ge, antigamente eu também frequentava sites de vários tipos (blogs, fóruns de discussão, compliados de curiosidades, comunidades online, etc.). E era muito legal participar, trocar ideias, conhecer gente nova com os mesmos interesses que a gente… Pena que essa “era” acabou. Alguns ainda sobrevivem, mas com muito menos alcance e restritos a nichos. Hoje em dia, parece que tudo se resume a redes sociais! Mesmo no YouTube, que é uma “mega-televisão” exibindo de tudo em todos os horários, ainda dá para achar conteúdo interssante aqui e ali – depois de, claro, “peneirar” bastante -, mas o formato, até por ser uma plataforma de vídeos, é um tqnato quanto “engessado”. Basicamente, o youtuber posta e quem assiste comenta e, às vezes, faz um “vídeo-resposta”. Sinto falta de ver pessoas se manifestando e interagindo entre si na internet de outras formas.

      • Eu também sinto falta de interação de fato, sabe? Que agregue alguma coisa, e não esse bla bla bla qualquer de polêmicas baratas e engajamento nas redes sociais. Triste fim que acabou…

        • Isso me faz lembrar um pouco o que está acontecendo com o bluesky, a nova rede social cópia descarada do Twitter, que foi fundada pelo antigo dono do Twitter antes de vender pro Elao…

          Lá, por enquanto, não tem propagandas, não tem algoritmo te impulsionando conteúdos, não tem fluxo de postagens aleatórias, é tudo cronológico, não tem engajamento, nem lavradores, trend tópicos, nada disso.

          Lá lembra muito a época do Twitter raiz, lá nos idos de 2009, em que as pessoas entravam mesmo pra interagir nas conversas alheias, comentar e tal, aí acabava virando meio que um bate papo, a gente descobria várias pessoas legais e com interesses afins, enfim…

          O que acho curioso é que quem entra lá querendo treta e lacração acaba que sendo hostilizado por outros usuários, por que lá não é lugar disso. Inclusive, até ri de um caso outro dia em que o sujeito exigia o selo de verificação do perfil (coisa que não existe lá!) só porque o abençoado tinha um canal no YouTube… Vai vendo?

          Isso só me fez pensar o quanto o Twitter é as demais redes sociais dsixadma as pessoas doentes, burras e cegas, tudo que importa pra eles é engajar, lacrar, gerar visualizações aos milhões, pouco importa o conteúdo a ser publicado, ou a mensagem que se diz, enfim.

          Muita gente diz que o bsky é flopado… Mas é claro que é flopado, afinal, tu não segue ninguém e não interage com ninguém! Lá não funciona da mesma forma que no Twitter, não mesmo!

          Han quem diga que essa rede tem prazo de validade e tal, eu não acredito tanfo, acho que ainda há esperança, e acho que dinheiro não é problema pra eles pra manter uma rede aberta sem propagandas e engajamento… Vamos ver mais pra frente…

          • Aí depende de quem você seleciona, de quem você escolhe seguir. Tem um grupo bem politicamente incorreto no Twitter (Elão permite tudo) que não tolera nenhum tipo de lacração e mimimi.

  • Falam tanto em “deixar um mundo melhor para os filhos” mas eu não vejo ninguém dando um pio sobre “deixar filhos melhores para o mundo”…

  • 2008, provavelmente eu era a única criança da escola que se consultava em um psicólogo. Bom, pelo menos era a única que todo mundo conhecia.

    2018 eu já praticamente não conheci nenhum adulto que não passasse em psiquiatra e tomasse remédios, ou que não tenha feito isso antes ou que claramente não precisasse.

    Então sim, testemunhei a níveis próximos que houve deterioração da saúde mental coletiva. No começo, achei que “não é que está aumentando o número de doentes, essas pessoas doentes sempre existiram mas só agora podem ser diagnosticadas corretamente”.

    Por um lado, estou contente que hoje exista maior conscientização e conhecimento sobre condições psiquiátricas, que nem tudo é loucura, demônio ou retardo.

    Por outro lado, mais e mais casos em tão curto prazo, principalmente de TDAH, depressão e ansiedade generalizada, tanta gente fazendo uso de medicação por anos… E me parece que muita gente usa desses transtornos como carteira de identidade…

    • É um círculo vicioso: pais sem saúde mental criam filhos sem saúde mental. Pais que cresceram com nariz na frente de uma tela e hoje tem TDAH criarão filhos que cresceção com nariz na frente de uma tela. Pais que resolvem tudo na medicação criarão filhos que acham normal resolver tudo na medicação.

      • “É um círculo vicioso: pais sem saúde mental criam filhos sem saúde mental”. Sem dúvida, Sally. E temo que a tendência para o futuro, infelizmente, seja piorar…

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