Censurar, gostoso demais.

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu por 9 votos a 2 que empresas jornalísticas de qualquer natureza podem ser responsabilizadas civilmente por injúria, difamação ou calúnia por causa de declarações feitas por pessoas entrevistadas. A Corte definiu nesta 4ª feira (29.nov.2023) a tese fixada na análise de uma ação que trata de uma entrevista publicada em 1995 pelo jornal Diario de Pernambuco. LINK


Era para toda a mídia do país ter parado para falar só disso até desfazerem essa aberração. Não fizeram. Desfavor da Semana.

SALLY

Uma decisão do STF chamou a nossa atenção esta semana: responsabilizar a mídia por aquilo que seus entrevistados falarem. Veículos jornalísticos de qualquer natureza, impressos ou digitais, podem ser condenados por entrevistas com informação errada ou falsa.

Obviamente isso é um desfavor. Mas, é um desfavor tão óbvio que nem precisamos aprofundar: qualquer denúncia de corrupção pode se voltar contra a imprensa. Qualquer denúncia de agressão também. Os temas que podem ser tratados se limitam muito. Desde mensalão até Ana Hickmann contando que foi agredida, tudo isso seria um risco enorme para quem divulga, pois se acabasse se provando falso, o veículo jornalístico seria responsabilizado e massacrado. Dependendo da multa ou punição, teria até que fechar as portas.

Portanto, não vamos falar do desfavor óbvio e sim das diferentes camadas sutis de desfavor que o recobrem.

Para começo de conversa, quem tem que dizer o que pode e o que não pode é o Legislativo, que legisla, isto é, cria leis. O STF deveria ser apenas o órgão que julga processos envolvendo questões constitucionais e se assegura de que a Constituição seja respeitada. Mas… esse trem já partiu, no Brasil o STF cria lei, muda lei e faz o que quiser a título de “interpretação”. Deixemos esse ponto de lado então.

Eu quero falar sobre um detalhe que se aplica a este a muitos outros casos: o subjetivismo. Já falei dele várias vezes aqui e do câncer que ele é nos sistemas legislativos e jurídicos brasileiro, mas agora tem um exemplo perfeito para ilustrar meu ponto.

O certo é que leis (ou essas interpretações bizarras do STF como forma de legislar) sejam objetivas, isto é, que estabeleçam critérios concretos que não dependam de interpretação, para que essas leis valham para todos. Vou relembrar meus tempos de professora de direito e desenhar para vocês.

Vamos pensar na cidade fictícia de Jumping Kids. A cidade de Jumping Kids vem enfrentando um problema seríssimo: muitas crianças estão caindo pelas janelas do apartamento e morrendo. Isso está se tornando um problema e prejudicando toda a sociedade. Todos os dias ao menos 10 crianças morrem dessa forma. É preciso uma lei para conter esse problema.

Você é o legislador de Jumping Kids, encarregado de resolver o problema e criar uma lei que efetivamente proteja essas crianças do perigo. Você tem que legislar sabendo que em Jumping Kids tem diversos poderosos ricos e influentes que farão de tudo para burlar a lei e escapar das regras que serão impostas. Seu interesse é proteger as crianças. Redija uma lei que cumpra esse papel e que seja aplicável a todos, até mesmo a quem quer escapar dela.

Ok, é sábado e ninguém está sendo pago para isso. Eu mesma faço a redação, não de uma, mas de duas leis e vocês me dizem qual é a que vocês acreditam que melhor protegeria as crianças e pune mesmo aqueles que tentam burlar a lei:

Lei 1: “É vedado a partir da presente data deixar qualquer janela ou acesso ao mundo exterior de qualquer imóvel sem a devida proteção de grades que sejam aptas a impedir a passagem de qualquer ser humano em qualquer idade. Aquele que descumprir esta lei será punido com 30 anos de reclusão.”

Lei 2: É vedado permitir que crianças se coloquem em situações de risco, especialmente no caso de queda por janelas, sendo obrigatório que todos os cuidados para sua proteção sejam adotados de modo a garantir sua segurança. Aquele que descumprir esta lei será punido com 30 anos de reclusão.”

A única lei que seria de fato útil é a 1, pois ela é objetiva: tem que colocar grade, ponto final. Não cabe nenhuma dúvida, nenhuma interpretação, nenhuma exceção. A Lei 2 proíbe que crianças sejam colocadas em “situação de risco”. O que é uma situação de risco? O que são “cuidados para proteção”? Uma criança pode cair da janela e, ainda assim, o juiz entender que os cuidados foram tomados. Não há um consenso, vai ficar a cargo de um juiz interpretar. E quando mais coisa fica na mão da interpretação de um juiz, mais poder ele tem.

Vamos supor que um pai de Jumping Kids, que calha de ser o Prefeito da cidade, saiu para beber e usar drogas, deixando o filho pequeno sozinho. Ele deixou a criança no quarto, com a porta fechada. A criança abriu a porta, foi para a sala e caiu pela janela.

Esse pai vai poder argumentar que não colocou a criança em risco pois a deixou no quarto e com isso tomou o cuidado necessário para sua proteção e a queda foi uma fatalidade – e sendo o Prefeito, bem possível que o juiz lhe dê razão. No melhor dos mundos, serão anos de discussão, de produção de provas e provavelmente vai ganhar quem tiver o melhor advogado ou mais influência.

Com esta dica básica você aprendeu a diferenciar, para o resto da sua vida, uma lei eficiente e bem-intencionada de uma lei bosta e criada para beneficiar ou prejudicar alguém. Sempre observe o quão objetiva ou subjetiva é uma lei (ou uma “interpretação) e isso vai te responder tudo que você precisa saber sobre ela. Quanto mais subjetiva, mais deturpável e menos justa ela será.

É basicamente isso que o STF vem fazendo sistematicamente por décadas: aumentando a subjetividade das normas para poder decidir como quer, de acordo com seus interesses ou de acordo com quem é o réu. E está fazendo isso nesse caso também. O que parece, aos olhos do leigo, algo sensato, é uma ferramenta para permitir flexibilidade de julgamento, condenando quem eles querem e inocentando quem eles não querem.

Quando o STF diz que “Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”, por exemplo, ele está deixando dois critérios subjetivos que ele mesmo irá analisar, que lhe permitem flexibilidade suficiente para absolver ou condenar quem eles bem entenderem.

O que são indícios concretos? O que é observar o dever de cuidado? Por mais que existam precedentes jurídicos que definam de alguma forma, sabemos que o STF é quem diz qual a interpretação correta da lei, portanto, está em suas mãos definir, caso a caso. E certamente esse conceito é um para aqueles que são amigos da corte e outro para aqueles que são inimigos da corte. O STF transforma um presidiário condenado e que responde a mais de dez processos em Presidente se quiser.

Não se deixa tanto poder nas mãos de meia dúzia de pessoas. Nunca deu certo em toda a história, não vai dar agora. Se desta vez calhou de beneficiar quem você simpatiza e prejudicar quem você antagoniza, lembre-se que é apenas uma questão de tempo até acontecer o contrário. O mundo dá voltas.

O papel da mídia é denunciar, quem tem que ter certeza, investigar e apurar é a polícia e o Ministério Público.

A mídia está surpreendentemente quieta. Era para estarem gritando muito. Talvez hoje ela esteja a salvo, por alianças e troca de favores, mas, como dissemos, o mundo dá voltas e amanhã esse STF pode ser terrivelmente bolsonarista.

A mídia está fechando os olhos para os abusos do STF faz tempo. Você leu aqui, no Desfavor, uma década atrás que quem manda no país é o STF e que era preciso ter cuidado. A mídia está deixando correr solto e quando a corda efetivamente apertar, vai ser tarde.

A paumolescência da mídia e do povo brasileiro diante desse disparate é tanta que eu estou quase torcendo para o mundo dar voltas e isso foder com os idiotas que acharam uma boa ideia permitir essa aberração.

Pior do que esse tipo de censura revestida de boas intenções é ver o mecanismo sutil de conquistar poder enfiando subjetivismo em tudo passando abaixo do radar da maior parte das pessoas. Tá na hora de acusar o golpe e não tolerar mais esse tipo de usurpação de poder. Tá na hora de botar o STF no cercadinho dele, e tirar um pouco de poder dessa gente feia, deslumbrada e oleosa.

Mas se o povo não reclamar, fica difícil. Observem bem a trolha que está mirando o cu de vocês. Querem ficar quietos? Sagrado direito. Mas não venham gritar quando, dentro de alguns anos, essa trolha entrar rasgando.

Para dizer que super moraria em Jumping Kids, para dizer que teria gostado de assistir uma aula minha ou ainda para dizer que é censura do bem: sally@desfavor.com

SOMIR

Primeira coisa que eu disse para Sally depois dela me mostrar o texto da lei foi: “defina dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos”. Ela só me respondeu com um “pois é…”

Pois é porque é uma decisão que coloca uma quantidade assustadora de poder na mão de um juiz, o que fica ainda pior quando esse juiz é brasileiro. Como ela bem explicou, subjetividade é uma arma poderosa para o Judiciário moldar a realidade como bem entender. Se o juiz em questão gosta do jornalista, ele fez tudo o que podia; se não gosta, faltou com o seu dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos.

É mais ou menos como escrever uma lei dizendo que policiais podem decidir prender uma pessoa por “fazer algo errado”. Uma civilização não pode funcionar assim, por mais que a massa de brasileiros com Q.I. de deficiente mental (praticamente metade) ache que é assim que se coíbe o crime.

Mas como já disse, ela explicou. O que eu quero olhar aqui é o nefasto resultado de anos de críticas erradas ao STF feitas por bolsonaristas e conservadores religiosos em geral. Se você critica os ministros do STF por não permitir que o presidente force seu negacionismo científico goela abaixo de toda a população ou por ser contra dar um golpe de Estado para criar uma nova ditadura militar, você está dando mais e mais força para eles.

Você não precisa achar que Lula é menos negacionista ou acreditar na capacidade de Bolsonaro e sua turma tomarem o poder para perceber como no final das contas, as críticas mais populares ao STF nos últimos anos os pintaram como pessoas razoáveis com os melhores interesses do Brasil em mente. O imbecil que ia soltar rojão contra os ministros estava basicamente dizendo que eles eram ruins porque queriam defender o país de uma pandemia e uma ditadura.

O objetivo da turba bolsonarista era tão tosco e obviamente incompatível com o bom funcionamento de um país que por pelo menos quatro anos a maioria das pessoas com mais de dois neurônios se viu obrigada a concordar com as decisões do SFT, pelo menos em linhas gerais. A mídia sendo uma parte relevante desse público. O pior é que toda vez que o STF era provocado a dar uma resposta, era contra ideias incrivelmente estúpidas de Bolsonaro e seus comparsas, então, mesmo que você não quisesse colocar uma luz positiva na reação dos ministros, era o fato disponível para noticiar.

“Ministro do Supremo Tribunal Federal é contra a ideia de dissolver o sistema democrático e colocar o Bolsonaro como ditador.” Não quer dizer que o ministro seja uma pessoa boa, só quer dizer que ele foi contra obviamente errado segundo a Constituição brasileira. Anos noticiando esse tipo de embate entre “a porra da obrigação do Judiciário” e “as vontades bizarras de um grupo ideológico de babuínos” geraram uma aura de nobilidade nas decisões do tribunal.

Mas não é o caso. O caso é que durante quatro anos eles tiveram que olhar para casos obviamente malucos e dar sentenças obviamente lógicas. Sim, ainda bem que o STF não era composto de Pazuellos e Damares, porque sabe-se lá o estado de insanidade atual do Brasil; mas daí a derivar que o STF atual é bonzinho ou que precisa ser protegido eternamente contra críticas é um erro horrível. Tanto que agora tomam essa decisão que culpa jornal por publicar entrevistas.

A sociedade ainda não conseguiu se reorganizar com a ideia de que as pessoas mentem na internet, ou pior, que repetem mentiras porque não tem conhecimento nenhum de… nada. O bolsonarismo não inventou isso, até porque o PT fazia isso há décadas, e faziam isso com o PT antes… é um grande ciclo de mentira e incapacidade de compreensão do cidadão médio. Mas o tema ficou popular de verdade durante os anos de financiamento público da fábrica de mentiras bolsonaristas.

A Justiça Eleitoral tomou para si a responsabilidade de enfrentar a indústria das Fake News, até porque vivemos na terra do “alguém tem que fazer alguma coisa, menos eu”, e ao delegar essa tarefa, o brasileiro médio foi dando ao Judiciário a impressão de que poderia controlar a narrativa. A mídia foi junto, até porque naquele momento era melhor estar do lado do STF do que do bolsonarismo, afinal, o bolsonarismo odeia jornalista.

Só esqueceram do óbvio: todo mundo que quer exercer poder sem ser criticado odeia jornalista. Lula odeia jornalista. Os ministros do STF odeiam jornalista. Não os comparsas deles, é claro, mas o conceito: eles não gostam de ter alguém que pode expor seus erros (intencionais ou não). Bastou o bolsonarismo ficar mais fraco que Lula e o STF entraram na brincadeira de controlar a Imprensa.

Como não são toscos como Bolsonaro, não o fazem berrando que tem que bater em jornalista, eles o fazem criando leis dúbias que podem ser usadas para calar a boca da Imprensa quando for conveniente. Bandido bom não manda mensagem para a polícia dizendo qual crime vai cometer em qual localidade, né? (até por isso nunca tivemos medo de um golpe do Bolsonaro) Com a desculpa de continuar sua cruzada contra as Fake News, deixaram uma porta aberta para colocar medo e eventualmente até punir quem fizer alguma denúncia contra eles.

Não precisam usar agora, é até burrice usar agora. É só um seguro. E como o gado do lado perdedor da cerca passou anos batendo no STF pelos piores motivos possíveis, a opinião pública ainda fica receosa de criticar os excelentíssimos corporativistas do Supremo Tribunal Federal. Você pode e deve ser contra qualquer grupo tentando subverter o Estado Democrático de Direito. Bolsonaro queria, Lula quer, o STF quer.

Se tinha uma hora para invadir o STF e cagar na mesa dos juízes, o atual é muito mais razoável do que aquela maluquice de querer colocar a anta do Bolsonaro como ditador. Mas a grande mídia ficou bem mais quieta do que deveria, e pouca gente sequer ficou sabendo disso.

Pelo visto, o aumento da verba de publicidade do governo atual compensa. Mas não podemos ignorar a verdade: essa decisão do STF merecia no mínimo a abertura de um pedido de impeachment contra os 9 juízes que votaram a favor, pois foram negligentes com a sua função de defender a Constituição, que veda qualquer tipo de controle sobre meios de comunicação social. Mas a única coisa que o Senado faz é picuinha sobre temas irrelevantes, porque no fundo no fundo, o ódio ao jornalismo verdadeiro é a cola que une todos os poderosos.

Para dizer que deveriam estender isso às redes sociais e seus usuários (só topo porque acabaria com todas), para dizer que eles vão fazer ainda pior por terem escapado livres dessa, ou mesmo para me dizer para fazer o L (eu votei no Lula uma vez em 2001, de resto sou inocente): somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • A imprensa está quieta porque foi conivente, acham que esse era o preço a pagar para tirar o Bolsonaro e se chorarem agora, vão tomar chuva de faz o L.

    Espero que sintam na pele o “missão dada, missão cumprida” do Xandão, aviso não faltou do próprio Squid que ele ia mover céus e terra pra censurar a mídia assim que botasse a bunda velha e ardida dele na cadeira de presidente. Todos eles fizeram que não ouviram.

    • Quando o mundo der voltas e bolsonarista ou qualquer oposição usar isso para calar petistas, nós estarmos aqui rindo e relembrando que avisamos.

  • Lembro quando a imprensa inteira ficou de quatro pro STF assim que o Borsalino foi eleito porque precisaria deles pra derrubar o Borsalino. Assim que ele entrou, a Lava-Jato passou de esperança da justiça para arma política que deveria ser anulada a qualquer custo, STF passou de bastião de impunidade e ineficiência pra guardião da democracia.

    Tá aí o resultado.

    Talvez no futuro apareça uma geração de jornalistas combativos, mas os que estão aí hoje estão mais do que contentes em oficializar sua posição de assessoria de imprensa do governo, tanto pelas benesses concedidas pelo governo, quanto por considerarem que seu silêncio e omissão são um preço justo a se pagar para a manutenção do “Estado Democrático de Direito™”

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