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Ele disse, ela disse: Divina comédia.

| Desfavor | | 43 comentários em Ele disse, ela disse: Divina comédia.

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Semana Anta 2014: estamos no ano 64; Somirius e Saella são os escritores da combalida e endividada Companhia de Teatro “Roma Imperial do Desfavor”. Inspirados pelas lendas sobre um maluco judeu, os dois escrevem uma comédia com resultados trágicos.

Bom dia, companheiros da RID. Estamos aqui hoje para tomar uma decisão muito importante. Como sabemos, após o Grande Incêndio a população quer a cabeça de Nero. A peça que enviamos para seus assessores está sendo usada para jogar a culpa do incêndio sobre os cristãos. Precisamos decidir se falamos ou calamos… mas antes de votar, Somirius e Saella vão defender suas opiniões. Primeiro as damas:

SAELLA

É hora de admitir que as coisas saíram do controle. E quando as coisas começam a sair do controle, o melhor que alguém pode fazer para se proteger é falar a verdade e enfrentar as consequências. Adiar a verdade apenas cria um efeito cumulativo, que torna a mentira cada vez maior, cada vez mais perigosa e cada vez mais nociva. Quanto antes acabarmos com isso melhor.

Permita-me compartilhar nosso problema… Somirius e eu estamos passando por sérios problemas financeiros, e, posso assegurar-lhes, não por falta de talento. Sem falsa modéstia, somos bons escritores, mas infelizmente as verdades que escrevemos parecem não agradar o Romano Médio. Sim, o povo de roma parece apenas gostar de se iludir, de se distrair, de ouvir o que lhe convém. Um povo muito atrasado, tenho certeza que dentro de alguns séculos a humanidade evoluirá e irá rir desse atraso civlizatório.

Pois bem, graças à alienação do Romano Médio, nossos escritos não tem mercado e nossa situação econômica é deplorável. Era hora de tomar uma atitude. Decidimos escrever uma peça de teatro altamente comercial, com todos os clichês que uma boa fábula deve ter. Alienação pura, mentira descarada e tudo aquilo que as pessoas gostam de ouvir para se sentirem especiais. Seria um sucesso, não tinhamos dúvidas. E por mais nauseante que a história seja, nos divertimos bastante escrevendo-a, tamanho o ridículo do enredo. Chegamos inclusive a cogitar direcioná-la para um público infantil, dada sua simplicidade e mediocridade.

A boa mentira, como todos sabem, é aquela permeada por verdade. Contamos uma história boba, sobre o maluco da cidade onde nascemos, permeada por elementos mágicos que beiram ao deboche. A peça tinha que ser divertida, e o Romano Médio só se diverte com fantasia, com um belo distanciamento da realidade e com muita ilusão. Ok, se era isso o necessário para finalmente conseguir lucro com nossos escritos, que seja. Assim foi criada uma história fantasiosa, ofensiva até, para aqueles que tem cérebro. Era uma peça de teatro, havia licença poética para isso. Os manuscritos da peça foram devidamente entregues a nosso imperador, Nero.

Nero, caso vocês não saibam, não é uma criatura dócil. Tem temperamento difícil e quem o contraria ou o desagrada não costuma ter um bom final. Foram muitos dias de expectativa até obter uma resposta. Posso garantir que se hoje estamos vivos para escrever estas linhas, é sinal de que Nero gostou muito da nossa história. Em um surto ilusório pensamos que ali começaria nossa carreira de sucesso: finalmente alcançamos a fórmula para agradar o povo! A dose certa de ficção, de mentira descarada, de fantasia e de distorção. Estávamos orgulhosos de, após um grande esforço, ter captado as necessidades rudimentares da mente do Romano Médio.

Mas, nossa alegria durou pouco. Por motivos de força maior, Nero decidiu usar nossa história não para uma exibição teatral, e sim para salvar a si mesmo. Ele que apresentar nossos escritos como se fossem reais, fruto de espionagem obtida por agentes infiltrados. Porque? Para responsabilizar terceiros por seus erros. Fomos conduzidos mediante a mira de lanças à presença de Nero, que nos comunicou (isso mesmo, não pediu, nos comunicou) que nossos escritos não seriam encenados e sim divulgados como um documento oficial de espionagem. Mais: pagaria bem menos do que o combinado, pois não teria o lucro do público pagante que iria aos teatros.

Depois deste comunicado, formos conduzidos para nossas casas. O anúncio do “documento” obtido com espionagem já foi feito à população e agora estamos diante de um impasse: calar e deixar a história mentirosa se espalhar ou contar a verdade, desmentindo Nero, correndo risco de morte.

Sinceramente, nem é pela questão moral, mas sim por questão de bom senso, acredito que devemos falar a verdade. Por pior que seja o Romano Médio, eles não vão acreditar nessa história fantasiosa, o deboche vai se espalhar, eles ridicularizarão Nero. Nosso imperador destemperado como é, quando perceber que nossa história não foi boa o suficiente para abafar os últimos eventos, vai nos acusar de fraude, de sabotagem ou de ter plantado documentos falsos e acabaremos mortos. Nossa chance é contar toda a verdade e fugir, assim ao menos não nos será imputada a acusação de mentirosos. Temos como provar que nossos escritos nasceram para se tornar uma peça de teatro, basta usar essas provas.

Apenas para dar uma idéia do ridículo da peça, que mesmo para o Romano Médio, será intragável: uma dama engravida virgem, seu filho é concebido de forma divina e é o filho de Deus, ele anda sobre as águas, ele transforma água em vinho, ele faz paralíticos caminharem. As pessoas certamente desconfiarão e Nero vai nos punir por isso. Quando algo não sai como Nero planejou, ele primeiro diz que não viu nada, que não sabia de nada, e, quando o não ver se torna insustentável, ele destrói quem pode prejudicá-lo.

Pensem comigo: se não contarmos a verdade é certo que Nero tentará nos matar, pois seremos uma ameaça ambulante. Duas pessoas que carregam um segredo que pode ser sua ruína. Porém se contarmos logo toda a verdade, nossa morte pode se tornar suspeita, isso pode fazer com que Nero repense nosso homicídio e apenas nos desacredite publicamente, coisa que nós já conseguimos por nós mesmos após anos falando verdades inconvenientes. Falar a verdade em público e tentar fugir é a saída. Ao menos teríamos uma chance. Guardar esse segredo é andar com um alvo pintado na testa por queima de arquivo.

Calar é flertar com o desastre. Enfrentar o problema de frente e contar uma verdade que temos como provar me parece a medida mais adequada para proteger nossas vidas, e, bem, se isso não for possível, ao menos não teremos um povo inteiro enganado. Se a morte virá, que seja ao menos por uma causa nobre e não como queima de arquivo. Honestamente, não sabemos o que fazer e decidimos consultá-los. O que o grupo determinar será feito.

Para falar coisas que eu não compreendo, pois sou Saella e vivo no ano 64, não tenho ideia do que se passará nos próximos séculos, para opinar sem se posicionar em um SIM ou NÃO, inutilizando sua opinião ou ainda para dizer que esta história toda não lhe é estranha: Saella Somirius, casa 4, ao lado da amoreira.

SOMIRIUS

Caros companheiros… estamos todos juntos. Atores, costureiras, artesãos, escravos… todos que fazemos dessa companhia uma família. Porque nós somos uma família. Nós nos divertimos juntos, nós choramos juntos… nos amamos e odiamos todos os dias como uma grande família. Lembra daquela vez que o Dejarius confundiu a sala de orgia com o vomitório? Hahaha! Precisamos de três de nós para tirar aquele nobre de cima dele. Histórias divertidas à parte, só quero lembrar que na hora da dificuldade nós nos protegemos. Como uma família.

E está na hora de fazermos isso novamente. Alguém vomitou onde não devia. A peça que Saella e eu escrevemos era nossa passagem para a riqueza, mas o maldito incêndio subverteu nossa comédia em forma de acusação contra todos os seguidores do maluco da Judéia desvairada. A história que tanto nos fez rir nesses últimos meses de ensaio agora é arma nas mãos do imperador. E espero que todos aqui entendam as repercussões de tirar uma arma das mãos do imperador. Principalmente se ele for Nero.

Que culpa temos nós das ações dos poderosos? Assim como nossos escravos, nós também precisamos saber quando não temos outra opção além de ceder. Seríamos nós perseguindo os cristãos? Bom, eventualmente sim… mas não por detestarmos cristãos, e sim porque judeu é judeu seja lá o nome que se dê. Não nos coloquemos na difícil posição de querer reescrever a história, pois esse poder não nos pertence. Saella argumentou sobre as repercussões dessa pequena peça de teatro passada como verdade, mas Saella é mulher e enxerga perigos onde eles não existem.

Oras, companheiros! Imaginem só se a história sobre um demente que se diz filho do deus dos judeus vai durar mais que alguns meses! Nero vai conseguir o que queria desviando a culpa de si e antes mesmo de escrevermos nova peça a história já será vista como o que realmente é: uma divertida sátira sobre profetas judeus. O povo romano tem memória curta e como bem sabemos não costuma entender muita coisa sobre as histórias que ouve mesmo.

Alguns cristãos morrerão por causa do nosso silêncio? Sim. Mas qual a consequência histórica disso? Nenhuma. Um escravo a mais, um escravo a menos… e daí? Até os escravos concordam, certo? Vejam! Até os escravos concordam. Mandamos buscar mais entre os povos bárbaros. Temos que entender aqui o que manter o silêncio pode nos oferecer. Essa é a consequência com a qual temos de nos importar. Vamos ganhar menos do que ganharíamos colocando a peça em produção? Sim. Mas vamos ganhar alguma coisa. Júpiter sabe o quanto precisamos desse ouro!

E qual a outra alternativa? Execução em praça pública. Nobre a preocupação de Saella com nossa honra, mas honra não nos alimenta, honra não nos dá descendentes, honra não nos protege dos bárbaros! Sabemos que não começamos o incêndio, sabemos que não escrevemos a peça para eliminar os cristãos. Nós sabemos que nossas intenções eram puras e só queríamos um modo de vida honesto através da arte. Nós só queríamos fazer nossos irmãos romanos sorrirem.

E enquanto nossa família souber disso, dormiremos em paz. Melhor, dormiremos e acordaremos na manhã seguinte. Nossas vidas estão todas aqui em Roma, Nero poderia nos destruir mais rápido do que nossos cavalos nos levariam para fora do Império. Nero ainda foi generoso oferecendo recompensa financeira, lembrem-se que ele poderia ter simplesmente decidido nos matar.

A verdade é muito mais danosa para todos nós do que a mentira. Dizer que nossa peça era um registro histórico vai criar problemas bem menores do que admitir que aquilo tudo não passa de romantização cômica. E para vocês achando que seria jogar fora nossa galinha dos ovos de ouro, pensem melhor… Nero… Nero não me parece o tipo que dura muito tempo no cargo. Talvez o próximo queria sujar sua reputação e desfazer o mal entendido. Talvez consigamos nossa peça novamente, aí sim com uma publicidade impagável.

Imaginem! A comédia tão engraçada que matou milhares de cristãos! Vocês não conseguem imaginar o cartaz? Estamos apenas adiando nossa estreia. É claro que algo tão humorístico como o profeta judeu não tem chances de virar versão oficial dos acontecimentos. Ainda vão reconhecer nossa história como o que ela realmente é, e aí sim ficaremos ricos além da imaginação. Seus escravos terão escravos! Nada mais de orgias com homens e mulheres infestados, todo o vinho e todos os banquetes que vocês quiserem.

O ouro que Nero nos oferece permite que continuemos juntos até essa hora chegar. E agora sabemos que tipo de peça devemos escrever para fazer sucesso. Ouvimos histórias hilárias sobre as crenças do judeus. Tem uma sobre um barco gigante que eu tenho certeza que vai fazer qualquer um passar mal de rir. Saella e eu escrevemos uma cena sobre um casal de leões e um de coelhos que se encontram no barco… posso dizer sem medo que é uma das melhores que já fizemos. Nós podemos fazer mais peças, ainda melhores.

Nossa peça vai ser usada para limpar a barra de Nero, não tem muito o que fazer. A não ser que vocês considerem ser executado na frente da família como fazer alguma coisa. Vamos pegar esse dinheiro o quanto antes e deixar a mentirinha de Nero seguir seu curso natural. O que pode acontecer de tão ruim?

Para dizer que se seus escravos pudessem ler concordariam comigo, para falar que Roma não foi construída num dia e não precisamos ter pressa, ou mesmo para dividir mais histórias sobre o vomitório: Somirius Silvus, última casa da rua do prostíbulo (ei, construíram depois que eu me mudei).


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