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Sede de justiça.

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| Somir | | 25 comentários em Sede de justiça.

Com o caso do traficante brasileiro executado na Indonésia, a pena de morte voltou com força total ao centro da atenção do brasileiro médio. E como todo brasileiro médio é a favor da pena capital, a execução foi até comemorada em terras tupiniquins: “Bandido bom é bandido morto, tem que matar mesmo, queria que aqui fosse assim!”. Por que a pena de morte parece tão boa para essa gente toda?

Se você acompanha o desfavor a tempo suficiente, já deve saber que tanto eu como Sally somos totalmente contra o Estado executar cidadãos, seja lá quais forem seus crimes. É uma longa discussão, mas para exemplificar alguns pontos que sustentam essa visão: pena de morte não diminui a criminalidade de verdade e o Estado não é infalível para aplicar penas sem volta.

Mas estou sendo anêmico nessa parte de propósito. O ponto de hoje não é falar do lado contrário à pena de morte, e sim tentar entender o que a defende. Entender o lado com o qual se discute tende a ser muito útil numa possível negociação. Normalmente se começa com os pontos comuns: quem é a favor e contra concorda que devemos diminuir os índices de criminalidade e viver numa sociedade mais segura. Até porque é difícil encontrar alguém que não deseje isso.

A forma de se alcançar esse objetivo que difere. E é aqui que eu vou propor outra forma de encarar o assunto: para quem defende a pena de morte, o número de infratores das nossas leis é finito: considerando que os bandidos são um grupo definido de pessoas que infesta uma sociedade essencialmente boa. Elimine os bandidos, elimine os problemas.

Vamos tentar entrar nesse estado de espírito então:

Não é de se estranhar que TANTA gente pense assim. É até reconfortante imaginar que exista uma cura ao alcance. É só sair matando quem é bandido até finalmente matarmos todos. Forma-se um objetivo claro e alcançável, além, é claro, de uma recompensa no final do processo. Temos todos os elementos aqui de um plano eficiente contra um dos maiores problemas que assola a humanidade!

E o melhor, é até fácil colocá-lo em funcionamento. Se cidadão for culpado por cometer um crime dos quais a pena é a morte, mata-se o cidadão. Desculpe, cidadão não, bandido! Porque pelo jeito bandido é pertencente a uma outra espécie que não a “nossa”. Depois de matar o bandido, ele nunca mais vai causar problemas para ninguém. Bom, talvez ele irrite algum médium, mas podemos viver com isso, não?

Oras, estamos esperando o quê? Vamos matar bandidos e começar a reduzir a criminalidade agora mesmo! Uma hora acaba! Os bandidos morrem e o crime acaba. É até estranho como algo tão simples de fazer não é feito na maior parte do mundo. Será que as pessoas gostam de criminosos?

Bom, não. Historicamente, não, não gostamos de criminosos. A pena de morte é muito antiga. Talvez seja a pena mais antiga de todas. Todas as sociedades (vivas ou mortas) das quais se tem registro a aplicaram em dado momento. Na verdade esse plano de matar todos os bandidos até não sobrar mais nenhum não é lá muito original. Já tentaram, já tentaram bastante. O problema dessas tentativas é que… os bandidos não acabaram.

Onde caía um, nascia outro. E tudo o que eles faziam de ruim continuava acontecendo, agora com novos rostos. Na verdade, a criminalidade não diminui quando a pena de morte é aplicada num país, tampouco sobe quando ela é revogada. Será que não se matou o suficiente? Será que existem bandidos demais no mundo para conseguir matar todos? Como é que tantos deles passam pela vida escondidos dos olhos da lei? De onde vem esse bandido que assume o lugar do outro que foi morto?

Ainda estou tentando fazer a pena de morte fazer sentido para eliminar a criminalidade. Como é que a Indonésia ainda é um paraíso do tráfico internacional mesmo matando traficantes? Quem são os malucos que continuam trazendo droga para lá mesmo sabendo que podem ser mortos por isso? Os bandidos não deveriam acabar com o tempo?

Bom, aí entra o lado oposto da ideia que estou desenvolvendo: talvez os bandidos não sejam um recurso finito. Talvez eles nunca acabem. Ficando no exemplo dos traficantes: será que só vira um quem NASCE para ser um? Será que uma suposta pessoa de bem não pode ver uma oportunidade de ganho rápido e assumir o risco? Será que uma suposta pessoa de bem não pode ser coagida por partes mais poderosas a fazer parte de um esquema de tráfico? Será que existe imunidade ao crime?

O razoável é acreditar que não, ninguém é 100% imune a descumprir a lei. Tanto que em situações menores, praticamente todos nós o fazemos. Desde beber e dirigir até mesmo sonegar imposto. Crimes com ou sem vítimas potenciais que cometemos por acreditar que as recompensas valem o risco de sermos pegos. O potencial existe.

Mas é claro que não é assim que pensam os defensores da pena de morte, eles acreditam piamente que só algumas pessoas podem cometer crimes, e mesmo quando o fazem, racionalizam o potencial de gravidade deles: “eu dirijo melhor bêbado”, “o governo rouba”… e tudo mais o que puderem usar para se auto inocentar de qualquer infração.

O crime vira algo alheio, característica definidora de um grupo especial de seres humanos ao qual com certeza não pertence. Um grupo que só nos faria bem se fosse extirpado da face da Terra. Por isso é seguro bater palmas para um país que mata traficantes de drogas. Esse crime a pessoa não comete, então tudo bem.

Mas eu argumentaria – já que estou nesse estado mental punitivo – que o usuário das drogas também não me representa. Muitos deles são perigosos. Drogas destroem vidas (por isso é razoável matar traficante), mas quem gera a demanda por isso? Os usuários! Sem esse grupo de pessoas, o mundo se tornaria um lugar um pouco mais seguro. O tráfico entraria em colapso! Não seria uma boa ideia estender a pena de morte para o usuário? É a mesma ideia de eliminar um grupo danoso para a sociedade.

O quê? Seria demais? Não vejo o porquê. Eu já passei por momentos difíceis na minha vida e nunca usei. Ninguém é obrigado a usar. Comete o crime porque quer. E mesmo que tenha sido obrigado a entrar nessa vida, não muda o fato de estar fazendo algo errado. Se vale para o traficante, tem que valer para o usuário. Ou você está com peninha de bandido?

Sabem do que mais? O que mais causa mortes e violência nesse mundo é o álcool. Sim, a bebida. Acidentes de trânsito, brigas de bar, violência doméstica. O álcool é um veneno para a sociedade. A Sally, por exemplo, não bebe. Ela pode muito bem se considerar pertencente a um grupo melhor do que nós que bebemos e se achar superior. Ela não precisa beber.

Ninguém é obrigado a beber. Eu mesmo conseguiria viver bem sem álcool. Nem gosto tanto. O mundo seria um lugar bem melhor se todo mundo que bebesse desaparecesse. As ruas seriam mais seguras, as casas seriam mais seguras. Não queremos um mundo mais seguro? E nada dessa coisa de ficar passando a mão na cabeça de safado: desintoxicação é o caralho, tratamento bom mesmo é bala na cabeça. Vendeu ou consumiu bebida alcoólica? Mata! Mata e limpa o mundo.

Sim, eu sei que álcool não é proibido, mas pena de morte é proibida e queremos do mesmo jeito. Não deixemos que nada nos impeça. Mude as leis, ou mesmo resolva tudo fora dela: o povão não vai ao delírio quando a ROTA ou o BOPE passa bandido (sendo ou não) na favela? Viu bandido bebendo na rua, senta o dedo!

E não me olhem assim, eu só quero um mundo melhor. Às vezes precisamos quebrar alguns ovos para fazer uma omelete. O quê? Você acha que as pessoas não vão parar de beber se for proibido? Está citando a proibição norte-americana no começo do século passado? Pfft! Grandes coisas, eles não fizeram direito. Tinha que sair matando e não multando. Se matar quem bebe, as pessoas vão parar de beber. E se as pessoas pararem de beber, a criminalidade diminuiu. Até porque… já viu bandido que não bebe?

Ok, ok. Exagerei. Matar pessoas por beber é colocar quase que a humanidade toda debaixo da mira de uma arma. As pessoas sabem que tendem a fazer muito mais merda quando bebem, mas gostam demais disso para parar. Tudo bem que seria enfrentar uma das maiores causas de crimes que temos no mundo, mas não dá para ser tão duro com as pessoas.

Estamos falando de bandidos, e nós não somos bandidos. Não, bandidos são os outros. Bandidos matam e assaltam por aí. E diferentemente de nós quando enchemos os cornos e pegamos um carro, eles tiveram escolha. Escolheram ser bandidos. Esses sim podem morrer. Mas… caímos de novo naquele problema de não diminuir a criminalidade. Cidadão arrisca a vida contra facções criminosas e a polícia todo o dia, morte não é exatamente algo que ele tema. O brasileiro que levou drogas para a Indonésia sabia que isso podia acontecer e fez do mesmo jeito.

Mas, se não formos até as últimas consequências matando quem infringe a lei, como tornar os bandidos finitos de verdade? O cara que trafica hoje pode matar amanhã. O que usa hoje pode vender depois. O que bebe hoje pode usar amanhã. Bandidos evoluem, arriscando cada vez mais. Se não sair matando GERAL, os bandidos são… infinitos?

Porque se adiantasse não ir na raiz do problema, se adiantasse alguma coisa punir só alguns crimes com a pena capital, esses crimes seriam muito menos cometidos nos países que a aplicam. Então como eles continuam acontecendo? Como pode aquele homem levar drogas para a porcaria da Indonésia? Ele queria morrer?

Só se ele achava que não ia ser pego. Como de fato não foi em outras ocasiões. Ele acelerou quando achou que não tinha nenhum radar na rua… eu faço isso às vezes. Mas claro, excesso de velocidade não é tão perigoso para a sociedade como vender drogas. Sim, o trânsito mata mais que as drogas, mas… bom, deixa pra lá. Excesso de velocidade não é crime passível de pena de morte na cabeça de ninguém. Ainda.

E é claro que é diferente. Eu não sou bandido. Ninguém vai vir atrás de mim e ninguém vai me confundir com um. Ainda bem que eu não sou mais… escurinho… e não moro numa favela. Com pena de morte valendo é ainda mais valioso ser bem visto pela polícia e pela justiça. Espero que não matem muita gente inocente. O pessoal da polícia não sai atirando antes de perguntar, não é mesmo?

E, porra, eu não sou bandido! Tem gente que apronta muito mais do que eu nessa vida, essa gente que eu quero ver morrendo. Eu só quero ver alguém sofrendo por não cumprir as leis que eu não descumpro. Eu nunca vou fazer algo que me faça sofrer a pena de morte. Eu nasci diferente dos bandidos. Eu sou uma pessoa de bem.

E sabem do que mais? Foda-se que não diminui a criminalidade, eu quero que alguém faça alguma coisa com os bandidos só para valer a pena essa vida de merda que eu tenho. Eu quero uma prova que sou melhor do que eles, eu quero apontar o dedo para quem é diferente e vê-los pagar o preço por não ser…

Por não ser… eu. Eu não sou bandido. E isso é tudo o que eu consigo ser. Não deveria ter um prêmio para mim?

Para dizer que se perdeu completamente do lado que eu queria defender, para dizer que concorda com a segunda parte, ou mesmo para dizer que você não é bandido: somir@desfavor.com


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