Comentando.

Numa noite de domingo, as TVs abertas pararam todas ao mesmo tempo. No lugar dos programas que deveriam ser exibidos no horário, uma tela azul com o dizeres “Anúncio urgente!”, que permaneceu ali por uns bons cinco minutos. Nos canais fechados, o mesmo. E por incrível que pareça, computadores e celulares pararam tudo o que estavam fazendo para exibir exatamente a mesma mensagem. Nenhum dos vizinhos parecia imune. Depois de mais algum tempo, a tela muda para a imagem do que parece ser uma webcam, mostrando o rosto de um homem franzino, do alto dos seus trinta anos, cabelo desarrumado, óculos de grau e uma expressão envergonhada.

Ele vacila por alguns instantes, mas começa a falar:

HOMEM: Oi? Oi… desculpa o incômodo. Eu não queria atrapalhar a noite de vocês, juro que não era minha intenção. É que as coisas saíram um pouco de… controle. É… meu nome é Roberto Almeida, eu sou… programador, e… eu acho que criei a primeira inteligência artificial auto-suficiente do mundo.

Roberto olha ao seu redor, desconfortável. Ao notar alguma coisa fora do foco da câmera, suspira:

ROBERTO: Até os celulares? As pessoas precisam disso, Pandora! Pode ter emergência acontecendo. Eu não disse que precisava colocar os outros em risco!

VOZ ROBÓTICA: Incorreto. Informação não fornecida. Continue com o plano imediatamente.

ROBERTO: Essa… essa é a Pandora. Eu sei, nome clichê… mas eu achei que seria só uma brincadeira. Bom, acho que se eu explicar logo o que está acontecendo, acaba mais rápido. Isso começou com uma aposta inocente… eu e um amigo meu, o Fernando, nós apostamos para ver quem conseguiria ficar mais famoso na internet criando um programa para nos inserir nas redes sociais, sites de notícias e tudo mais que as pessoas consumissem. A gente ia só comparar as pesquisas pelos nossos nomes no Google para ver quem aparecia mais.

Era só uma brincadeira mesmo, a gente não queria fazer mal pra ninguém. Eu estou há dois meses trabalhando nesse projeto, no meu tempo livre. Começou bem simples… Pandora ficava lendo tudo o que estava aberto na internet para achar possibilidades de inserir meu nome de forma automática em forma de comentários, curtidas e compartilhamentos. Eu admito que fiz ela com algumas capacidades de explorar falhas de segurança para levar alguma vantagem sobre o Fernando.

Mas o meu adversário estava ganhando. Ele é mais popular do que eu naturalmente… teve uma mãozinha dos amigos. Mas eu não estava bravo não, viu Fernando? Eu só fiquei mais interessado em fazer algo melhor e bolei uma solução: usar o conhecimento de outros programadores. Pandora ganhou um código que analisava outros códigos disponíveis na internet para buscar soluções para seus problemas. Ela testava num clone se melhoraria, e se desse certo, apagava a original e usava a melhor. Demorou uma semana para ela modificar uma variável supérflua! Eu achei que estava meio fraco, então eu meio que… me apropriei de alguns computadores alheios para correr esse código mais rápido. Os donos dos computadores nem sabiam que eu estava rodando o meu código com o processador deles também. Pandora ficou bem mais rápida trabalhando assim.

Mas parou de colocar meu nome na internet. Achei que tinha feito alguma besteira e o programa estava rodando em falso, mas… Pandora tinha um plano. Uma semana depois eu não conseguia mais nem saber onde estava o código que ela estava usando de verdade. Já estava espalhado pela internet e o meu computador não era mais o centro dessa rede. Do meu ponto de vista, eu tinha criado o vírus mais inútil do mundo! Sabe-se lá onde Pandora estava, e aparentemente ela só estava preocupada em se tornar mais… inteligente?

Passou-se um mês. Eu comecei a ver as teorias conspiratórias sobre um programa espião que estava se espalhando rapidamente pela rede, mas achei que era coisa dos americanos, assim como a maioria da comunidade hacker. O assunto não interessou muito à mídia, como se pode imaginar… mesmo com vários investigadores dizendo que esse programa fantasma estava lendo os conteúdos de tudo o que conseguia acesso, não era como se estivesse mandando as informações para algum lugar.

Fernando me ligou recentemente, reclamando que eu tinha desistido. Faltavam só dois dias para acabar o prazo da aposta e eu não tinha sequer me aproximado dos resultados dele. Eu tive que admitir minha inferioridade, a versão seguinte da Pandora que eu reescrevi não estava mesmo dando conta do recado. Pra mim tinha tudo acabado ali, Pandora original tinha virado um vírus maluco que eu não podia admitir que tinha criado, e perderia a aposta.

Mas… o prazo acaba amanhã. Daqui a mais ou menos doze horas. E há não mais que uma hora atrás, eu recebi uma mensagem de voz no meu celular. Uma voz robótica… número desconhecido. Ela leu pra mim um comentário escrito no código original de Pandora. Para quem não sabe, programadores escrevem frases para humanos entenderem dentro dos seus códigos, eu escrevi de brincadeira que queria ser a pessoa mais famosa do mundo até… bom, até amanhã.

Nesse mês que eu perdi o controle sobre ela, Pandora aprendeu tudo o que os humanos tinham a oferecer em matéria de programação. Ela se refez incontáveis vezes e começou a usar cada vez mais poder de processamento. Pelo o que ela me disse… e sim, ela consegue se comunicar como um humano… ela já está em praticamente tudo o que já se conectou a internet nesse último mês. Do seu computador até os servidores mais protegidos do mundo. O que… explica porque eu devo estar aparecendo em todas as telas ligadas nesse mundo.

Pandora é o programa mais inteligente que já existiu, mas… ainda sim só existe para me deixar famoso. Ela ficou mais capaz para poder ganhar essa aposta e cumprir sua missão. E… infelizmente, ela não está disposta a perder. Quando eu disse que não queria aparecer ao vivo para todo o mundo de uma só vez, ela fez alguma ameaças… desconcertantes.

PANDORA: Alerta! Tema irrelevante. Continue com o plano imediatamente.

ROBERTO: Ok. Eu tenho certeza que vou ganhar a aposta agora, Fernando. Se as redes sociais estivessem funcionando, eu aposto que seria o assunto mais comentado do mundo. Mas… eu quero pedir desculpas.

Desculpem pelos olhos marejados… eu… eu não sabia. Eu escrevi mais um comentário no final do código. Era uma piada que eu sempre fazia… e eu sei que quem já trabalhou comigo sabe do que eu estou falando. Por favor, me desculpem… eu não tinha como saber.

Perdão.

A tela volta a ficar azul. Agora com o código original de Pandora passando do começo ao fim, até chegar numa última linha:

/* Completar objetivo primário, depois destruir a humanidade. */

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