Uncanny Valley

É provável que você tenha escutado a expressão em algum momento da sua vida. Uncanny Valley traduz para o português como Vale da Estranheza, e significa o estranhamento que a imagem de uma figura quase humana causa na maioria das pessoas. Mas, que estranhamento é esse, e… por que é um vale?

Neste caso, uma foto vale mesmo por mil palavras. Observe as três imagens a seguir:

Mesmo se você nunca ouviu falar de Uncanny Valley até hoje, instintivamente já entendeu o que está acontecendo. Criei um padrão de três figuras femininas sem cabelo. Na primeira foto da esquerda para a direita, um robô extremamente estilizado. Uma bola de plástico com dois olhos e uma boca, pode-se argumentar que está mais para infantil do que feminino, mas o importante aqui é que obviamente não é um ser humano, mas mesmo o coração mais gelado aqui no desfavor não consegue negar que é uma figura simpática. A terceira foto é a de uma atriz famosa, com a qual você pode simpatizar ou não pessoalmente, mas registra com tranquilidade no nosso cérebro, mesmo com o estilo de cabelo incomum. Muita gente até vai achar ela bem bonita nessa foto.

Agora, a foto do meio… tem algo de errado ali. Claramente não é um ser humano, mas em tese tem quase todas as características necessárias para receber o título. Numa escala de similaridade com um ser humano, tem milhões de pontos a mais que a primeira foto, mas eu garanto que você se sentiu muito mais confortável com o robô claramente robô do que por esse androide semi-realista. Pode parecer óbvio que é assim que as coisas funcionam pela velocidade na qual o seu cérebro categorizou as imagens, mas se pensarmos apenas no que deveria gerar um senso de conforto e empatia no cérebro humano, a foto do meio deveria ser menos bizarra que a primeira.

Oras, somos programados de fábrica com diversos mecanismos para reconhecer outros seres humanos e depositar neles nossa confiança e afeto. Em tese, até um ser humano que você acha repulsivo deveria ter mais efeito sobre você do que qualquer outra forma da natureza. A curva de carisma de qualquer figura deveria começar no menos humano e ir subindo até chegarmos numa imagem perfeitamente humana. É genética, é química, é biologia, é o que deveria acontecer. Mas… não acontece.

O grau de simpatia que vemos em outros seres de acordo com sua humanidade começa neutra (ao ver algo como uma pedra), tem um salto impressionante quanto mais humana a forma se parece, e de repente, desaba. Para só depois voltar a ficar agradável quando a figura se parecer muito com um ser humano. Essa faixa onde a estranheza toma conta forma um vale entre as duas montanhas.

Sabemos que essa sensação existe, mas… por que existe? Bom, como quase todo o conhecimento baseado em reações humanas a alguma coisa, é complicado. Uma pesquisa vai te dar várias ideias do que pode causar isso, mas eu vou ser humildemente arrogante e filtrar pelo o que eu acho mais válido nesse caso. Humilde porque não quero desperdiçar seu tempo, arrogante por decidir por você qual a melhor explicação. Viu como quase tudo o que envolve humanos vira uma bagunça de estudar? Mas, voltando ao tema:

Vamos começar pelas imagens que claramente não são humanas, mas ganham características humanas. Se você pegar uma pedra do chão, uma daquelas brancas e arredondadas, pode até achar uma pedra bonita, mas seu cérebro está registrando só isso mesmo. Se você pega uma caneta e desenhar dois pontos e uma curva formando uma cara sorridente, algo fantástico acontece na sua mente: a pedra ganha vida. Não que você seja demente de achar que a pedra vai conversar com você ou que vá sentir dor se for jogada, mas vira uma chave no cérebro e de repente você consegue projetar uma consciência ali. Você pode não fazer mais nada nesse sentido com a pedra a parti dali, mas o cérebro gostou da brincadeira. Ele vai te entreter na medida que você quiser a partir dali.

Uma criança pode começar a brincar com essa pedra, criando aventuras para ela. Um adulto pode resolver falar pela pedra para tirar sarro de outra pessoa próxima, alguém pode decidir desenhar óculos nela, ou mesmo colocar um batom vermelho e dizer que a pedra é mulher… parece a coisa mais banal do mundo, mas é um portal para uma das características mais espetaculares da mente humana: nós conseguimos projetar outros seres humanos fora da nossa mente para interagir com eles. De certa forma, é o mesmo mecanismo com outras pessoas de carne e osso. Quando você tenta prever o que alguém vai fazer ou como vai reagir (o que fazemos o dia todo), tem que “recriar” essa pessoa dentro da sua mente e pensar por ela, nem que seja por uma fração de segundo.

Por mais que você ache que eu estou explicando algo complexo aqui, é um dos elementos mais naturais da nossa existência. Na prática, isso é a empatia. Você nunca vai estar no lugar de outra pessoa, mas pode imaginar como isso seria e agir de acordo. Somos programados para gerar conexões, e conexões com outros seres humanos dependem demais de empatia. Por isso, o cérebro sempre vai dar um jeito de deixar você brincar de empatia com qualquer objeto inanimado. Reconhecemos rostos humanos com qualquer rabisco ou formação que sugira dois olhos e uma boca. A vontade de interagir com outros seres humanos é natural e recebe um impulso considerável sobre quase qualquer outra coisa (não essencial) que o cérebro faz.

Você pode estar perguntando sobre animais agora, e embora o processo que gere conexão entre humanos e outros animais irracionais como o cachorro, o gato ou mesmo pássaros e lagartos beba da mesma fonte, não é só o ser humano que está agindo, tem outro ser vivo desenvolvendo a relação (para o bem ou para o mal). Cachorros são espetacularmente adaptados para gerar conexão com humanos, por exemplo. Mas estou saindo pela tangente: é outro assunto. Se quiser saber mais, tem um texto da Sally sobre os cachorros e seu trabalho árduo para nos conquistar.

Voltando ao que depende exclusivamente da nossa mente: a pedra é um exemplo extremo, mas quando avançamos rumo à características mais similares com o ser humano, temos um enorme salto no quanto nos afeiçoamos a elas. Aqui começam os desenhos, bonecos, fantasias e tudo mais que bebe da mesma fonte do que nos interessa em outros seres humanos, mas em momento algum tentam enganar nosso cérebro que estamos vendo outra pessoa. E aqui, muito do que consideramos agradável e atraente em outras pessoas já começa a valer. A pedra com os rabiscos não tem nada além do que colocamos nela, mas imagine uma personagem como o Wall-E do filme homônimo da Pixar, ou mesmo o E.T. do filme igualmente homônimo.

Nenhum deles lembra um ser humano em linhas gerais. O E.T. inclusive é muito feio. Mas ambos seguem a mesma lógica de ter uma cabeça bem definida, uma forma de expressar emoções (mesmo que rudimentares), grandes olhos que costumam simbolizar honestidade e inocência (crianças tem essa característica), e digo até que a boca pequena ou mesmo inexistente conversa com nossa percepção moderna de preferir pessoas que escutam mais do que falam até mesmo a mais primal de que animais com bocas pequenas geram um risco menor para os macacos pelados de cá.

É nessa faixa onde bons designs conseguem nos fazer ter sentimentos honestos por criaturas que de forma nenhuma deveriam ativar nosso senso de empatia. Em tese, ser humano nenhum deveria chorar pela tristeza do Simba ao perder o pai em Rei Leão (opa, spoilers), mas na prática muito marmanjo já perdeu a linha nessa cena. Se o número certo de características humanas estiver presente e o cérebro não tiver que lidar com o problema de definir se aquela figura é humana de verdade, cria-se um ponto fraco muito explorável.

Se você quer lembrar deste texto como uma viagem nerd para lugares bonitos da mente humana, pula este parágrafo e vai direto para o próximo. Ainda está aqui? Bom, temos que falar sobre atração sexual também. O ser humano desenha e esculpe baixaria desde… sempre. Se você vive uma vida feliz ignorante desse fato, desculpa: a quantidade de pornografia baseada em desenhos existe nos dias atuais rivaliza com a baseada em pessoas reais. Quer algo pior? Deve ultrapassar logo logo. Homens parecem mais suscetíveis a se sentirem sexualmente estimulados com o mero desenho de uma mulher (ou homem, ou um mix dos dois, ou um cachorro com características sexuais humanas, ou um cavalo que parece uma criança… eu disse que era pra pular este parágrafo, não disse?), e isso acontece justamente na grande montanha antes do Uncanny Valley. Esse ponto fraco rende muito dinheiro atualmente, e ainda vai render muito mais nos próximos anos. Se qualquer imagem tiver as características básicas de atração sexual, ela tem potencial real de gerar atração sexual, mesmo que não se pareça com um humano. Digo mais: hoje em dia os programas de edição 3D estão muito mais popularizados, mas pornografia baseada em modelos realistas de humanos não é nem uma fração da baseada em modelos estilizados ou mesmo rabiscos coloridos numa tela. Parecem demais com humanos, sem parecer ainda. Essa pornografia tende a cair inteira dentro do Uncanny Valley atualmente, mas está ficando progressivamente mais realista e atraindo mais e mais pessoas. Se ela escapar do Uncanny Valley, eu honestamente temo por uma queda irrecuperável na fertilidade humana.

Mas vamos logo para o Uncanny Valley. Quando a queda na atratividade das imagens acontece, ela é violenta. Num estalar de dedos, o que era agradável torna-se bizarro. Algumas teorias sugerem que o ser humano reconhece seu substituto artificial e começa a temer, mas eu realmente acho esse pensamento muito avançado para o cidadão médio. A lógica me parece a seguinte: no momento que entramos nesse vale, o cérebro é obrigado a voltar para a realidade. Já está próximo o suficiente do que confortavelmente reconhecemos como humano para virar a chave de novo. O que era uma personagem agradável com elementos de humanidade vira um humano… “quebrado”.

Aqui temos dois exemplos: no primeiro, uma personagem do filme “O Expresso Polar”, feito para ser uma animação 3D realista em 2004. Apesar do trabalho do cão que deve ter dado para fazer o filme, não dava ainda para entregar o resultado esperado com a tecnologia disponível. O resultado é uma menina que tem tudo para ser extremamente simpática com um rosto inexplicavelmente demoníaco. No outro, um artista resolveu redesenhar personagens dos Simpsons com texturas realistas de pele, cabelos e cores mais humanas. Obviamente a intenção era deixar assustador, porque tem algo nos chamando de volta para a visão de um ser humano normal, mas com as proporções de um desenho muito estilizado. O cérebro não gosta. O cérebro enxerga um ser humano defeituoso, doente e possivelmente pouco confiável. Por melhor pessoa que você seja, há um reflexo primal contra o diferente.

A curva é tão severa entre gostarmos muito e ficarmos estranhados porque é o momento que o cérebro puxa o freio de mão e nos manda para outra direção completamente oposta. Agora nossos interesses, experiências, preconceitos e até mesmo nossa atração sexual são ligados num estalo só (sim, eu estou igorando aquele parágrafo… shhhh!). O padrão de julgamento é outro. Agora estamos vendo algo que não nos engana de verdade como realmente humano, mas confunde o resto do seu sistema natural de empatia. Nossa visão de sociedade tem muita relação com os padrões que esperamos de outros humanos, e a aparência conta demais nisso.

Sob o risco de abrir uma caixa de Pandora no final do texto e não dar atenção suficiente: um processo muito parecido parece ser ativado quando vemos transsexuais que não se parecem o suficiente com o sexo no qual querem se transformar. Temos uma ideia definida do que esperar do visual dos outros, e qualquer quebra disso acende no mínimo um sinal amarelo na mente. Nos torna mais atentos aos detalhes e aumenta o nível de tensão. Estou trazendo a comparação porque continuo sendo um ferrenho defensor da ideia de que basicamente todo o processo de compreensão da realidade de um ser humano é resultado do reconhecimento e previsão de padrões. Se você vê algo muitas vezes, consegue perceber quando algo está errado. Não tem nada de oficialmente errado num desenho animado de uma pessoa, não é um padrão que seu cérebro espera naturalmente. Mas se estiver muito parecido com um ser humano numa animação 3D, aquela imagem vai ter que pagar um preço muito mais caro para validar os padrões de humanidade que você desenvolveu na sua mente desde que nasceu.

Mas, quando algo que você acha que deveria conhecer aparece diferente… caímos fundo nesse vale. Se tem uma coisa que todo mundo (que não nasceu cego) é muito bom, é em reconhecer como um ser humano deve ser parecer. Não podemos ser enganados, no máximo brincar com algo que sabemos não ser humano. É… infelizmente vou ter que achar uma namorada humana mesmo, porque a robótica e a ficção não vão resolver o problema tão cedo.

Bônus: sua vida não está completa sem esse vídeo.

Para dizer que vai ter pesadelos com o vídeo final, para dizer que ignorou o parágrafo e vai viver feliz, ou mesmo para dizer que depois de ler o parágrafo todo o texto pareceu sujo: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • “É provável que você tenha escutado a expressão em algum momento da sua vida.”

    Não, nunca. Também não percebo essa ‘estranheza’ ao ver figuras quase humanas.
    Mais um assunto que aprendo aqui no Desfavor.

  • O que foi escrito no parágrafo sobre a questão sexual me lembrou a regra 34 da internet, em que dá pra fazer pornografia com qualquer coisa. Um exemplo bizarro que vi foi o desenho de um Boeing (!!!) com características de uma mulher gostosa de biquíni, com direito a peitão e bundão…

  • Não imaginava que isso existia! Desde criança eu tenho uma sensação péssima quando olho para macacos. A única forma que consegui tentar explicar essa sensação de estranhamento para uma pessoa foi “eles são o mais parecido que existe com um ser humano, mas sem ser um humano – como se fossem uma fraude ou tentativa de enganamento”.

    Mais recentemente tenho sentido algo parecido com cangurus, depois de vê-los brigando com pessoas ou outros animais – a posição de pé, a forma de socar, a agressividade – é humano demais para não se incomodar!

  • “Se ela escapar do Uncanny Valley, eu honestamente temo por uma queda irrecuperável na fertilidade humana.” você quis dizer na fertilidade ocidental, porque os Muhammed e os africanos vão continuar povoando o planeta em nome de Allah. Posso estar errado, mas as sociedades islâmicas parecem impermeáveis a esse tipo de degeneração. Os caras fodem umas cabras de vez em quando, mas não deixam de casar e procriar com uma mulher (ou várias) depois. E costumam matar quem se desvia desse caminho.

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