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Privada pública.

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| Somir | | 18 comentários em Privada pública.

Ontem, dia 18, uma ação foi protocolada contra a XP Investimentos e um de seus escritórios credenciados. Motivo? Uma foto da equipe que mostrava maioria absoluta de homens brancos. Várias ONGs do movimento negro, feminista e direitos humanos acharam que faltava diversidade no quadro de funcionários. Pedem indenização de 10 milhões de reais e a criação imediata de um programa de diversidade. Em tese é impossível ganharem, mas é uma tática que vai ficar cada vez mais comum…

Antes de ficar puto, eu não posso ignorar que é uma estratégia inteligente. Embora a legislação brasileira só tenha prevista cotas para pessoas com deficiência (a partir de um certo tamanho de empresa) e não tenha como realmente obrigar uma empresa a contratar pessoas por cor de pele ou gênero, a repercussão negativa de uma ação dessas sempre força a mão de grandes empresas. Logo logo a XP vai aparecer com um programa de diversidade para limpar a imagem. Quase nenhum executivo é burro de peitar opinião pública, é muito mais fácil “jogar uma esmola” para acalmar quem está reclamando.

Então, sim, eu entendo que essas entidades processando a XP estão jogando o jogo da forma mais eficiente que sabem fazer. Querem mais representatividade, afinal, é o objetivo de existência delas, e se entrar com ações malucas do ponto de vista legal gera o resultado desejado por vias transversas, faz sentido que usem. E, considerando como no Brasil cada juiz é um universo paralelo de onde tudo pode sair, talvez arranquem uma indenização que force o caso a subir de instância até alguém finalmente barrar a maluquice. Ou, se o juiz ou juíza for meio bolsonarista, é capaz de escrever algum absurdo na sentença que os ajuda a se vitimizar de novo e ganhar mais atenção midiática.

Não tem muito o que errar nessa tática. Uma empresa grande vai ceder eventualmente. E seja lá o que der da ação, podem usar para ganhar mais visibilidade, o que por sua vez aumenta a pressão sobre as empresas, num ciclo vantajoso para essas entidades. E com o tempo, mais e mais gente vai perceber essa estratégia. Eu realmente acredito que é um processo sem volta, são notícias que vão começar a se repetir e forçar quase todas as grandes empresas a focar numa combinação segura de cores de pele e genitálias para não serem incomodadas com isso.

Podemos ser maquiavélicos e dizer que os fins justificam os meios: processos bizarros e pressão injusta com empresas (entidades privadas), mas se no final das contas ajudar a vencer a desigualdade brasileira, vai valer a pena, não? Bom, é aí que eu discordo. Se dizer que os fins justificam os meios é questionável, dizer que os fins são influenciados pelos meios é muito menos. A forma como você faz uma coisa impacta diretamente no resultado final.

Exemplo: conquistar a paz através de negociação é uma coisa, conquistar a paz através da violência e do medo é outra completamente diferente. Embora as coisas sejam parecidas num nível superficial com o fim de uma guerra, o jeito como essas duas pazes foram construídas difere tanto que elas não podem ser consideradas a mesma coisa. Na versão da negociação, o meio para chegar na paz foi pacífico, o fim foi reforçado pelo meio. Na versão da opressão para chegar na paz, há uma contradição fundamental, o fim não combina com o meio. A Segunda Guerra Mundial acabou na violência, e logo em seguida tivemos a Guerra Fria. A Guerra Fria acabou num misto de acordo e “cansaço”, e o mundo sossegou imensamente depois. A paz da guerra espera a próxima guerra. A paz do acordo depende da vontade de manter o acordo.

Tenha a opinião que tiver sobre a ideia de que “fins justificam os meios”, mas é muito importante que você entenda que os “meios definem os fins”. E é por esse ângulo que eu enxergo problemas sérios nessa tática de judicializar representatividade e bater em empresas privadas para forçar a redução do número de homens brancos heterossexuais em seus quadros. Esses meios presumem duas coisas perigosas: que o setor privado tem obrigações públicas e que existem combinações de características inatas do ser humano que o tornam mais ou menos desejável no mercado de trabalho.

Empresas são agrupamentos humanos em objetivos comuns, o principal deles sendo o acúmulo de recursos. Tirando regimes comunistas, o Estado não se responsabiliza por disponibilizar recursos para todos os cidadãos. Ele organiza e regula as relações entre os cidadãos, e cobra impostos deles para oferecer infraestrutura compartilhada e eventualmente proteger pessoas em situação de desamparo. O Estado ajuda, com o dinheiro de todos, aqueles que por um motivo ou outro não conseguem atender suas necessidades básicas.

E eu não tenho nada contra isso. Mesmo nas minhas fantasias mais liberalistas, eu presumo alguma forma de proteção para pessoas em situação desesperadora. O Estado é uma rede de proteção que evita a regressão para a lei da selva, e provavelmente vamos precisar de muitos avanços tecnológicos para podermos abrir mão dele. Mas, é importante ressaltar que ele só funciona porque muita gente consegue se manter por conta própria, só há a sobra necessária de recursos se alguém estiver produzindo o suficiente para compartilhar. Para que isso continue funcionando, os sistemas capitalistas permitem a iniciativa pessoal.

Pessoas podem criar suas empresas com o claro objetivo de produzir e acumular recursos. O Estado tem a ferramenta dos impostos para pegar uma parcela deles e redistribuir para o bem coletivo. Em Estados onde os cidadãos produzem muito, sobra muito recurso para distribuir. Em Estados onde os cidadãos produzem pouco, isso não funciona direito. Não é à toa que em países muito pobres, democracia é sempre um pouco mais frágil. Estado sem recursos é Estado fraco.

Essa é a lógica pela qual aprendemos a funcionar por milênios. O cidadão faz o que for legal para conseguir seus recursos, o Estado vem e pega uma parte para dividir com o resto. O cidadão não pode infringir as leis vigentes, mas fora isso, está livre para empreender. E todo governo gosta de quem faz isso bem: gera muitos recursos que ele pode usar também. O empresário não tem as obrigações do Estado, porque ele seria muito menos eficiente na produção de recursos com uma obrigação básica de dividi-los. A pílula vermelha sobre o funcionamento das sociedades é que o processo de cuidar das pessoas é essencialmente deficitário. Todos os países do mundo estão no vermelho, gastando mais do que arrecadam. Se não fossem os cidadãos jogando com outras regras para gerar os recursos, as contas não fechariam. A União Soviética caiu por isso. A China teve que virar uma ditadura “comunista de fachada” por causa disso.

O Estado existe para perder dinheiro, e tudo bem. Eu quero que ele esteja lá fazendo isso. Eu fico furioso quando meu dinheiro vai para a mansão de um político, mas saber que meus impostos estão ajudando alguém passando fome ou cuidando da saúde de uma pessoa incapacitada de trabalhar está de ótimo tamanho. Pode perder dinheiro, pode ficar endividado. Mas não pode enfraquecer o processo de produção de recursos. O governo tem que gastar o dinheiro de alguém…

O erro fundamental no meio que essas ONGs e ativistas em geral usam para promover diversidade é criar uma confusão entre funções do Estado e funções do cidadão. O cidadão produz riqueza para o Estado, o Estado distribui essa riqueza para os necessitados. Eu sei que está todo mundo puto da vida com a inépcia dos políticos, mas isso não muda a lógica da coisa. Se a empresa for obrigada a contratar gente para cumprir funções de proteção social do Estado, ela corre o sério risco de ficar deficitária. Não por causa das pessoas contratadas, mas pelo desvio de função primária.

Empresa que não lucra é ruim para os donos da empresa e para o Estado (e por consequência, todos nós). A empresa é parte de uma engrenagem de produção de recursos, não de redistribuição. Até por isso, leis que geram inclusão na contratação de funcionários são muito limitadas no mundo todo, empresas ganham vantagens em vários lugares, mas raramente são obrigadas. Empresas ruins de produção de recursos deixam o Estado na mão.

Talvez por uma fadiga de capitalismo depois de tantas décadas do sistema funcionando como padrão universal da economia moderna, muita gente começa a querer discutir inclusive essa separação entre Estado e empresa. Acreditam que a iniciativa privada deve assumir responsabilidades “deficitárias” dos governos. E sim, eu entendo que existem opiniões diferentes sobre isso, mas estou aqui estabelecendo a minha: por acreditar que os governos (e sua rede de seguridade social) ficam mais fracos quando as empresas perdem liberdade para gerar recursos, mantenho que é um erro básico querer obrigar empresas a promover diversidade.

Quem contrata pela cor de pele ou pela genitália não contrata por capacidade de produção de recursos. Exigir que empresas mudem uma lógica básica de obtenção de recursos humanos para cobrir deficiências do Estado não resolvem essas deficiências e ainda por cima enfraquecem as empresas que geram os recursos necessários para o funcionamento do Estado.

E aí, voltamos à ideia de que os meios definem os fins. Se diversidade for uma imposição baseada em seleção de seres humanos com base em características inatas (com as quais nasceram e não puderam escolher) como raça e gênero, estamos perpetuando o conceito de segregação, tolerando a ideia de preconceito para gerar vantagens pessoais para alguns cidadãos em detrimentos de outros. Isso gera uma sociedade progressivamente mais racista e sexista, e pior, com a ilusão de que esses comportamentos são positivos e dignos de serem reforçados. Não importa se você está procurando por uma pele branca ou negra, se você condiciona uma contratação à cor da pele, você está privilegiando seres humanos pela quantidade de melanina no corpo.

É um erro estratégico, mesmo que o fim pareça um sucesso: as fotos da equipe de várias empresas vão ter mais variação, mas como são mudanças causadas por pressão imediatista para “parecer” mais inclusivo… é isso que as empresas vão entregar. O objetivo delas é lucrar, e eventualmente elas acham um jeito de quebrar essa estratégia dos ativistas contratando uma série de “modelos de diversidade” para colocar nas fotos. Sim, paga um salário como se fosse funcionário sem necessariamente exigir o esforço normal de um funcionário, mas é mais barato do que lidar com constantes problemas de imagem na mídia. E especialmente mais barato do que brigar com essas ONGs e eventualmente algum político maluco conseguir mudar as leis para forçá-los a contratar pessoas por motivos diferentes de capacidade produtiva.

Os meios influenciam os fins: diversidade exigida por lacração gera diversidade ilusória por lacração. Empresas gostam de dinheiro e de gastar o mínimo para continuar funcionando. Se for mais barato manter meia dúzia de mulheres negras num departamento aleatório para não ter problemas com a imagem, as empresas vão fazer isso. O que NÃO fomenta inclusão, na verdade, só exclui essas pessoas como “obrigação social” da empresa. E como componente de raça e gênero fica no centro da discussão o tempo todo, adivinha só como as gerações que crescerem com essas políticas em prática vão enxergar as coisas?

Muitos ativistas acham que não tem problema nenhum em agir de forma negativa contra homens brancos, porque eles são privilegiados. O problema é que essa é uma visão muito imediatista da situação: você pode fazer a ginástica mental que quiser, mas a mensagem que passa é sempre a mesma, a de que pessoas são melhores ou piores por causa de características com as quais nasceram. E essa mensagem vai entrando na cabeça das pessoas com o tempo. Não estamos criando pessoas menos racistas, estamos incentivando que todas as raças sejam muito racistas. Não estamos criando homens menos machistas, estamos criando homens e mulheres que se ressentem cada vez mais uns dos outros.

O fim desses meios é uma foto mais diversa com pessoas que se odeiam cada vez mais, com os mesmos privilégios de antes para os homens brancos, que continuarão vivendo na mentalidade de empresas que geram recursos.

Mas, se a foto já serve para esses ativistas… bom, continuem assim.

Para dizer de forma vaga que eu estou errado por não saber como argumentar, para dizer que logo surge empresa para oferecer “modelo de diversidade”, ou mesmo para dizer que só quer ver o circo pegar fogo: somir@desfavor.com


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