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Colunas

Ontem e amanhã.

Hoje vamos colocar as coisas em perspectiva. O vídeo a seguir é um compilado dos melhores/piores momentos de um Documento Especial da extinta TV Manchete. O tema? Uma nova linha de ônibus que trazia os pobres até as praias mais chiques do Rio de Janeiro.


A moça reclamando do “ônibus horroroso que trazia gente horrível” é meme faz tempo, tanto que acharam ela de novo, que hoje é muito mais politicamente correta e se arrepende da entrevista. Ela tinha 19 anos, e se você tem mais de 19, sabe que o que se fala nessa idade não se escreve. O ponto do texto não é nem falar sobre pessoas específicas, é sobre um ponto em comum entre o brasileiro de 1989, data de estreia da reportagem, e o brasileiro de 2022, mais de 30 anos depois.

Preconceito? Pobreza? Falta de noção? Sim, tudo isso. Mas essa é a parte óbvia da coisa, a parte que não se fala tanto é a da ideia de solução para problemas que o cidadão médio tinha ali e ainda tem hoje: tudo ou nada. O povo mais abastado de Copacabana e afins, ainda intocado pelos filtros que o cidadão moderno precisou desenvolver, só via a resposta de tirar aquela gentalha dali.

Sim, eu não sou o primeiro a revisitar a matéria, mas eu tenho a impressão de que vou ser um dos poucos, talvez o único, que vai ignorar a parte de revisionismo. Usar a régua do presente para analisar o passado é uma bobagem que se espalhou pela sociedade moderna. Sim, as pessoas de antigamente não tinham as mesmas sensibilidades que temos agora. Devemos ficar felizes que melhoramos, não ficar sofrendo pelo que não podemos mais mudar.

De qualquer forma, o ponto do texto é olhar para essa gente de 1989 e perceber como tem algo que não foi melhorado: a ideia de que estamos a uma atitude radical de mudar o mundo. Aliás, eu poderia argumentar que esse é um dos problemas mais comuns da sociedade humana desde que começamos a viver juntos.

Em 1989, o problema estava resolvido se os pobres não pudessem mais vir à praia. Se ficassem no seu canto, não incomodariam. É claro que essa ideia tem um problema sério, afinal, ignorar problema não o faz desaparecer. Colocar muros ao redor do que não gostamos só tira as coisas de vista, mas elas continuam lá. E eventualmente vamos nos encontrar de novo com o problema ignorado.

Na proximidade da eleição que vai decidir o destino do país pelos próximos 4 anos, temos dois grupos bem definidos de pessoas que acreditam ter encontrado a solução: votar num candidato para impedir o outro de fazer mal para si e para a nação em geral. Já tem bastante texto aqui falando sobre uma provável falsa escolha, sobre o comportamento terrível das pessoas diante da situação… mas vamos pensar no que acontece depois?

Se o Bolsonaro ganhar, o povo que votou no Lula não desaparece. Se o Lula ganhar, o povo que votou no Bolsonaro não desaparece. Prevemos meses, talvez anos de polarização contínua após o resultado das eleições. O problema que eu enxergo aqui é que assim como a moça que queria impedir o ônibus de trazer gente horrível para sua praia, a vitória de um candidato ou de outro não muda a raiz do problema. O que fazia os pobres cariocas incomodarem os frequentadores habituais das praias mais chiques não ia deixar de acontecer se eles fossem momentaneamente impedidos de chegarem até lá.

O que faz a polarização atrapalhar o desenvolvimento do país não vai deixar de acontecer se um candidato ganhar. Se colocar um muro chamado Lula ou Bolsonaro na frente dos adversários, eles ainda vão estar do outro lado. E pior: você não vai mais estar acompanhando o que acontece. Em 1989, o carioca de elite preferia não lidar com o fato de que a periferia crescia sem parar. Em 2022, ele é refém de uma cidade dominada por bandidos armados, alguns com farda, outros não.

As coisas continuam acontecendo, demos atenção para elas ou não. Quando eu argumento que é importante tentar conversar e achar pontos comuns entre os que se dizem de esquerda e direita do país, não é uma expectativa utópica de compreensão e paz entre os povos, é apenas o bom senso de não deixar o que você considera um problema abandonado num canto.

Sem a influência da esquerda, o conservador vai esquecendo que é humano. Sem a influência da direita, o progressista vai esquecendo… que é humano. E dado tempo suficiente, dois povos alienígenas um para o outro se formam, criando uma dificuldade séria de avançar em qualquer discussão sobre o futuro. A moça do vídeo recebeu influência “esquerdista” o suficiente para alguns anos depois botar a mão na consciência e achar errado o que disse. Porque por mais compreensível que seja a putez de lidar com gente que não faz as coisas do jeito que você acha certo, tem algo inerentemente errado em tratar o outro como se fosse um bicho que tem que ser tocado da sua convivência.

É trabalhoso tolerar o outro. É mais trabalhoso ainda tentar construir algo junto com o outro. Deixa o ser humano fazer só o que quiser e ele provavelmente se fecha numa comunidade de gente que pensa parecido e rejeita qualquer influência externa. Todo tipo de abertura para convivência com pessoas diferentes gerou muita reclamação durante a história. Tinha romano reclamando de imigrante milhares de anos atrás.

Não importa quem vença a eleição, todos os eleitores do perdedor vão estar no mesmo lugar onde sempre estiveram no dia seguinte. Para vencer a batalha, ambos os lados estão apelando para mentiras e distorções que tornam o outro em ser incompreensível, o alienígena que mencionei há alguns parágrafos. Você vai precisar de lulistas e bolsonaristas para tocar sua vida a partir dali, e não sei o quanto estamos preparados para retomar a vida sem essa disputa.

O modelo americano, que é o que parece que estamos tentando imitar faz alguns anos, só permite dois lados diametralmente opostos. E isso está causando problemas sérios no país mais rico do mundo. A política está funcionando cada vez menos, com todo mundo se convencendo que a estratégia é brigar o tempo todo. Quase não temos mais iniciativas de cooperação entre democratas e republicanos. Quem perde a eleição sobe o escudo para aguentar os próximos anos, na expectativa de tomar o poder de volta. A plataforma do candidato é desfazer o que o anterior fez, e isso começou a virar um ciclo vicioso.

Lula está pregando desfazer os problemas que o Bolsonaro criou, e se ganhar, Bolsonaro volta em 2026 dizendo que vai desfazer os problemas que Lula criou. Ei, mesmo depois de 4 anos de governo, a proposta de Bolsonaro ainda passa por corrigir o país dos males dos mandatos petistas! É uma política de destruição. O que o outro faz é totalmente errado, o que os que votam no outro querem é totalmente errado.

E isso entra na cabeça do povo. Sem muita consciência, o brasileiro está aceitando essa mecânica política de correr atrás do próprio rabo. Sem a direita, a esquerda só vai dar voltas, sem a esquerda, a direita faz o mesmo. O povo está animado com o prospecto de virar o volante agora, mas não temos um plano de como vamos continuar seguindo em frente depois. Polarização é fast-food político. Fácil de consumir, mas péssimo para a saúde futura.

Sim, somos humanos e é natural queremos tudo do nosso jeito agora, mas não vivemos mais pelo instinto, não? Os tempos mudaram. A vontade de cancelar a linha de ônibus que traz as pessoas “erradas” para sua praia não é algo inconcebível, é algo que pensamos por reflexo, mas decidimos que não é o melhor caminho depois de pensar um pouco mais. É normal querer que a pessoa que defende algo que você considera errado desapareça, mas não é realista. Ela não desaparece. Ela não desaparece nem com ditadura sanguinária.

Ela sempre vai estar lá, pensando e fazendo coisas que você julga detestáveis. E quanto menos você tiver contato com ela, menos influência você vai ter no comportamento dela. Os morros criaram sua cultura, que inclusive vazou para o resto da sociedade. Aquela gente “horrível” não sumiu, ela se multiplicou e transbordou para cima de todos os lugares da sociedade carioca. Não adianta fazer muro, não adianta desumanizar o outro, o outro vai continuar existindo.

Se você está de saco cheio do lulista ou do bolsonarista, direito seu, mas eles não vão parar enquanto estiverem vivendo numa bolha de gente que pensa igual e tem horror a tolerar o outro. Essa polarização vai fermentar e escorrer para a vida de quem quer ou não quer conviver com isso.

Minha vontade é dizer que a rede social é um ônibus horroroso cheio de gente horrível que veio fazer bagunça na minha praia, e que eu preferia que todos ficassem bem longe de mim, mitando ou lacrando no seu canto fedido… mas não adianta no final das contas. Essas pessoas estão aí, a gente convive com elas, a gente depende delas.

Tem uma voz na minha cabeça que sempre diz que escrever esses textos é uma bobagem, mas ainda bem que tem outra dizendo que é parte de viver em sociedade. Talvez eu ajude alguém a organizar as ideias, talvez eu ajude alguém a conversar melhor com gente histérica pelo seu candidato preferido. Não sei exatamente como isso vai ajudar, mas sei que é mais eficiente do que fazer careta e chamar boa parte desse povo de sub-raça.

Sim, é o meu texto eventual dizendo que se você não estiver contaminado pela polarização, para não desistir de vez de mostrar que existem outros caminhos. Vai que? Eles já estão na sua praia mesmo, e com o passar dos anos, eu aposto que não vai sobrar muito lugar nesse mundo livre disso. Tomara que os americanos achem uma solução para os brasileiros imitarem rápido, mas enquanto isso, lembre-se que os malucos de hoje vão continuar existindo semana que vem.

Para dizer que eu sou isentão (com muito orgulho), para dizer que só se eu desenhar, ou mesmo para dizer que amanhã é problema de amanhã: somir@desfavor.com

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intolerância, polarização, sociedade

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